GA38:33-34 – Quem somos nós mesmos?

Pacheco & Quadrado

O nós, o vós, o tu, o eu são aquilo por que se pergunta. Por conseguinte, os homens são-nos dados, numa primeira abordagem, como nós e vós, e eu, e tu. (80) À pergunta – como se definem os nós e vós, e eu, e tu poderíamos responder: eles são, diferentemente das plantas, animais, pedras, etc., pessoas e associações de pessoas. Mas o que devemos entender nós sob o título “pessoas”’? Independentemente do tacto de eu, tu, nós e vós não serem inequívocos, nem claros na sua origem, verificamos que, com esta resposta, nos desviámos da direcção da pergunta para a pergunta pelo quê, pois procurámos determinar o que os tu, eu, e vós, e nós são. Nós temos, contudo, de conservar a direcção da pergunta pelo quem e temos de perguntar quem vem ao nosso encontro, a partir da direcção dessa pergunta.

— Quem és tu? Quem és tu mesmo? Quem sou eu mesmo? Quem somos nós mesmos? – a pergunta pelo quem aponta para o domínio daquele ente que é sempre um si mesmo (Selbst). Assim, nós podemos determinar a resposta à pergunta prévia: o homem é um si mesmo.

Quem nos dera saber agora o que é um si mesmo! Aqui falta-nos completamente o conceito. Nós pressupomos de maneira pouco clara um determinado sentido. Compreendemos o que quer dizer nós mesmos, tu mesmo, eu mesmo. Mas a determinação da essência precisa sempre do conceito. Assim a resposta prende só de momento o que é estranho. Portanto, o estranho também não desapareceu, pelo contrário.

Mas o estranho não está no facto de não termos do si mesmo nenhuma definição, mas no facto de, com o nosso perguntar, já por duas vezes nos termos desviado do sentido. É certo que nós conservámos a (81) direcção quando já não perguntavamos “o quê”, mas sim “quem”. A resposta “ele mesmo” está correcta, na medida em que dizemos aquilo que já se mostrou a nós, na direcção da pergunta. Ela é, porém, não verdadeira, na medida em que ela oculta o que nela permanece propriamente encerrado. Na ciência, sabemos em geral dizer muitas coisas correctas, mas muito poucas verdadeiras. A ciência move-se a maior parte do tempo em redor do correcto e não do verdadeiro.

Ora, em que medida é, porém, apesar de tudo, a resposta em si correcta – “o homem é um si mesmo” – não verdadeira? Porque nós não persistimos na pergunta, não respondemos a partir da direcção que a pergunta aponta. – “Quem é o homem?” – um si mesmo. – “Quem é um ser si mesmo?” – nós! – “Quem somos nós então, quem somos nós, nós, os que perguntamos?”

A pergunta preliminar funda-se no homem, como um si mesmo. A pergunta reenvia o que pergunta em direcção a si mesmo. Nós mesmos somos os questionados. Quando o perguntador pergunta quem o homem é como um si mesmo, torna-se ele mesmo o questionado. Por isso, a pergunta não diz: – “o que é o homem?” nem – “quem é o homem?” – , mas – “quem somos nós mesmos?”

Assim, está definitivamente excluído que nós perguntemos por tipos, épocas, culturas. Perguntamos por aquilo que é perguntado na pergunta. Nós aceitamos a resposta correcta como resposta verdadeira só então quando, nesta resposta, não esquecermos a pergunta incluída, quando não entendermos mal a resposta, como determinação do quê, como propriedade, mas (82) como orientação para o si mesmo, nomeadamente para nós mesmos.

— Quem somos nós mesmos? – Isto torna-se lentamente claro quando nós percorremos passo a passo e de modo rigoroso a pergunta pela essência do homem. Daí resulta a dificuldade peculiar. Não admira que a pergunta pelo homem, como pergunta, até agora tenha sido tão pouco desenvolvida, não admira que as respostas sejam tão confusas, acidentais e indecisas. Pois um labirinto após outro espreita no caminho. Não somente esquecemos logo, perante a correcção da resposta, a verdade da resposta – nós ignoramos também sempre de novo a verdadeira ordem interna e a sequência da pergunta.

Parece que a pergunta “o que é um si mesmo?” é correcta. Nós vemos, porém, já na forma interrogativa “o que é?” que nos afastámos de novo da direcção. Na verdade mostrar-se-á que a pergunta “o que é o si mesmo?” está correcta num determinado ponto da sua direcção, mas apenas num determinado ponto – e só então quando desenvolvemos suficientemente a direcção da pergunta.

A partida, podemos, porém, passar bem sem o conceito do si mesmo. Apresentámos aqui a prova. E que compreendemos a pergunta enquanto ela se dirige a nós. Nós temos uma pré-compreensão da palavra e do seu significado, contudo, uma compreensão não conceptual, não a podemos definir logo à primeira. Enquanto aspiramos ao conceito, nós designamos a pré-compreensão de pré-conceptual. A resposta “o homem é um si mesmo” descobre-se-nos como pergunta que aponta na direcção de nós mesmos. (83)

Ficamos expostos durante todo o percurso à pergunta “quem somos nós?”, e quanto mais verdadeiramente a percorrermos, tanto mais insistentemente toda a pergunta posterior reconduzirá a nós mesmos. Portanto, não progredimos, mas andamos à volta de nós mesmos cada vez mais perto e mais nitidamente.

Gregory & Unna

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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