GA6:264-266 – pensa-se a partir de um “canto do mundo”

(…) Nietzsche alcançou uma clareza cada vez mais intensa quanto ao fato de o homem sempre pensar a partir de um “canto do mundo”, a partir de um ângulo espaço-temporal: “Não podemos ver para além de nosso canto” (n. 374; 1887). O homem é concebido e denominado aqui “aquele que se encontra preso em um canto”. Desse modo, encontramos uma clara expressão do fato de tudo o que é efetivamente acessível ser absorvido no campo de visão determinado pelo canto, uma clara expressão e um claro reconhecimento da humanização de tudo como inevitável em cada passo dado pelo pensamento. Assim, a interpretação da essência do mundo como caos necessário também é impossível no sentido em que ela foi visada, ou seja, como a eliminação de toda humanização; ou, porém, ela precisa ser concedida como uma visada e uma perspectiva que também provêm de um canto. Como quer que as coisas venham a ser decididas nesse caso, aquele intuito de alijar toda humanização no pensamento da essência do mundo, por um lado, e o reconhecimento da essência daquele que se encontra preso em um canto, por outro, são mutuamente excludentes. Se aquele intuito for tomado por realizável, então o homem precisa apreender a essência do mundo a partir de um ponto de vista fora de todo canto; ele precisaria poder tomar pé sobre algo assim como o ponto de vista da ausência de pontos de vista.

De fato, ainda se encontram hoje certos eruditos que se ocupam com a filosofia e que consideram a liberdade de pontos de vista como não sendo um ponto de vista, uma vez que tal liberdade não depende de pontos de vista para ser o que é. Essas tentativas curiosas de fugir da própria sombra podem ser largadas à própria sorte, pois a sua discussão não nos leva a lugar algum quando o que está em questão é a coisa mesma. Só precisamos atentar para uma coisa: esse ponto de vista da liberdade de pontos de vista não é outra coisa senão a opinião de que é possível superar as unilateralidades e os preconceitos característicos da filosofia até aqui, unilateralidades e preconceitos que sempre foram e continuam sendo marcados por pontos de vista. Em verdade, porém, esse ponto de vista da ausência de pontos de vista não se perfaz como uma superação. Ao contrário, ele é apenas a extrema consequência, a afirmação e assim o estágio final daquela opinião relativa à filosofia que fixa toda filosofia extrinsecamente sobre pontos de vista como algo derradeiramente presente diante de nós e que procura equilibrar por meio daí as suas unilateralidades. No entanto, o caráter de ponto de vista como um dote essencial e incontornável de toda filosofia não é remediado em sua suposta temível periculosidade e nocividade por meio de uma negação ou de uma recusa. A única forma de suplantar tal periculosidade e nocividade é reconduzir o caráter de ponto de vista à sua essência originária, atravessando-o inteiramente com o pensamento e então compreendendo-o; ou seja, a única forma é colocar novamente de maneira fundamental a pergunta sobre a essência da verdade e do ser-aí do homem e, em seguida, respondê-la.

Ou bem se toma a eliminação de toda humanização por possível, e então é preciso que haja algo assim como o ponto de vista da liberdade de pontos de vista, ou bem o homem é reconhecido em sua essência como um ente que se acha preso a um canto, e então é preciso que rejeitemos uma concepção não humanizante da totalidade do mundo. Qual é a decisão de Nietzsche ante essa disjunção? Antes de mais nada, é muito difícil imaginar que ela tenha passado desapercebida por ele, uma vez que ele mesmo ajudou em parte a desenvolvê-la. Ele se decidiu em verdade pelas duas, tanto pela vontade de desumanização do ente na totalidade quanto pela vontade de levar a sério o fato de o homem estar preso a um canto. Nietzsche se decide pela fusão das duas vontades. Ele exige a mais extrema humanização do ente e a mais extrema naturalização do homem, as duas coisas ao mesmo tempo. Somente quem adentrar o cerne dessa vontade pensante de Nietzsche terá alguma ideia de sua filosofia. Mas se essa é a questão, então é completamente decisivo saber que canto é esse a partir do qual o homem vê e desde onde o canto se determina em seu lugar. Torna-se simultaneamente decisivo saber o quão amplamente o horizonte da desumanização possível do ente na totalidade é colocado. Por fim, torna-se totalmente decisivo saber se e como aquela visão do ente na totalidade contribui normativamente para a determinação locativa do canto no qual o homem se encontra – e, em verdade, se encontra necessariamente.

Ainda que Nietzsche não tenha trazido à tona tais conexões com toda essa expressividade e conceitualidade, como teremos a oportunidade de ver posteriormente ele certamente avançou um bom trecho no interior delas com toda a sua vontade pensante mais intrínseca. Desde o começo vimos em meio à apresentação do pensamento nietzschiano fundamental como as coisas que há para serem pensadas – a totalidade do mundo e o pensamento do pensador – não podem ser separadas umas das outras. Agora apreendemos mais claramente com o que se relaciona essa inseparabilidade; ela se relaciona com a ligação necessária do homem enquanto um ente marcado por pontos de vista e enquanto um ente que se acha em meio ao ente na totalidade com esse ente na totalidade mesmo. Pensamos de um tal modo essa relação fundamental no interior da disposição decisiva do ser humano em geral que dizemos: o ser do homem – e até onde sabemos só do homem – se funda no ser-aí; o aí é o lugar possível para a localização a cada vez necessária de seu ser. Mas deduzimos ao mesmo tempo dessa conexão fundamental a seguinte intelecção: a humanização se torna tanto menos perigosa para a verdade quanto mais originariamente o homem articula a sua localização com um canto essencial, isto é, quanto mais originariamente ele conhece e funda o ser-aí como tal. Todavia, a essencialidade do canto se determina a partir da essencialidade e da amplitude na qual o ente na totalidade é experimentado e concebido segundo o único aspecto decisivo, a saber, o aspecto do ser.