GA36-37:41-43 – “eu” cartesiano

Carneiro Leão

y) O fundamentum como eu

Entretanto, não apenas o possível caráter do fundamentum está antecipadamente predeterminado pelo predomínio da ideia matemática do método, como também este método decide previamente, de modo específico, o único fundamento que, como tal, pode vir ao caso.

Entregar-se, de uma vez por todas ao método, significa: buscar o que há de mais simples e evidente, isto é, o indubitável. A dúvida tem, primeiro, o caráter de afastamento e exclusão. Excluir da validade tudo que não puder resistir-lhe, isto é, tudo que for objeto matemático, no sentido mais amplo de todos. Afastar tudo de que simplesmente se pode, de alguma maneira, duvidar. Quando tiver sido afastado tudo de que se puder duvidar, resta, em princípio apenas, o simples duvidar em si mesmo. Ora, duvidar é uma atividade de pensar, cogitatio, em sentido mais amplo. Assim, o que se pode encontrar como o indubitável que se procura, deve ter o caráter de pensamento. Ora, todo pensamento pensa (55) com o pensador, que pensa; o pensamento sabe de si, como eu penso. A coisa indubitavelmente dada é o eu, que pensa.

δ) O eu como eu mesmo. A consideração do si-mesmo como ilusão

Assim emerge, como fundamento indubitável, a primeira sentença, a mais simples de todas, o ser coisa do eu. O eu do homem que pensa desloca-se, destarte, para o centro do que pode tornar-se saber propriamente humano. O eu, porém, significa, para o homem individual, e, em primeiro lugar, o que ele mesmo é, aquilo em que ele tem de apropriar-se de si-mesmo. O retorno radical para o eu adquire então o caráter de uma consideração originária de si mesmo.

Todavia, o retorno para o eu através da consideração da dúvida dá apenas a aparência de originariedade e radicalidade (por trás e acima de tudo está o dogma do primado do método matemático). Assim como o retorno é uma aparência, também o rigor da consideração do si-mesmo é uma ilusão. Pois não está, de forma alguma, acertado que o homem possa chegar a ele mesmo pelo caminho do pensamento do “eu”, se o próprio e si-mesmo do homem não for algo muito mais originário, que se ausenta e desaparece justamente através do eu. A pretensa consideração do si-mesmo proposta por Descartes é uma ilusão, por simplesmente não atingir a questão mencionada.

Vou dar duas provas sobre a medida em que a consideração fundamental de Descartes, fundada no eu, não atinge o si-mesmo próprio do homem, ele mesmo!

ε) A essência do eu (mesmo) como consciência

Sobretudo, é a partir de Descartes que se vê a essência do eu na consciência. O eu é o que sabe de si mesmo; este estar consciente de si mesmo determina o ser do si-mesmo. A consequência natural dessa determinação é que o eu se dissolve num feixe de representações. Estas permanecem assim, mesmo que todas elas se ordenem para um pólo só, o chamado pólo do eu, donde elas se irradiam. Nem o agir, nem mesmo a (56) decisão, nem até o caráter fundamental da historicidade e da dependência essencial do homem em relação com a co-presença dos outros homens servem aqui de princípio e arranque para si mesmo. O caráter pontual, sem história nem espiritualidade, do eu cartesiano corresponde inteiramente ao que o primado do pensamento matemático decide a priori sobre seus possíveis objetos.

A consciência do eu e sua forma é que aqui determinam o ser do si-mesmo. Este primado da consciência diante do ser decorreu, de modo totalmente arbitrário, do predomínio do método matemático. As consequências desastrosas deste primado no tempo posterior a Descartes nos vêm ao encontro no sistema de Hegel. O eu é entendimento e vontade determinada pelo entendimento, não, porém, espírito; o conceito posterior de espírito ainda não está presente. [GA36-37ECL:55-57]

Fried & Polt

Original

[Excerto de HEIDEGGER, Martin. Ser e Verdade. 1. A questão fundamental da filosofia. 2. Da essência da verdade. Tr. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Petrópolis, 2007, p. 55-57 (GA36-37)]

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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