GA31:196-199 – ação

Casanova

Essa apreensão da causalidade conduz, então, a um conceito que é dotado de significação para o problema do acontecimento (229) em geral e para o acontecimento da essência livre em particular; trata-se do conceito da ação. Nós costumamos usar para esse termo com frequência a palavra grega praxis (prattein – levar algo a cabo) e entender o elemento prático, por sua vez, em uma dupla significação: 1. O “homem prático”, que possui habilidades e sabe empregá-las no momento dado da maneira correta. 2. Praxis e ação, ao mesmo tempo no sentido acentuado da ação ética, do comportamento prático moral. Kant toma a práxis e o termo prático entre outras coisas nesse sentido acentuado. “Prático é tudo aquilo que é possível por meio de liberdade”. (Kants Beispiel von Kugel und Grübchen, a.a.O., A 800, B 828.) “Platão encontrou suas ideias antes de tudo naquilo que é prático, isto é, que se baseia na liberdade”. (Op. cit., A 314, B 371.)

A ação, por conseguinte, está essencialmente ligada à liberdade. No entanto, exatamente isso não é pertinente para Kant. Práxis e ação não se equivalem totalmente. “Ação” é, para Kant, muito mais o título para a efetivação em geral. A ação não está de modo algum articulada primária e unicamente com o comportamento ético e com o fazer moral-amoral. Ela não apenas não está ligada a um fazer conforme à razão, mas também não está articulada com um fazer psíquico. Ao contrário, ela está ligada ao acontecimento da natureza animada e, sobretudo, inanimada. As pessoas sempre desconsideraram esse fato na interpretação de Kant, tomando a ação desde o princípio como ação moral e não levando em consideração justamente o que acabamos de dizer. Atentar para isso não é, contudo, apenas uma exigência de adaptação à terminologia kantiana, mas possui antes uma amplitude fundamental. Se a ação significa o mesmo que produzir um efeito em geral e está primariamente orientada pelo acontecimento natural e por seu nexo efetivo, então o conceito da ação ética, livre ou, como Kant gosta de dizer, da ação “arbitrária”, justamente como ação, também está orientada ontologicamente (230) para o ser no sentido da presença à vista, para aquele modo de ser, que não caracteriza precisamente o ser da essência eticamente agente, a existência do homem. A existência do homem permanece, então, em seu modo de ser, de maneira principial, em meio a uma determinação falha ou, ao menos, em meio a uma fatídica indeterminação, por mais que o homem existente venha a ser faticamente distinto como pessoa ética, como ente, de maneira clara e decidida, das coisas naturais e das coisas em geral. Agir (ação) significa para Kant o mesmo que efetuar (efeito), o mesmo que o termo latino agere – effectus. Trata-se do conceito mais amplo em relação a fazer – facere –, ao qual pertence um tipo particular de efeito e effectus: a obra – opus.1

Todo fazer é um agir, mas nem todo agir é um fazer. “Fazer” no sentido de produzir, fabricar, empreender mesmo é distinto do “feito” no sentido da ação ética, de uma “ação que abre o espaço para o surgimento de um feito”. Para Kant, também há agir, lá onde nenhuma obra é produzida – na natureza. Por isso, Kant utiliza simplesmente a expressão, o conceito de uma “ação da natureza”.2 Nos “Prolegômenos”, ele fala da ação ininterrupta da matéria 3 e afirma, além disso, que toda causa natural “precisa ter começado a agir”.4 Na segunda analogia da Crítica da razão pura, o conceito da ação também é, então, determinado de maneira mais detida: “Ação já significa a relação do sujeito da causalidade com o efeito”.5 Ação não é simplesmente uma ocorrência, mas um processo, que tem em si uma dação, que pertence ela mesma ao acontecimento.6Sujeito” não significa aqui, porém, (231) por exemplo, “eu”, “si mesmo”, “pessoa”, mas o mesmo que o ente presente que já se encontra à base e que é causa. O termo sujeito precisa ser considerado aqui de maneira tão ampla quanto o termo ação. Em toda dação, portanto, reside um agir, na medida justamente em que a dação abarca em si um acontecimento condicionado e efetuado. A “ação” e, antes de tudo, a força são, portanto, como Kant diz no prefácio aos “Prolegômenos”, “conceitos que se seguem… à articulação entre causa e efeito”.7

Não se necessita mais agora de nenhuma explicitação pormenorizada, para deixar que se perceba qual é a amplitude da compreensão correta do conceito kantiano da ação para a elaboração do problema da liberdade. Pois se um “ato livre” é interpelado discursivamente como “ação originária”8, então ele nos volta, com isso, para o horizonte do conceito geral de efetuação e de causalidade, que são determinados primariamente por meio da causalidade da natureza. O agir da matéria não é um efetuar originário. O agir da pessoa ética é um efetuar originário, isto é, que não provém primeiramente de uma origem, mas que é ele mesmo uma origem. Assim, a partir do conceito da ação e de seu significado amplo vem à tona a imiscuição do conceito geral de causalidade na determinação da liberdade. Com isso, apreendemos de maneira cada vez mais clara o horizonte ontológico geral, no qual se encontra o problema da liberdade para Kant, na medida justamente em que a liberdade é uma espécie de causalidade.

Com base nessa explicitação do conceito de ação, conquistamos ainda uma caracterização ulterior e derradeira desse horizonte, isto é, daquele acontecimento que aduz as características universais do acontecimento em geral, características essas para as quais o “agir da matéria” é e continua sendo normativo. Na conclusão da discussão da segunda analogia, então, a mudança mesma é determinada mais detidamente em sua essência com vistas ao fato de se mos- trar que: a possibilidade da mudança se funda na continuidade da causalidade da ação. O novo momento, que vem à tona, é a continuidade – constância. Esse momento estrutural já vinha sendo sempre concomitantemente visado, mas não tinha sido destacado até aqui expressamente enquanto tal. A lei da continuidade de toda mudança funda-se na essência do tempo (intratemporalidade), no fato de o tempo não ser composto por partes, de todas as menores. Toda transição de um estado para o outro, estados esses que podem se dar em dois instantes, sempre acontece ainda em um tempo entre os instantes e pertence, por conseguinte, concomitantemente, à totalidade do tempo da mudança, razão pela qual toda causa de uma mudança anuncia essa sua causalidade durante o tempo como um todo. Dito de outro modo: a ação da matéria é incessante. Não há nenhum acontecimento repentino como irrupção a partir de um nada anterior puro e simples. Aqui também, o tempo é o fio condutor para a determinação da constância e, em verdade, como o tempo da natureza, tempo da copertinência de algo presente à vista.

Nós apresentamos agora suficientemente a concepção kantiana da essência da causalidade. Ela é uma das determinações ontológicas do nexo da presença à vista do ente presente à vista em seu acontecimento. O caráter possível de movimento desse acontecimento da natureza é a mudança, isto é, o evento acontece com base na persistência e ele acontece sob o modo de um agir constante. Os conceitos de ação e de constância são deduzidos primariamente da presença à vista das coisas corporais. Compreende-se a observação própria de Kant sobre o primado dessa região do ente junto à apresentação e ao preenchimento intuitivos daquilo que é pensado nas categorias universais. Onde a (233) causalidade é explicitada no sentido geral determinado até aqui, pressupõe-se aí concomitantemente um ente dotado de um tal modo de ser, a natureza. Ao mesmo tempo, porém, já sempre se acentuou até aqui muitas vezes o seguinte: liberdade é um tipo de causalidade. Nós também já atestamos essa concepção de Kant – mas apenas isso. O que falta até aqui?

Martineau

Sadler

Original

  1. Cf. Kant, Crítica da razão pura, § 43.[↩]
  2. Kant, Crítica da razão pura, A 547, B 575.[↩]
  3. Kant, Prolegômenos, § 53, p. 112 (IV, 344) Observação.[↩]
  4. Op. cit.,p. 112 (IV, 343).[↩]
  5. Kant, Crítica da razão pura, A 205, B 250.[↩]
  6. Cf. acima, p. 174esegs.[↩]
  7. Kant, Prolegômenos. Prefácio, p. 4 (V, 258).[↩]
  8. Kant, Crítica da razão pura, A 544, B 572.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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