Na palavra dirigida aos efésios (relatada em Diogenes Laertius, IX, 3), Heráclito simplesmente não preenche a expectativa de que o pensador (Denker) deva abandonar o cuidado (Sorge) comedido para entregar-se a uma preocupação desmedida com a πόλις, numa colaboração imediata com eles. (Cf. Fragmento 121.) De maneira mediata, o cuidado refere-se ao mais necessário da necessidade própria a um cuidado pensante (Nötige der Not der denkerischen Sorge), a saber, de, em pensando, cuidar da inscrição do extraordinário em todo o ordinário (Ungeheuere in allem Geheueren). Mas será que jogar dados com crianças no ambiente do templo da deusa é mesmo cuidar do extraordinário e da própria deusa, da própria πóλις? É o que nos perguntamos. É o que se perguntaram os efésios. Heráclito não invalida de modo algum esta pergunta. O que ele faz é conduzi-los ao correto questionamento sobre o que causa tanto espanto nessa sua ocupação.
τι … θαυμάζετε: “O que estão olhando aqui tão espantados?” Olham admirados o fato de um pensador passar o tempo com um jogo inútil, de estar fora da esfera da ação e da eficácia, e de nem sequer aprofundar o pensamento? Afinal, isso é o mínimo que se pode esperar de um pensador. Se ficam admirados é porque não compreendem mesmo nada de seu comportamento. Tomado como simples passatempo, o jogo com as crianças não seria melhor, com efeito, do que a bisbilhotice dos efésios. Se o jogo é melhor para o pensador, por que merece prioridade? Que verdadeiro espanto [27] se esconde no fazer inofensivo do pensador? Será que esse jogo familiar e ordinário com as crianças é a proximidade de um jogo extraordinário? Mas se é assim, as palavras violentas que o pensador dirige aos efésios apenas aparentariam uma recusa, da mesma forma que as precendentes apenas aparentariam um convite — pois seria como se os deuses pudessem ser encontrados por qualquer um, em qualquer disposição. Nos próximos passos deveremos prestar atenção se, e em que sentido, o pensamento de Heráclito sempre se determina pela proximidade do jogo, e se algo como jogo chega a revelar-se no pensamento pensante do a-se-pensar. (GA55PT:27-28)