GA40:158-160 – o homem é o que há de mais estranho

Carneiro Leão

“Muitas são as coisas estranhas, nada porém
há de mais estranho do que o homem”.

Nesses dois primeiros versos já, de antemão, se esboça tudo aquilo que, durante todo o canto, procurar-se-á alcançar nos vários versos e esculpir na estrutura das palavras. Dito com uma palavra: o homem é to deinotaton o que há de mais estranho. Esse dizer concebe o homem pelos limites supremos e pelos abismos mais surpreendentes de seu ser. Essa surpresa e finitude nunca se tornarão visíveis aos olhos de uma mera constatação e descrição do que é objetivamente dado (Vorhandenes), ainda que fossem mil os olhos que quisessem encontrar no homem estados e propriedades. Tal ser só se revela e se abre a um projeto poético-pensante. Não se encontra nada de uma descrição de exemplares humanos, dados objetivamente, nem tão pouco uma exaltação ridiculamente cega da essência do homem de baixo para cima. A partir de um ressentimento insatisfeito, que procura agarrar-se a uma importância, cuja ausência se ressente. Nada da sobranceria de uma personalidade. Entre os gregos não há ainda personalidade (por isso também nada de super-pessoal (über-persoenlich) . O homem é to deinotaton, o que há de mais estranho no estranho. A palavra grega deinon, como a nossa tradução, necessitam aqui uma explicação prévia. Essa só poderá ser dada a partir de uma previsão inexpressa de todo o canto, que é a única coisa que dá uma interpretação adequada para os dois primeiros versos. A palavra grega deinon é ambígua: oscila naquela estranha ambiguidade, com que o dizer dos gregos percorria as disposições contrapostas do Ser (die gegenwendigen Aus-einander-setzungen des Seins).

Uma vez deinon significa o terrível, não porém os pequenos temores e, muito menos ainda, possui aquela significação decadente, néscia e inútil, em que se usa hoje a palavra, quando se diz “terrivelmente belo”. Deinon é o terrível no sentido do vigor predominante (überwaeltigendes Walten), que provoca, simultaneamente e de modo igual, tanto o terror do pânico, a verdadeira angústia, como o temor concentrado, quieto, que vibra em si mesmo. A violência predominante é o caráter essencial do próprio vigor que impera (Walten) . Onde esse irrompe, pode reter em si o seu poder subjugador. Todavia não se torna, por isso, mais inofensivo e sim ainda mais terrível e distante.

Outra vez, deinon significa o vigoroso no sentido daquele que usa o vigor da violência. Que não apenas dispõe de violência mais instaura o vigor da violência. (Gewalt-tätig), enquanto o emprego de violência constitui a feição fundamental, não de seu agir, mas de sua existência. A palavra, “instaurar o vigor da violência” damos aqui um sentido essencial, que em princípio transcende o significado corrente segundo o qual indica, às mais das vezes, arbítrio e crueldade. Assim a violência do vigor é considerada dentro de um âmbito em que o critério da existência é dado pelo acôrdo e contrato de equiparação e mútua assistência e, em consequência, se despreza, necessariamente, toda e qualquer violência, como simples perturbação e violação.

Como vigor imperante, o ente em sua totalidade é o que impõe o vigor, que subjuga (das Überwältigende), o deinon no primeiro sentido. O homem, porém, é deinon uma vez, porquanto permanece ex-posto a esse vigor imposto, visto que pertence em sua essencialização ao Ser; outra vez, é deinon, por ser o que instaura o vigor da violência no sentido indicado em segundo lugar. (Ele colige o vigor imperante da violência e permite manifestar-se). A instauração do vigor não é uma atividade a mais e ao lado de outras, mas o homem é essa instauração no sentido de que, no fundo e em sua existência, deixa imperar o vigor, usando de violência contra a imposição e o jugo do próprio vigor (gegen das Überwältigende) . Destarte, por ser duplamente deinon num sentido originariamente unitário, o homem é to deinotaton, o mais vigoroso: o que instaura vigor no meio do vigor que impõe o seu jugo (gewalt-tätig innitten des Überwältigenden).

Mas, por que então traduzimos deinon por “estranho”? Não foi certamente para encobrir e diminuir o sentido do vigorante, do que impõe o jugo de seu vigor, nem também da existência vigorosa. Muito pelo contrário. Posto que o deinon se diz, no mais alto grau de potenciação e conjugação, do ser do homem, por isso a essencialização do ser assim determinado tem que tornar-se logo visível numa perspectiva decisiva. Todavia essa caracterização do vigente e vigorante, como o estranho, não será uma determinação suplementar e supletiva, a saber, com vistas à ação que sobre nós exerce o vigor, enquanto se trata precisamente de compreender o deinon, como e naquilo que ele é em si mesmo? Mas nós aqui não entendemos “estranho” no sentido de uma impressão causada em nossos estados emocionais .

“Estranho” entendemos como o que sai e se retira do ”familiar” (das Heimliche) i.é daquilo que nos é caseiro, íntimo, habitual, não ameaçado. O estranho não nos deixa estar em casa. Nisso reside o vigor que se impõe e subjuga (das Überwältigende) . O homem é o que há de mais estranho, não só porque conduz o seu ser no meio do estranho, assim entendido, mas por afastar-se e sair dos limites, que constituem, em primeiro lugar e às mais das vezes, a sua paisagem caseira e habitual, por transpor como o que instaura vigor, as raias do familiar e se aventurar justamente na direção do estranho no sentido do vigor que se impõe.

Para se avaliar, porém, em todo o seu alcance e importância, essa palavra sobre o homem, temos também de levar em conta, que ela não pretende atribuir-lhe simplesmente uma propriedade especial, como se o homem, além de ser o que há de mais estranho ainda fosse outras coisas. Ela diz, ao contrário, que ser o mais estranho é o feitio fundamental da Essencialização o homem, no qual se inscrevem cada vez, sempre e necessariamente todos os demais traços e caracteres. A afirmação, ” o homem é o que há de mais “estranho”, dá a definição propriamente grega do homem. Só atingiremos completamente o acontecer dessa estranheza na medida em que também fizermos experiência do poder da aparência e do combate com ela, como pertencente à essencialização da existência. [GA40CL:171-174]

Ackermann Pilári

Fried & Polt

Original

  1. In parentheses in the 1953 edition.[↩][↩]
  2. There is a close etymological connection among das Gewaltige (the violent), das Überwältigende (the overwhelming), and das Walten (the sway). See walten in German-English Glossary and Translators’ Introduction, p. xiii.[↩]
  3. “Uncanny” translates unheimlich, which is based on the root Heim, or home. (“Canny,” like the German heimlich, can mean “snug and cozy.” The root of “canny” is “can” in the obsolete sense of “know.” What is uncanny is unfamiliar, beyond our ken, and thus unsettling.)[↩]
  4. “Homely” translates heimisch, meaning “domestic.” “At home” translates einheimisch.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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