GA40:189-193 — ser – idea – physis

Carneiro Leão

No fim surge, como nome normativo e predominante do Ser, a palavra idea, eidos, “ideia”. Desde então a interpretação do Ser, como ideia, domina todo o pensar ocidental, por através da história de suas transformações, até os dias de hoje. Nessa proveniência está também fundado o fato de que, na conclusão grandiosa e final da primeira etapa do pensamento ocidental — a saber no sistema de Hegel — a realidade do real, o ser em sentido absoluto, foi concebido como “ideia” e assim expressamente chamado. Todavia o que significa ter Platão interpretado a physis como idea?

Já na primeira caracterização introdutória da experiência grega do Ser foram enumerados, entre outros, os títulos idea, eidos. Ao depararmo-nos diretamente com a filosofia de Hegel ou com a de qualquer outro pensador moderno ou com a Escolástica Medieval ou até mesmo, ao encontrarmos, em qualquer parte, o emprêgo do nome “ideia” para o Ser, temos que confessar, para não nos iludirmos a nós mesmos, que não compreendemos nada com os recursos das representações correntes. Ao contrário, compreendemos tal fato, quando provimos do princípio da filosofia grega. Poderemos, então, medir logo a distância entre a interpretação do Ser, como physis e a interpretação do Ser como idea.

A palavra, idea significa o visto no visível, o viso que alguma coisa oferece. O que se oferece, é o aspecto (Aussehen), eidos, do que vem ao encontro. O aspecto de uma coisa constitui aquilo em que ela, como dizemos, se nos apresenta, se nos pro-põe e, como tal, está diante de nós; é aquilo em que e como tal, ela está presente (an-west), o que significa aqui, para os gregos, aquilo em que e como tal, ela é. Tal estar é a consistência do que surgiu e brotou a partir de si mesmo: é a consistência da physis. Por outro lado, esse estar-presente do consistente é, ao mesmo tempo, considerado a partir do homem, o proscênio do que se apresenta (an-west) a partir de si mesmo; é o perceptível. No aspecto, o presente, o ente, se faz presente em sua qualidade e modalidade. É percebido e assumido. Está na posse de um tomar. É o que se tem nessa posse. É a presença (An-wesen) disponível do presente: ousia. Desse modo ousia pode significar ambas as coisas: presença de um presente e o presente na quididade de seu aspecto.

É aqui que se oculta e esconde a origem da distinção subsequente de essentia e existentia. (Se porém se toma a distinção corriqueira de existência e essentia, por assim dizer cegamente, da tradição, nunca se poderá entender, como e em que medida existentia e essentia com sua distinção se separam do ser do ente, para caracterizá-lo. Se, no entanto, concebermos a idea (o aspecto) como presença, então essa se mostra, como consistência num duplo sentido. Pois no aspecto, se encontra, de um lado, o estar-fora-a-partir-da-re-velação (das Heraus-stehen-aus-der-Unverborgenheit), o simples estin. De outro lado, no aspecto se mostra o que nele se apresenta, o ti estin)

Assim a ideia constitui o Ser do ente. Idea e eidos se empregam aqui num sentido mais amplo, não só para o que se vê com os olhos do corpo, mas para tudo que se pode perceber. O que um ente é reside em seu aspecto, o qual, por sua vez, apresenta (deixa fazer-se presente) esse “o que”, i.é a quididade.

Mas, já nos teremos perguntado a nós mesmos, essa interpretação do Ser, como idea, não será, então, autenticamente grega? Ela se segue, com irrecusável necessidade, do fato de o Ser ter sido experimentado como physis, como vigor que brota e surge, como aparecer, como estar-à-luz. Que outra coisa mostra, no seu aparecimento, aquilo que aparece, senão o seu aspecto. Em que medida essa interpretação do Ser como idea se pode afastar e distanciar ainda da physis? Não estará com toda razão a tradição da filosofia grega, quando, por tantos séculos, a vem considerando à luz da filosofia platônica? A interpretação do Ser como idea por Platão significa tão pouco um afastamento e menos ainda uma decadência do princípio, que se deve até dizer que ela, ao fundamentá-lo na “teoria das ideias”, o apreende, de um modo mais desenvolto e preciso. Platão é a consumação do princípio.

De fato não se poderá negar, que a interpretação do Ser, como idea resulte e provenha da experiência fundamental do Ser, como physis. Trata-se, como dizemos, de uma consequência necessária da essencialização do Ser, como o aparecer nascente. Nisso não vai nada de afastamento ou mesmo de decadência do princípio. Certamente que não!

Se, porém, o que é uma consequência essencial, fôr elevado à condição de Essencialização e passar, assim, a ocupar o lugar da Essencialização, o que se há de pensar então? Então se instaura a decadência, que, por sua vez, frutificará consequências particulares. É o que aconteceu. O decisivo não é ter sido caracterizada a physis como idea mas a idea se haver apresentado e imposto como a interpretação única e normativa do Ser.

Poder-se-á avaliar facilmente a distância que medeia entre ambas as interpretações, considerando-se a diversidade de perspectivas, em que se movem ambas as determinações do Ser, como physis e idea. Physis é o vigor imperante que surge, o estar-em-si-mesmo, é a consistência. Idea é o aspecto, entendido como o que é visto; é uma determinação do consistente, enquanto e só enquanto ele vem ao e de encontro a uma visão. Mas a physis, enquanto vigor nascente, já é também um aparecer. Realmente. Apenas aparecer tem dois sentidos. Uma vez significa o erigir-se (sich-zum-Stand-bringen) na unidade de reunião, que recolhe e assim consiste. Outra vez, porém, significa oferecer para a visão um frontispício (Vorderflaeche), uma superfície, um aspecto, que já se sustém num estado de consistência.

Considerada a partir da noção de espaço, a distinção entre os dois aparecer é a seguinte: o aparecer, no primeiro sentido e no sentido propriamente dito, ocupa o espaço, erigindo-se numa consistência recolhida; o conquista, como o que assim consiste; se cria para si espaço, opera tudo, que lhe pertence, sem ser reproduzido. O aparecer, no segundo sentido, surge e se apresenta de um espaço já pronto e constituído e é visto pela visão dentro das dimensões já estruturadas desse espaço. O viso, que a coisa faz e apresenta, é que se torna o decisivo e não a coisa em si mesma. O aparecer, no primeiro sentido, é o que, pela primeira vez, rasga e abre, i.é instaura espaço. O aparecer no, segundo sentido, dá apenas os contornos e as dimensões do espaço já aberto.

Não obstante, não já diz a sentença do Parmênides, que Ser e Percepção se pertencem reciprocamente, portanto, o visto e o ver? obviamente, o que é visto, um visto pertence a todo ver, disso, porém, não se segue, que só o ser-visto, como tal, possa e deva determinar sozinho a presença (Anwesen) do que é visto. E é justamente a sentença de Parmênides que diz, que o Ser não deve ser compreendido a partir da percepção, i.é só e apenas, como o percebido, mas é a percepção que é em virtude e por graça do Ser. A percepção deve abrir e manifestar o ente de tal maneira, a ponto de repor o ente em seu Ser, de tomá-lo em função do fato de que ele e de como ele se apresenta. Por outro lado, na interpretação do Ser, como idea não apenas uma consequência da Essencialização se desvirtua na própria Essencialização como também o que assim se desvirtua, ainda é falsificado, e novamente dentro do curso da experiência e interpretação grega.

A ideia constitui, como aspecto do ente, aquilo que esse é. A quididade, a “essência” nesse sentido, i.é o conceito de essência, torna-se igualmente ambíguo:

a) um ente se essencializa, vige e vigora, evoca e adquire o que lhe pertence, i.é também e justamente o conflito;

b) um ente se apresenta como este e aquele; possui tal determinação quiditativa.

Como na transformação da physis na ideia, o ti estin (a quididade) surge e como dele se distingui o hoti estin (o fato de ser) i.é a proveniência essencial da distinção de essentia e existentia, a isso já se fêz alusão, embora disso aqui não se trate (Foi objeto de uma preleção inédita do semestre de verão em 1927).

Tão logo, porém, a Essencialização do Ser se acha na quididade (Ideia), essa, como o ser do ente, se torna também o que há de mais ente no ente. É, assim, o ente propriamente dito, ontos on. O Ser, como ideia, se converte então no ente propriamente, e o ente mesmo, o que antes imperava no vigor, degrada-se, no que Platão chama me on, no que propriamente não devia ser e também propriamente não é. Pois ele desfigura sempre a ideia, o puro aspecto, ao realizá-la, configurando-a na matéria. Por seu turno, a idea se torna o paradeigma, o paradigma, a figura exemplar. Assim a ideia se converte necessariamente em ideal. O exemplo, que se configura segundo a figura exemplar, não “é”, em sentido próprio, mas tem apenas parte no Ser, methexis. Rasga-se e se estabelece o chorismos, o abismo entre a ideia, como o ente propriamente, a figura exemplar e originária, e o não-ente propriamente, o exemplo configurado e imitado.

O aparecer recebe então da Ideia um outro sentido. O que aparece, a aparência, já não é a physis, o vigor imperante que surge, nem também o mostrar-se do aspecto. Aparência é agora o surgir da cópia, do exemplo. Enquanto nunca atinge a sua figura exemplar e originária, o que aparece é uma simples aparência, propriamente um parecer, o que significa um defeito e deficiência. É agora que se separam on e phainomenon. Nessa separação radica uma consequência essencial. Visto que a ideia é o ente propriamente e o modêlo exemplar, toda abertura e manifestação do ente tem que procurar igualar-se ao exemplar originário, deve adequar-se ao modêlo, conformar-se à forma da ideia. A verdade da physis, a aletheia, entendida como a re-velação vigente no vigor imperante do que brota, torna-se homoiosis e mimesis conveniência, adequação, um regular-se com, converte-se em correção (Richtigkeit) da visão, da percepção, como representação. [GA40CL:200-204]

Ackermann Pilári

Kahn

Fried & Polt

Original

  1. “Das Aussehen eines Dinges ist das, worin es sich uns, wie wir sagen, präsentiert, sich vor-stellt und als solches vor uns steht, worin und als was es an-west, d. h. im griechischen Sinne ist[↩]
  2. The Greek word ousia, etymologically “beingness,” originally was used to mean property or holdings. In later philosophical usage it came to mean substance or essence. See pp. 64 and 207.[↩]
  3. The brackets are absent in the 1953 edition. Instead, only the portion of this paragraph that follows the first sentence is parenthesized.[↩]
  4. Heidegger is contrasting the verb aufreißen (to rip open) with the related noun Aufriß (an outline, diagram, architectural projection, or perspective view).[↩]
  5. See wesen in German-English Glossary.[↩]
  6. In parentheses in the 1953 edition. The lecture course in question is The Basic Problems of Phenomenology, now available as volume 24 of the Gesamtausgabe, and in an English translation by Albert Hofstadter (Bloomington: Indiana University Press, 1982). The distinction between essentia and existentia is discussed in part I, chapter 2.[↩]
  7. This and the following paragraph employ a number of words related to Bild (picture, image) and bilden (to form or build). These include hineinbilden (incorporate, or etymologically “form into”), nachbilden (imitate, or “form after”), Musterbild (model or paragon, or “model picture”), Vorbild (prototype, or “fore-picture”), Urbild (archetype, or “primal picture”), and Abbild (likeness, or “off-picture”).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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