GA45:35-37 – História [Geschichte]

Mas a consideração historiológica não esgota a relação possível com a história (Geschichte); e isso a tal ponto que ela até mesmo impede e inviabiliza tal relação. Aquilo que denominamos meditação histórica é algo essencialmente diverso da consideração historiológica. Se expomos conscientemente a diferença entre o historiológico e o histórico também de maneira terminológica e a sustentamos em contraposição à mistura corrente dos dois termos 1, então, à base dessa exatidão no emprego vocabular, encontra-se uma postura pensante fundamental. A palavra “geschichtlich” (histórico) visa ao Geschehen (acontecer), à história (Geschichte) mesma como um ente 2. A palavra “historiológico” designa um tipo de conhecimento. Não falamos de uma consideração histórica, mas de uma meditação. Meditação (um voltar-se para o sentido 3): entrar no sentido do que acontece, da história. “Sentido” visa aqui ao âmbito aberto das metas, critérios, impulsos, possibilidades de irrupção e poderes – tudo isso pertence essencialmente ao acontecimento.

O acontecimento (Geschehen) como um modo de ser é próprio apenas do homem. O homem tem história, porque só ele pode ser histórico, isto é, só ele pode se encontrar e se encontra naquele âmbito aberto das metas, critérios, impulsos e poderes, na medida em que esse âmbito o suporta e subsiste sob o modo da configuração, direção, ação, resolução e padecimento. Só o homem é histórico – como aquele ente que, exposto ao ente na totalidade, se libera para o cerne da necessidade na confrontação com esse ente. Todo ente não humano é a-histórico, mas pode ser histórico em um sentido derivado; e isso é necessário, porquanto pertence à esfera daquela confrontação do homem com o ente. Uma obra de arte, por exemplo, tem sua história como obra. Nisso reside, porém, o seguinte: ela tem sua história com base no fato de ter sido criada pelo homem; mais ainda, com base no fato de que abre e mantém aberto como obra o mundo do homem.

Fica claro a partir daí o seguinte: o acontecimento e a história não são o passado nem aquilo que é considerado enquanto tal, ou seja, o historiológico. O acontecimento, contudo, também não é o atual. O acontecimento e o que acontece da história são, em primeiro lugar e sempre, o porvir, o ir-à-frente que veladamente vem ao nosso encontro, que descortina e se lança de forma arrojada; e, assim, aquilo que compele previamente para si. O porvir é o início de todo acontecimento. No início, tudo se acha resolvido. Ainda que aquilo que começou e que veio a ser pareça avançar para além de seu início, esse início permanece – aparentemente tendo se tornado ele mesmo o passado – de qualquer modo o que ainda se essencia, aquilo com o que tudo o que é vindouro deve se confrontar. Em toda história propriamente dita, que é mais do que a sequência do que se deu, decisivo é o caráter de porvir, isto é, a dignidade hierárquica e a extensão das metas do criar. A grandeza da criação é medida de acordo com o quão amplamente se consegue seguir a lei velada mais íntima do início e levar sua via até o fim. Historicamente inessencial, mas ao mesmo tempo inevitável, é, por isso, o novo, o desviante, o divergente e extravagante. Ora, como o inicial sempre se mostra, porém, como o mais velado, como ele permanece inesgotável e se subtrai incessantemente, como aquilo que respectivamente veio a ser logo se torna o habitual e como esse elemento habitual encobre, com sua propagação, o início, o inicial carece das viradas daquilo que se tornou habitual – das revoluções. A relação originária e autêntica com o início é, por isso, o revolucionário, que sempre libera uma vez mais, por meio do revolvimento do habitual, a lei velada do início. Por isso, o início não é preservado – porque não é de modo algum alcançado – pelo elemento conservador. Pois esse elemento constrói a partir daquilo que veio a ser o regular e ideal que, então, é sempre novamente buscado na consideração historiológica.

  1. Heidegger refere-se aqui ao uso indiscriminado em alemão dos termos historisch (historiológico) e geschichtlich (histórico) como sinônimos. Em verdade, esse uso corresponde diretamente às traduções correntes do alemão, nas quais os dois termos são sempre vertidos por “histórico”. No nosso caso, porém, diante da peculiaridade do texto heideggeriano, vimo-nos diante da necessidade de pensar em uma saída para marcar a diferença entre os dois termos, o que acaba por repercutir de maneira um pouco estranha na passagem acima, pois não confundimos em português “historiológico” com “histórico”. (N. do T.)[]
  2. Heidegger vale-se na passagem acima de uma particularidade etimológica do termo Geschichte (história). Geschichte deriva diretamente do verbo geschehen (acontecer, dar-se, ocorrer). Em alemão, história diz respeito originariamente ao acontecimento da história. Como esse contexto se perderia na simples tradução, optamos por manter os termos alemães e explicitar o seu conteúdo na nota. (N. do T.)[]
  3. Temos aqui mais um exemplo do uso técnico que Heidegger faz de certos termos. Em alemão corrente, Besinnung significa “meditação”. No entanto, Heidegger compreende o termo na sua relação com o substantivo Sinn , “sentido”. Be-sinnung significa literalmente “voltar-se para o sentido”. Emanuel Carneiro Leão, por exemplo, exatamente por isso, traduz o termo pela locução “pensamento do sentido”. Se não seguimos essa opção, porém, é justamente para impedir que locuções explicativas assumam o lugar da linguagem em sua dimensão mais mundana, mais familiar, o que acaba por criar uma artificialidade na leitura da obra e na interpretação do pensamento de Heidegger. Assim, quando um termo aparece hifenizado, preferimos apresentar entre parênteses a sua tradução literal. (N. do T.)[]