GA3:205-208 – §36 O fundamento estabelecido e o resultado da instauração kantiana do fundamento da metafísica.

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Percorrendo as diversas etapas da instauração kantiana, descobrimos como esta alcançou finalmente à imaginação transcendental que se revela ser o fundamento da possibilidade intrínseca da síntese ontológica, quer dizer da transcendência. Quando se constatou este fundamento e o explicitou-se originalmente como temporalidade, tem-se verdadeiramente o resultado da instauração kantiana? Ou a instauração kantiana conduz ainda a outra coisa? Se quisemos nos satisfazer de constatar o dito resultado, não haveria necessidade de perseguir com tanta aplicação o devir interno da instauração do fundamento em cada uma de suas etapas sucessivas. Bastaria citar os textos relativos à função central da imaginação transcendental na Dedução transcendental e no Esquematismo transcendental. Se no entanto o resultado não consiste em saber que a imaginação transcendental constitui o fundamento, que outro resultado daria então a instauração do fundamento?

Se o resultado da instauração do fundamento não reside na sua conclusão literal, devemos nos demandar aquilo que o devir mesmo da instauração revela para o problema do fundamento da metafísica. Então o que se realiza na instauração kantiana? Isto: fundar a possibilidade intrínseca da ontologia denota ser um desvelamento da transcendência, quer dizer da subjetividade do sujeito humano.

A questão da essência da metafísica é a questão da unidade das faculdades fundamentais do “espírito” humano. A instauração kantiana faz descobrir que fundar a metafísica é uma interrogação sobre o homem, é antropologia.

Mas, quando de uma primeira tentativa de apreender mais originalmente a instauração kantiana (Cf. § 26, p. 185 sqq.), a redução à antropologia não fracassou? Sem dúvida, pois que foi demonstrado que as explicações fornecidas pela antropologia, relativamente ao conhecimento e a suas duas fontes, são desveladas de uma maneira mais original pela Crítica da Razão Pura. Mas decorre daí apenas que a antropologia apresentada de fato por Kant é uma antropologia empírica e não uma antropologia satisfazendo às exigências da problemática transcendental, quer dizer uma antropologia pura. Aliás a necessidade de uma “antropologia” adequada, quer dizer “filosófica”, torna-se mais que urgente para a instauração do fundamento da metafísica.

Que o verdadeiro resultado da instauração kantiana do fundamento resida na apreensão da ligação necessária entre a antropologia e a metafísica, é o que atestam sem equívoco possível as próprias declarações de Kant. A instauração kantiana do fundamento da metafísica visa fundar a “metafísica em sua meta ultima”, quer dizer a metaphysica specialis, à qual pertencem três disciplinas: a cosmologia, a psicologia e a teologia. A instauração, enquanto é uma crítica da razão pura, deve compreender estas últimas segundo sua essência intrínseca, se realmente se quer apreender em sua possibilidade e seus limites a metafísica como “disposição natural do homem”. A essência fundamental da razão humana manifesta-se nos “interesses” que, enquanto razão humana, a preocupam constantemente. “Todo interesse de minha razão (especulativa assim como prática) está contido nestas três questões:

“1) Que posso saber?

2) Que devo fazer?

3) Que me é permitido esperar?” (A 804 sq., B 832 sq. (trad. cit., p. 625).)

Ora estas três questões são aquelas que se designam como objeto às três disciplinas da metafísica propriamente dita, quer dizer da metaphysica specialis. O saber humano concerne a natureza, quer dizer aquilo que é dado o mais amplo significado do termo (cosmologia); a atividade do homem concerne sua personalidade e sua liberdade (psicologia); enfim sua esperança se concentra sobre a imortalidade com beatitude, quer dizer como união com Deus (teologia).

Estes três interesses originais determinam o homem, não enquanto um ser natural mas enquanto “cidadão do mundo”. Formam o objeto da filosofia “considerada sob sua dimensão cosmopolita” (in weltbürgerlicher Absicht), quer dizer que definem o campo da verdadeira filosofia. Eis porque kant diz na introdução a seu curso de lógica, desenvolvendo o conceito da filosofia: “O campo da filosofia, segundo esta significação cosmopolita, se deixa conduzir pelas seguintes questões:

“1) Que posso saber?

2) Que devo fazer?

3) Que me é permitido esperar?

4) Que é isto o homem? (Oeuvres (Cass.), VIII, p. 343.)

Uma quarta questão se acrescenta aqui às três questões já citadas. Mas não é preciso pensar que esta questão relativa ao homem só exteriormente aditada às três primeiras e é portanto supérflua, se se considera que a psychologia rationalis, enquanto disciplina da metaphysica specialis, já trata do homem?

No entanto Kant não acrescentou simplesmente esta quarta questão às três primeiras, pois disse: “No fundo, se poderia por tudo isto por conta da antropologia posto que as três primeiras questões relacionam-se à quarta.” (Op. cit., p. 344 – sublinhado por Heidegger)

E por aí Kant enunciou sem equívoco o resultado autêntico de sua instauração do fundamento da metafísica. Por aí também, a tentativa de repetir a instauração recebe uma indicação precisa da tarefa que lhe incumbe. Sem dúvida, Kant não menciona a antropologia que de uma maneira muito geral. No entanto depois do que foi dito acima, é fora de dúvida que só uma antropologia filosófica é capaz de assumir a instauração do fundamento da verdadeira filosofia, da metaphysica specialis. Não se deve concluir que uma repetição da instauração kantiana tomará para tarefa específica, o desenvolvimento sistemático de uma “antropologia filosófica” e que portanto a ideia desta deverá a princípio ser determinada?

Waelhens et Biemel

Ibscher Roth

Richard Taft

Original

  1. Cf. § 26, p. 185 sqq.[↩]
  2. A 804 sq., B 832 sq. (trad. cit., p. 625).[↩]
  3. Œuvres (Cass.), VIII, p. 343.[↩]
  4. Op. cit., p. 344 (souligné par Heidegger).[↩]
  5. See above, §26, p. 89ff.[↩]
  6. a. Philosophy as teleologia rationis humanae. Critique of Pure Reason.[↩]
  7. A 804f., B 832f.[↩]
  8. b. wrong! Freedom belongs to Cosmology because it was thought of as “primordial” [“Ursache”] – see SS 1930 (Der Anfang der abendländischen Philosophie, GA35)[↩]
  9. Werke, vol. VIII, p. 343.[↩]
  10. Ibid., p. 344.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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