GA64 (111-114): Dasein

Borges-Duarte

A pergunta pelo que o tempo é, orientou a nossa consideração para o ser-aí, entendendo-se por ser-aí o ente que, no seu ser, conhecemos como vida humana; este ente respectivamente-em-cada-momento (Jeweiligkeit) do seu ser, o ente que cada um de nós é, que cada um de nós acerta a dizer no enunciado fundamental “eu sou”. O enunciado “eu sou” enuncia em propriedade o ser (que tem) o carácter do ser-aí do homem. Este ente é em-cada-momento enquanto meu.

Mas era precisa uma reflexão tão complicada para vir ter ao ser-aí? Não teria bastado apontar para que os actos da consciência, os sucessos psíquicos são no tempo, mesmo se estes actos se dirigem a algo que não é ele mesmo determinado pelo tempo? Isto é um desvio. Mas a questão do tempo pretende conseguir uma resposta que permita tornar compreensíveis as diversas modalidades de ser-temporal e, também, dar visibilidade de uma vez para sempre ao possível nexo daquilo que é no tempo com a temporalidade propriamente dita.

Até agora, tem sido o tempo natural, de há muito conhecido e descrito, que tem servido de base da explicação acerca do tempo. Se o ser do homem fosse no tempo de uma maneira especial, de tal modo que nele pudesse ser lido o que o tempo é, então havería que caracterizar esse ser-aí nas determinações fundamentais do seu ser. O ser-temporal, rectamente compreendido, teria de ser, então, justamente, o enunciado fundamental do ser-aí no que respeita ao seu ser. Mas, se assim fosse, necessitar-se-ia de que, a título preambular, se mostrassem algumas das estruturas fundamentais do ser-aí ele mesmo.

1. O ser-aí é o ente que se caracteriza como ser-no-mundo. A vida humana não é um sujeito qualquer, que tenha que fazer habilidades para vir ao mundo. Ser-aí enquanto ser-no-mundo significa ser de tal maneira no mundo, que este ser queira dizer: tratar com o mundo, demorar-se residindo nele à maneira de um executar, efectuar e levar a cabo (tarefas), mas também (à maneira) do observar, do pôr em questão e do definir observando e comparando. O ser-no-mundo caracteriza-se como estar-ocupado.

2. O ser-aí enquanto tal ser-no-mundo coincide, assim, com o ser-uns-com-outros, ser com outrem: ter aí, com outrem, o mesmo mundo, encontrar-se uns com os outros, ser-uns-com-os-outros à maneira do ser-uns-para-os-outros. Mas, no entanto, este ser-aí é também, ao mesmo tempo, um estar-perante para outros à maneira, por exemplo, de como está aqui uma pedra, que não tem mundo nem está-ocupada.

3. Ser-uns-com-os-outros no mundo, tê-lo enquanto uns-com-os-outros, tem uma determinação ontológica especial. A modalidade fundamental do ser-aí do mundo, que este tem aqui em-comum-com-outros, é o falar. Falar, no seu sentido pleno, é: falar com outrem expressando-se acerca de alguma coisa. O ser-no-mundo do homem sucede predominantemente no falar. Aristóteles já o sabia. Na maneira como o ser-aí, no seu mundo, fala do seu trato com o mundo, está conjuntamente dada uma auto-interpretação do ser-aí. Este exprime como ou enquanto quê o ser-aí respectivamente-em-cada-momento se auto-compreende, como ou enquanto quê se toma. No falar-uns-com-os-outros, no que se diz por aí, está sempre em cada caso a auto-interpretação da actualidade, que reside neste diálogo.

4. O ser-aí é um ente que se determina como “eu sou”. Para o ser-aí é constitutivo o respectivamente-em-cada-momento do “sou eu”. Tão primordialmente como é ser-no-mundo, o ser-aí é, portanto, também o meu ser-aí. É sempre em cada caso próprio e, enquanto próprio, respectivamente-em-cada-momento. Se este ente for determinado no seu carácter ontológico, não se pode fazer abstracção do respectivamente-em-cada-momen-to enquanto em cada caso meu. Mea res agitur. Todas as características fundamentais têm, pois, que se acomodar ao respectivamente-em-cada-momento enquanto (este é) sempre em cada caso o meu.

5. Na medida em que o ser-aí é esse ente que sou eu, mas que, simultaneamente, é, quase sempre e normalmente, determinado como ser-uns-com-os-outros, o meu ser-aí não sou eu mesmo mas os outros; eu sou com os outros e, da mesma maneira, os outros com os outros. Na quotidianeidade, ninguém é ele mesmo. O que ele é e como é, ninguém o é: ninguém e, contudo, toda a gente em comum. Toda a gente não é ela mesma. Este ninguém, que nos vive a nós mesmos na quotidianeidade, é o “se” impessoal. Diz-se, ouve-se, está-se a favor de, está-se ocupado. No teimoso domínio deste “se” impessoal residem as possibilidades do meu ser-aí e é a partir deste nivelamento que o “eu sou” é possível. O ente, que é a possibilidade do “eu sou”, é enquanto tal, quase sempre, um ente que é o “se” impessoal.

6. O ente assim caracterizado é tal que, no ser-no-mundo quotidiano e respectivamente-em-cada-momento, é o seu ser que está em jogo (es geht um). Tal como em todo o falar acerca do mundo reside um expressar-se a si mesmo do ser-aí, também o trato em que se está ocupado é um ocupar-se do ser do ser-aí. O que tenho a tratar, aquilo de que me ocupo, a que me prende a minha profissão, (tudo isso) sou eu, em certa medida, e nisso se joga o meu ser-aí. O cuidado do ser-aí pôs o ser respectivo ao (seu) cuidado, tal como é sabido e compreendido pela interpretação dominante do ser-aí.

7. Na mediania do ser-aí quotidiano não há reflexão sobre o eu e o si-mesmo, muito embora o ser-aí se tenha a si mesmo. Ele sente-se, afectivamente, residindo em si mesmo. Ele encontra-se em casa, lá onde, normalmente, trata dos seus afazeres.

8. O ser-aí enquanto ente não é passível de demonstração, nem sequer de mostração. A ligação primordial ao ser-aí não é a observação, mas o “sê-lo”. Fazer a experiência de si, tal como falar acerca de si – a auto-interpretação -, é apenas uma maneira determinada e destacada, do ser-aí se ter respectivamente em cada caso a si mesmo. Normalmente, a interpretação do ser-aí é dominada pela quotidianeidade, pelo que se opina, por ouvir dizer, acerca do ser-aí e da vida humana, pelo “se” impessoal, pela tradição.

McNeill

Original

  1. TN The Latin means something like ‘I am what is being enacted’, or ‘I am that which concerns me.’[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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