GA41:7-10 – A especificidade da questão acerca da coisalidade, em face dos métodos científicos e técnicos

Morujão

Mas logo que nos pomos a caminho, tendo em vista determinar estas coisas, encontramo-nos em apuros. Pois todas estas coisas estão, desde há muito tempo, determinadas e, quando o não estão, há modos seguros de proceder (as ciências) e de produzir, nos quais isso pode acontecer. O que é uma pedra dizem-nos mais rapidamente a mineralogia e a química, o que é uma rosa e um arbusto ensina-nos com segurança a botânica; do que é uma rã e um falcão fala-nos a zoologia; do que é um sapato, uma ferradura ou um relógio, dão-nos uma informação mais exacta o sapateiro, o ferreiro, ou o relojoeiro.

Torna-se evidente que, com a nossa questão, chegamos sempre demasiado tarde e, ao mesmo tempo, somos remetidos para quem tem disponível uma resposta muito melhor ou para quem, pelo menos, dispõe de experiências e modos de proceder que permitem que ela seja dada rapidamente. Isto é apenas uma confirmação do que já tínhamos admitido, ou seja, que com a questão «que é uma coisa?» nada se pode começar. Mas, na medida em que temos o projecto de discutir esta questão e de o fazer a propósito das coisas que estão mais próximas, torna-se necessário tornar compreensível o que ainda queremos saber, em contraste com o que nos dizem as ciências.

Com a nossa questão «que é uma coisa?» não queremos saber, evidentemente, o que é um granito, um sílex, um calcário ou um grão de areia, mas o que é uma pedra enquanto coisa. Não queremos saber como se diferenciam e como são os musgos, os fetos, as ervas, os arbustos e as árvores, mas o que é a planta enquanto coisa – e o mesmo acontece com os animais. Também não queremos saber o que é um alicate, na sua diferença em relação ao martelo, nem o que é um relógio, na sua diferença em relação à chave, mas o que são estes instrumentos de uso e de trabalho, enquanto coisas. Sem dúvida, não é imediatamente claro o que isto quer dizer. Mas admitamos, por uma vez, que se pode perguntar deste modo; então exige-se, claramente, que nos detenhamos diante dos factos e da sua exacta observação, para podermos conceber o que são as coisas. Não se pode imaginar o que é uma coisa permanecendo sentado à secretária, ou prescrevendo discursos de carácter geral. Isso só pode ser decidido nos locais de trabalho das ciências de investigação e nas oficinas. Quando não nos encontramos nestes sítios estamos expostos ao riso da criada. Questionamos acerca das coisas e, ao fazer isso, passamos por cima do que nos é dado e das ocasiões que, de acordo com a opinião geral, nos proporcionam informações adequadas acerca de todas estas coisas.

Assim parece, de facto. Com a nossa questão «que é uma coisa?», ultrapassamos não apenas as pedras isoladas e os tipos de pedra, as plantas isoladas e as espécies de plantas, os animais isolados e as espécies animais, os instrumentos de uso e de trabalho isolados. Ultrapassamos mesmo estes domínios do inanimado, do animado e do utilitário e queremos apenas saber: «que é uma coisa?» Na medida em que questionamos deste modo procuramos aquilo que faz a coisa ser coisa, enquanto tal, não enquanto pedra ou madeira, aquilo que torna-coisa (be-dingt) a coisa. Não questionamos acerca de uma coisa de uma determinada espécie, mas acerca da coisalidade da coisa. Essa coisalidade, que torna-coisa uma coisa já não pode ser coisa, quer dizer, um condicionado (Bedingtes). A coisalidade deve ser qualquer coisa de incondicionado. Com a questão «que é uma coisa?», perguntamos pelo incondicionado (Unbedingten). Questionamos acerca do palpável que nos rodeia e, com isto, afastamo-nos ainda e cada vez mais das coisas que nos estão próximas, como Tales, que via até às estrelas. Devemos ultrapassar as estrelas, ir além de todas as coisas, em direcção ao que já-não-é-coisa, aí onde já não há mais coisas que dêem um fundamento e um solo.

E, no entanto, levantamos esta questão apenas para saber o que é uma pedra, um lagarto que se expôs ao Sol em cima dela, o que é uma vergôntea que cresce ali perto, o que é um canivete que nós, deitados no prado, temos talvez na mão. Devemos saber precisamente o que o mineralogista, o botânico, o zoólogo e o amolador não querem saber, aquilo que eles julgam apenas querer saber quando, no fundo, querem uma coisa completamente diferente: promover o progresso da ciência, ou satisfazer o prazer da descoberta, ou indicar o carácter utilitário da coisa, ou ganhar a vida. Devemos saber aquilo que nenhum deles não só não sabe, como talvez nem sequer possa saber, apesar de toda a ciência e habilidade manual. Isto soa a arrogância. Não se limita a soar, é-o. Certamente não se exprime aqui a presunção de uma pessoa isolada, tanto quanto a nossa dúvida quanto ao poder-saber, ou querer-saber, das ciências não se dirige contra a atitude e o modo de pensar de pessoas isoladas, nem mesmo contra a utilidade e a necessidade das ciências.

A pretensão de saber, que caracteriza a nossa questão, é uma arrogância do mesmo tipo das que se encontram sempre em cada decisão essencial. Conhecemos já esta decisão, o que não significa que nos tenhamos já embrenhado também nela. É a decisão sobre se queremos saber aquilo com que – segundo esta maneira de falar – nada se pode começar. Quando renunciamos a este saber e não colocamos esta questão, tudo permanece tal como estava. Podemos também, sem esta questão, ter êxito no nosso exame, talvez até mais êxito. Quando, por outro lado, colocamos a questão, não ficamos, de um dia para o outro, melhores botânicos, zoólogos e historiadores, juristas e médicos. Mas talvez nos tomemos melhores professores, médicos e juízes, ou – dito com mais prudência – em todo o caso, diferentes, mesmo que também, então, – a saber, na profissão – nada possa começar com a questão.

Com a nossa questão não podemos nem substituir, nem melhorar as ciências. No entanto, quereríamos colaborar na preparação de uma decisão. Esta decisão é a seguinte: é a ciência o padrão de medida para o saber, ou há um saber no qual, em primeiro lugar, se determinam os fundamentos e os limites da ciência e, com isso, a sua eficácia própria? É este saber autêntico necessário a um povo histórico, ou pode passar-se sem ele e substituí-lo por outra coisa?

Mas as decisões não se conseguem tomar só porque se fala delas, mas porque se criam disposições e se manifestam atitudes nas quais a decisão é inevitável e em que, se ela não acontece, isso toma-se a decisão mais essencial.

O que é mais próprio de tais decisões consiste em que elas só podem ser preparadas por uma única questão, com a qual, de acordo com a opinião usual e na perspectiva da criada, nada se pode começar. Com isto, esta questão desperta sempre aparência de ser um querer-saber-mais (Besserwillenwollen) do que as ciências. «Mais», significa sempre uma diferença de grau no interior de um mesmo domínio. Mas, com a nossa questão, colocamo-nos fora das ciências e o saber a que a nossa questão aspira não é nem melhor, nem pior – mas completamente diferente. Diferente das ciências, mas também diferente daquilo a que se chama uma «concepção-do-mundo». (p. 18-21)

Reid & Crowe

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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