GA45:§35 – indigência

Casanova

Qual é a indigência que vigora na necessidade de iniciar aquele início do pensamento ocidental? O que compreendemos aqui em geral pela palavra “indigência”? Indigência – a palavra soa como miséria e lamentação, aponta para um prescindir e um carecer e visa, de qualquer modo, na totalidade, a uma falha, uma falta, um ficar de fora e um “não”. Nem tudo aquilo que possui o caráter de não é algo negativo no sentido do depreciativo. Tranquilidade, por exemplo. Nós pensamos a tranquilidade como a ausência e o ficar de fora de barulho e perturbação. Assim, porém, apenas interpretamos algo originário como negativo com o auxílio da negação, a saber, de barulho e perturbação, sem levar em conta aí a essência do negativo e do não. Nem tudo aquilo que tem caráter de não precisa ser falho, para não falar de maneira alguma de lastimoso e rabujento. Nós estamos habituados a interpretar a indigência e o cuidado somente a partir da esfera cotidiana do aflitivo, rabujento e chato, o que significa, contudo, que estamos habituados a transformar nossas preocupações e aflições em critério de medida das coisas. Por mais inextinguível que seja esse hábito e, por isso, por mais que ele pareça ser o único justificado, precisamos reconquistar sempre novamente, ou, até mesmo, desenvolver pela primeira vez para a nossa linguagem, o poder velado de nomeação do essencial.

Se falamos de indigência aqui como aquilo que impõe aquele elemento necessário de uma figura extrema, então não temos em vista miséria e falha. Não obstante, pensamos em um não, em algo marcado pelo caráter de não. Mas o quão pouco sabemos sobre o que possui o caráter de não e sobre a negação, por exemplo, sobre a recusa, o retardamento e o fracasso. Tudo isso não é nada iníquo, mas maximamente – se não ainda mais elevado do que o máximo – o contrário. O fato de a negação e o não provirem do excesso do supérfluo e poderem ser uma doação suprema, assim como o fato de ultrapassarem infinitamente, isto é, essencialmente, como esse não e esse negativo, todo sim corrente, isso não entra jamais no campo de visão de nosso entendimento calculador. E é bom que seja assim. Pois o entendimento “explicaria” tal fato segundo os princípios da “lógica”. De acordo com esses princípios, há afirmação e negação, ainda que o sim possua o primado, porque posiciona algo e, com isso, reconhece algo que se encontra defronte. O presente à vista e o que se presenta são considerados como o ente. Assim, é difícil para nós, onde quer que o aparentemente “negativo” venha ao nosso encontro, ver a partir daí mais do que apenas o “positivo”, concebendo, para além dessa diferença, algo originário. Aqui, no momento em que meditamos sobre a indigência daquela necessidade do início, só a mais profunda compreensão da essência da indigência pode se mostrar como boa o suficiente.

A indigência a que se visa é o não-se-saber-fora-nem-dentro; isso, porém, não acontece de maneira alguma por conta de uma ocasião qualquer, por conta dessa ou daquela ocasião, como um embaraço. Mas pelo quê, então? O não-se-saber-fora e o não-se-saber-dentro: a partir daquilo e para o interior daquilo que se abre pela primeira vez por meio de um tal saber como esse “espaço” não desbravado e não fundado. Esse “espaço” (tempo-espaço) – se é que podemos falar aqui assim – é aquele “entre” no qual ainda não está determinado o que é essente e o que é não essente e no qual, de qualquer modo, a completa confusão intrínseca à inteireza não individuada do ente e do não ente também já não arrasta todas as coisas e as leva por aí consigo. Essa indigência, como um tal não-se-saber-fora-nem-dentro, nesse entre que assim se abre, é um modo do “seer”. Na medida em que o homem alcança esse modo ou em que ele se vê talvez jogado aí, ele experimenta – mas não leva ainda em conta – pela primeira vez aquilo que denominamos em meio ao ente.

Essa indigência implode o ente, que ainda se encontra velado como tal, para tornar ocupável e fundamentável o espaço do em meio a si mesmo como o posto possível do homem em geral. Essa indigência – ainda bem pouco anunciada por meio do discurso acerca do não-se-saber-fora-nem-dentro – lança um para fora do outro, aquilo que ora se determina como o ente em sua entidade em contraposição ao não ente – supondo que a indigência impõe ao homem a necessidade que lhe é correspondente.

A indigência a que se visa aí também não se mostra, portanto, como nenhuma indigência indeterminada. Ao contrário, ela se revela como uma indigência bastante determinada em sua imposição, na medida em que já cria para o pensamento o seu espaço essencial, sim, na medida em que não é outra coisa senão isso. Pois pensar significa aqui deixar o ente despontar na decidibilidade de seu seer e se postar diante de si, acolhê-lo enquanto tal e, com isso, denominá-lo pela primeira vez em sua entidade.

Essa indigência – o não-se-saber-fora-nem-dentro no interior do em-meio-a ele mesmo infundado do ente e do não ente ainda indecididos – essa indigência não é nenhuma falha e nenhum carecimento, mas o excesso de uma doação, que é naturalmente mais difícil de suportar do que qualquer expiação. Essa indigência – dizemos – é um modo do seer, e não, por exemplo, do homem, de maneira que essa indigência emergiria nele “psiquicamente” como “vivência” e teria nele o seu lugar, mas o inverso: é o homem que emerge ele mesmo pela primeira vez dessa indigência, que é mais essencial do que ele mesmo, que só é determinado (marcado em sua afinação) por ela.

Essa indigência pertence à verdade do seer mesmo. Ela possui a sua mais elevada doação no fato de ser o fundamento da necessidade para as possibilidades extremas, em cujos caminhos o homem retorna à verdade do seer, criando para além de si e através do ente.

Rojcewicz

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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