GA3: ENTENDIMENTO DO SER

Casanova

Que nós, homens, nos relacionamos com o ente, é óbvio. Postos diante da tarefa de representar o ente, podemos em qualquer (226) altura mencionar um ente qualquer: aquele que nós não somos e que também não é igual a nós; aquele que nós mesmos somos; aquele que nós mesmos não somos, mas que é igualmente, enquanto si-mesmo, igual a nós. O ente nos é conhecido — mas o ser? Não nos dá uma vertigem se devemos determinar algo semelhante, ou apenas apreendê-lo propriamente? Não é o ser algo como o nada? De fato, não foi nada menos que Hegel quem disse: “O puro ser e o puro nada são, então, o mesmo”1.

Com a pergunta sobre o ser enquanto tal entramos na margem da completa obscuridade. Contudo, trata-se de não recuar prematuramente, mas de aproximar-se da completa peculiaridade da compreensão do ser. Pois, por mais impenetrável que seja a obscuridade que circunda o ser e o seu significado, permanece igualmente certo que, em qualquer altura e em todo o campo da manifestabilidade do ente, compreendemos algo como o ser, preocupamo-nos com o ser-quê e o ser-assim do ente, experimentamos e disputamos o que-é, decidimos sobre o ser-verdadeiro do ente e falhamo-lo. Em qualquer enunciar de uma proposição, por exemplo, “hoje é feriado”, compreendemos o “é” e, assim, algo como o ser.

No apelo “fogo!”, encontra-se: “Surgiu fogo, é preciso ajuda, salve-se – ponha o seu próprio ser em segurança – quem puder!”. No entanto, mesmo quando não fazemos propriamente enunciados sobre o ente, mas nos relacionamos silenciosamente com ele, compreendemos os seus caracteres relacionados uns com os outros – embora veladamente – do ser-quê, do que-é e do ser-verdadeiro.

Em cada afecção, na qual “se está assim ou assado”, o nosso ser-aí (Dasein) torna-se-nos manifesto. Compreendemos, então, o ser e, no entanto, falta-nos o conceito. Este compreender pré-conceitual do ser é, em toda a constância e amplidão, quase sempre inteiramente indeterminado. O modo de ser específico, isto é, das coisas materiais, das plantas, animais, homens, números, nos é conhecido, mas esse conhecido é enquanto tal desconhecido. Mais ainda: o ser do ente, compreendido pré-conceitualmente em toda a sua amplidão, constância e indeterminação, dá-se numa (227) completa ausência de questionamento. O ser enquanto tal é tão pouco questionado que parece que é como se não “houvesse” algo semelhante.

Esta compreensão do ser, que se tornou reconhecível em traços gerais, mantém-se no plano imperturbado e não ameaçado da mais pura evidência. E, no entanto, se não acontecesse (história enquanto destino do acontecimento-apropriador) o compreender do ser, o homem nunca conseguiria ser como o ente que ele é, por mais que estivesse munido de faculdades admiráveis. O homem é um ente que está no meio do ente, de tal modo que, nisso, o ente que ele não é, e o ente que ele mesmo é, sempre já se lhe tornaram particularmente manifestos. A este modo de ser do homem chamamos existência. Só com base na compreensão do ser, a existência é possível.

Na relação com o ente que o homem ele mesmo não é, o homem encontra o ente como aquilo que lhe serve de suporte, como aquilo para o qual ele é remetido, como aquilo do qual ele, no fundo, com toda a cultura e técnica, nunca se pode tornar senhor. Remetido para o ente que ele não é, ele, no fundo, não tem poder sobre o ente que ele mesmo, a cada vez, é.

Com a existência do homem acontece uma quebra no todo do ente de tal modo que só agora o ente se manifesta nele mesmo, isto é, como ente, numa amplidão a cada vez diferente, segundo diferentes níveis de clareza, em diferentes graus de segurança. Contudo, este privilégio de não estar apenas entre os outros entes também subsistentes sem que estes entes alguma vez se manifestem entre si enquanto tal, mas de, no meio do ente, estar entregue a ele enquanto tal e de estar atribuído a si mesmo enquanto ente, este privilégio de existir, alberga em si a urgência de precisar da compreensão do ser.

O homem não conseguiria ser o ente lançado enquanto si-mesmo, se não pudesse deixar-ser, em geral, o ente enquanto tal. Contudo, para poder deixar-ser o ente o que ele é e como ele é, o ente existente tem de já sempre ter projetado aquilo que encontra na perspectiva de que é ente. A existência significa a remissibilidade a um ente enquanto tal na atribuição ao ente para o qual assim se remete. (228)

A existência é em si, enquanto modo de ser, finitude 2 e, enquanto tal, é apenas possível com base na compreensão do ser. Algo como o ser apenas há, e tem de haver, onde a finitude se tornou existente. Manifesta-se, assim, a compreensão do ser que, desconhecida na sua amplidão, constância, indeterminação e ausência de questionamento, domina ao longo da existência do homem, enquanto o mais íntimo fundamento da sua finitude 3. A compreensão do ser não tem a inofensiva universalidade de uma propriedade do homem que surge frequentemente junto de muitas outras, a sua “universalidade” é a originariedade do mais íntimo fundamento da finitude do Dasein. E só porque a compreensão do ser é aquilo que no finito é mais finito que ela pode também possibilitar as chamadas capacidades “criadoras” do ser humano finito. E só porque ela acontece no fundamento da finitude é que ela tem a amplidão e a constância caracterizadas, mas também o estar-encoberto.

Com base na compreensão do ser, o homem é o aí com cujo ser acontece a irrupção inauguradora no ente, de tal modo que este se pode anunciar a si enquanto tal como um si-mesmo. Mais originário que o homem 4 é a finitude do Dasein nele.

A elaboração da pergunta fundamental da metaphysica generalis, do τί τὸ ὄν?, foi reenviada para a ideia mais originária da essência íntima da compreensão do ser, a qual, primeiro que tudo, suporta, impulsiona e dirige a pergunta explícita sobre o conceito de ser. No entanto, aspirou-se a uma versão mais originária do problema fundamental da metafísica com a intenção de tornar visível a conexão do problema da fundamentação com a pergunta sobre a finitude no homem. Mostra-se agora que não precisamos sequer perguntar sobre uma referência da compreensão do ser à finitude no homem; ela mesma é a mais íntima essência da finitude. Adquirimos, assim, aquele conceito de finitude que está subjacente a uma problemática da fundamentação da metafísica. Se esta fundamentação se apoia na pergunta sobre o (229) que o homem é, a questionabilidade desta pergunta está agora, num primeiro nível, eliminada, isto é, a pergunta sobre o homem ganhou em determinação.

Se o homem só é homem com base no Dasein nele, então a pergunta sobre aquilo que é mais originário do que o homem não pode ser principialmente nenhuma pergunta antropológica. Toda a antropologia, também a antropologia filosófica, já pôs o homem como homem.

O problema da fundamentação da metafísica encontra a sua raiz na pergunta sobre o Dasein no homem, isto é, sobre o seu mais íntimo fundamento, sobre a compreensão do ser enquanto finitude essencialmente existente. Esta pergunta sobre o Dasein pergunta de que essência é o ente assim determinado 5. Na medida em que a sua essência assenta na existência, a pergunta sobre a essência do Dasein é a pergunta existencial. No entanto, cada pergunta sobre o ser de um ente, e mesmo a pergunta sobre o ser daquele ente a cuja constituição de ser pertence a finitude enquanto compreensão do ser, é metafísica.

Portanto, a fundamentação da metafísica funda-se numa metafísica do Dasein. Será, então, de admirar que uma fundamentação da metafísica tenha ela mesma de ser, pelo menos, metafísica, e uma metafísica distinta?

Kant, em cujo filosofar o problema da possibilidade da metafísica estava tão desperto como nunca antes, e como desde então nunca esteve, não poderia ter compreendido o seu mais íntimo querer se não se lhe tivesse esclarecido esta conexão. Ele declarou-o na claridade e tranquilidade que lhe ofereceu imediatamente a conclusão da Crítica da razão fura. Sobre esta obra, no ano de 1781, Kant escreve ao seu amigo e aluno Markus Herz: “Este tipo de indagação permanecerá sempre difícil. Pois ela contém a metafísica da metafísica…” 6.

Esta palavra refuta definitivamente qualquer tentativa de procurar na Crítica da razão pura, mesmo que apenas parcialmente, uma “teoria do conhecimento”, mas também obriga qualquer (230) repetição de uma fundamentação da metafísica a ser tão clara sobre esta “metafísica da metafísica”, que esta possa ser trazida a um solo concreto que garanta ao acontecer da fundamentação uma via possível.

Roth

Taft

Original

  1. Wissenschaft der Logik(Ciência da Lógica), WW, vol. III, pp. 78 ss.[↩]
  2. 409b Nadidade do nadificar[↩]
  3. 410c e, assim, como a essência daquilo a que aqui se chama “finitude”[↩]
  4. 411d ex-sistente.[↩]
  5. 412c ser-aí (Dasein) nenhum “ente” em sentido ôntico[↩]
  6. WW (Cass.) IX, p. 198.[↩]
  7. Wissenschaft der Logik. Obras Completas, t. III, pp. 78 s.[↩]
  8. Wissenschaft der Logik, Werke, vol. Ill, p. 78f.[↩][↩]
  9. History as destiny of appropriation[↩]
  10. Nothingness of the Nothing (Nichtigkeit des Nichtens)[↩]
  11. and thus as the essence of this “finitude”[↩]
  12. ek-sistent[↩]
  13. Da-sein, not “being” in the ontic sense[↩]
  14. Geschichte als Gesdiict des Ereignisses[↩]
  15. Nichtigkeit des Nichtens[↩]
  16. und somit als das Wesen der hier genannten Endlichkeit[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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