GA55:6-7 – deuses

Götter

Uma das “estórias” conta o seguinte: (citação em grego) “Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os (ainda hesitantes) encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: ‘Mesmo aqui, os deuses também estão presentes.”’ (Aristóteles. De part. anim., A5 645 a 17 ff.)

Na curiosidade impertinente frente ao pensador e seu abrigo, as pessoas viram-se decepcionadas e desorientadas. Esperavam encontrá-lo numa situação marcada pelo caráter de exceção, raridade e excitação, por oposição à vida cotidiana. Ao visitá-lo esperam encontrar coisas que, ao menos por um certo tempo, ofereçam assunto e matéria para uma prosa despreocupada. Os que desejam visitar o pensador esperam encontrá-lo no momento exato em que está mergulhado nas profundezas, todo “pensativo” —, não para que eles mesmos possam ser tocados pelo pensamento, mas só para poder dizer que viram e ouviram aquele que é considerado um pensador.

Em vez disso, os curiosos encontram o pensador junto ao forno. Trata-se de um lugar tipicamente cotidiano e insignificante. É ali, no entanto, que se faz o pão. Mas Heráclito não estava junto ao forno nem mesmo para fazer pão. Estava ali só para se aquecer. Nesse lugar cotidiano ele mostra, além do mais, toda a indigência de sua vida. Contemplar um pensador sentindo frio não é muito “interessante”. Com o olhar decepcionado, os curiosos perderam a vontade de se aproximar um pouco mais. O que estavam fazendo ali? Qualquer um pode, a qualquer momento, encontrar na sua própria casa essa necessidade cotidiana e sem graça de aconchegar-se ao forno quando se sente frio. Para que então visitar um pensador? Heráclito lê nas suas fisionomias a curiosidade decepcionada. Reconhece que — para as pessoas — basta sentir a falta de uma sensação esperada para que desistam e partam. Por isso as encoraja, convidando-as a entrar com as palavras: einai gar kai entautha theous…: “mesmo aqui, os deuses também estão presentes”.

Sua palavra lança outra luz sobre seu abrigo e ocupação. A “estória” não chega a contar se os visitantes compreenderam ou não as palavras, nem se perceberam tudo sob essa outra luz. O fato, porém, de se ter contado e transmitido até hoje a “estória” significa que ela surge da atmosfera própria do pensamento desse pensador, e por isso a designa, kai entautha — mesmo aqui junto ao forno, mesmo neste lugar cotidiano e comum onde cada coisa e situação, cada ato e pensamento se oferecem de maneira confiante, familiar e ordinária, “mesmo aqui”, nesta dimensão do ordinário, einai theous, os deuses também estão presentes, theoi são os theaontes kai daimones. A essência dos deuses, tal como apareceu para os gregos, é precisamente esse aparecimento, entendido como um olhar a tal ponto compenetrado no ordinário que, atravessando-o e perpassando-o, é o próprio extraordinário o que se expõe na dimensão do ordinário. Aqui também, diz Heráclito, junto ao forno em que me aqueço, vigora o extraordinário no ordinário, kai entautha — “mesmo aqui”, diz o pensador, e o diz no sentido próprio dos visitantes, segundo o modo e a mentalidade próprios das pessoas. (GA55MSC:22-24)

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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