GA5: Sujeito-Objeto (86-88; 92-93)

Borges-Duarte

O conhecer, enquanto investigação, pede contas ao ente acerca de como e em que medida ele pode ser tornado disponível para o representar. A investigação dispõe do ente quando pode calculá-lo previamente no seu curso futuro ou quando pode conferi-lo1 como passado. No cálculo prévio, é a natureza que é interceptada, no conferir historiográfico, a história. A natureza e a história tornam-se no objecto do representar explicativo. Este conta com a natureza e faz contas com a história. Só é, só vale como sendo, aquilo que deste modo se torna um objecto. Só se chega à ciência como investigação se o ser do ente for procurado em tal objectividade.

Esta objectivação do ente cumpre-se num re-presentar (Vor-stellen)2 que tem como objectivo trazer para diante (109) de si qualquer ente, de tal modo que o homem calculador possa estar seguro do ente, isto é, possa estar certo do ente. Só se chega à ciência como investigação se, e apenas se, a verdade se transformou em certeza do representar. E na metafísica de Descartes que o ente é, pela primeira vez, determinado como objectividade do representar, e a verdade como certeza do representar. O título da sua obra principal é Meditationes de prima philosophia; considerações sobre a Filosofia Primeira. Πρώτη φιλοσοφία é a designação cunhada por Aristóteles para aquilo que, mais tarde, é chamado metafísica. Toda a metafísica moderna, incluindo Nietzsche, mantém-se na interpretação do ente e da verdade traçada por Descartes.

Ora, se a ciência como investigação é um fenômeno essencial da modernidade, então aquilo que constitui o fundamento metafísico da investigação tem de determinar em geral, de antemão e muito antes, a essência da modernidade. Pode-se ver a essência da modernidade em o homem se libertar dos vínculos medievais, na medida em que se liberta para si mesmo. Mas esta caracterização correcta não deixa de ser superficial. Ela tem como consequência aqueles erros que impedem captar o fundamento essencial da modernidade e, só a partir daí, medir também o alcance da sua essência. É certo que a modernidade, no seguimento da libertação do homem, despertou subjectivismo e individualismo. Mas continua a ser igualmente certo que nenhuma era antes dela produziu um objectivismo comparável, e que em nenhuma era anterior o não-individual alcançou uma validade na figura do colectivo. O essencial aqui é a alternância necessária entre subjectivismo e objectivismo. Mas precisamente este condicionar-se reciprocamente aponta para processos mais profundos.

(110) O decisivo não é que o homem se liberta para si mesmo dos vínculos que tinha até agora, mas que a essência do homem em geral se transforma, na medida em que o homem se torna sujeito. Temos de compreender, na verdade, esta palavra subjectum como a tradução do grego υποκείμενον. A palavra menciona o subjacente (Vorliegendes) que, enquanto fundamento, reúne tudo sobre si. Este significado metafísico do conceito de sujeito não tem, à partida, nenhuma referência especial ao homem, nem de modo nenhum ao eu.

Mas se o homem se torna no primeiro e autêntico subjectum, então isto quer dizer que o homem se torna naquele ente no qual todo o ente, no modo do seu ser e da sua verdade, se funda. O homem torna-se centro de referência do ente enquanto tal. Mas isso só é possível quando se transforma a concepção do ente na totalidade. Em que se mostra esta transformação? Qual é, de acordo com ela, a essência da modernidade? (p. 109-111)


Só porque e só na medida em que o homem, em geral e essencialmente, se tornou sujeito é que para ele, a seguir, se tem de chegar à questão explícita de saber se o homem – quer como o eu limitado à sua ocasionalidade e entregue ao seu arbítrio, quer como o nós da sociedade, seja como singular ou como comunidade, seja como (115) personalidade na comunidade ou como simples membro do grupo na corporação, seja como Estado e nação e como povo ou como a humanidade universal do homem moderno — quer ser e tem de ser o sujeito que ele, enquanto essência moderna, já é. Só onde o homem já é essencialmente sujeito é que existe a possibilidade de derrapar para a anti-essência (Unwesen) do subjectivismo, no sentido do individualismo. Mas também só onde o homem permanece sujeito é que o combate explícito contra o individualismo e pela comunidade tem um sentido como o campo de tiro de todo o desempenho e de todo o proveito. (p. 115-116)

Brokmeier

Cortés & Leyte

Young & Haines

Original

  1. N.T. A tradução de nachrechnen (à letra: calcular posteriormente) por conferir não permite a conservação, em português, do jogo estabelecido por Heidegger com vorausberechnen (calcular previamente).[↩]
  2. N.T. O hífen em re-presentar significa que Heidegger separa com hífen os elementos que compõem o verbo Vorstellen, procurando assim acentuar que representar (Vor-stellen) significa um pôr ou colocar (Stellen) diante, à frente (Vor).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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