GA27:31-33 – popularização da ciência

Uma vez que a ciência se tornou agora questionável para si mesma em sua própria significação, não subsistindo mais um ideal de formação e um estabelecimento originário de metas, ela cai como que no vazio. Certamente tememos admitir sem reservas e para nós mesmos essa conjuntura. Em todas as situações essenciais que podem se tornar críticas, o homem tenta se salvar por meio da fuga para o interior da convenção ou de algum substitutivo. Por que agora o empenho intransigente e indiscriminado pela popularização das ciências (Popularisierung der Wissenschaften)? Esforços no sentido da formação do povo que, do [34] ponto de vista social, podem ser necessários nunca são mais do que pretextos e ocasiões para se tirarem vantagens. Quando essa tendência de popularização partir das próprias ciências e for ativamente acionada por elas – muitos eruditos só continuam trabalhando em manuais e coletâneas de terceira e quarta categorias (o que é bem sintomático) —, então ela também precisará ter seu fundamento nas próprias ciências. Esse fundamento é duplo: 1. a penúria interna (innere Not), ou seja, a ausência de significação da ciência (Bedeutungslosigkeit der Wissenschaft); e 2. a falha (Mangel).

Essa tendência para a popularização iria remediar uma penúria claramente pressentida e compreendida, iria criar um modo de suprir uma falha e conferir uma vez mais significação à ciência; e isso por meio de um caminho que é quase óbvio, na medida em que seu efeito prático pode ser mais expressamente documentado. No entanto, não seria a mesma coisa tornar a ciência algo prático ou popularizá-la? Por que é que a popularização da ciência deveria ser tão prejudicial?

De fato, a popularização da ciência é um mal, e isso não por causa de suas consequências ruins, mas por ela fazer com que a ciência seja fundamentalmente mal compreendida em sua essência, ou seja, por ela promover uma destruição interna da essência da própria ciência, uma aniquilação e um soterramento crescente das possibilidades de devolver-lhe sua posição originária na história do ser-aí.

Por mais que possa ser pautada por motivos sérios, toda popularização da ciência é uma agressão contra a essência da ciência. Isso se dá, uma vez que toda popularização desconhece o fato de a ciência não poder ser equiparada a seus resultados, que são então continuamente transmitidos de mão em mão em uma apresentação qualquer. Essa equiparação não deve ser rejeitada simplesmente porque a ciência, no assim chamado progresso científico, sempre vai além de seus resultados, mas porque ela realmente nunca se manifesta como ciência nos resultados. Popularização não constitui apenas necessário nivelamento da ciência, mas também [35] desvalorização interna dela. A popularização choca-se contra a essência da ciência porque o essencial da ciência não reside no que é meramente transmissível, no que pode ser passado de mão em mão, mas no que é sempre apropriado novamente. Contudo, essa apropriação originária do essencial só é possível em meio ao método que é entrelaçado de maneira inseparável ao conteúdo técnico e ao resultado. Método certamente significa mais aqui do que o que geralmente é designado com esse termo; o próprio método é mais do que técnica.

Na desorientação geral quanto à significação da ciência, porém, a popularização não é somente uma saída por meio da qual ainda é fornecida então uma significação para a ciência; e, até mesmo, uma significação tal que, nos assim chamados “amplos círculos”, pode incluir uma avaliação universal e, por isso, efetivamente duvidosa. Ela também é a tentativa de suprir uma falha supostamente autêntica, a fim de concretizar o que, com efeito, pertence à essência da ciência, a saber, o fato de ela ser em si mesma prática. O que se pretende é uma reaproximação da vida com a ciência, que hoje é censurada com o bordão “distante da vida”. Nessa tendência reside algo autêntico, na medida em que se pressente que as ciências possuem em verdade caráter puramente teórico, ou seja, que elas têm a tarefa primária de investigar primordialmente a verdade em função da verdade, abstraindo de toda e qualquer utilidade. Os resultados da ciência, contudo, também precisam, por fim, servir a algo — precisam de uma argumentação que seja elucidativa para todos. (GA27PT:33-35)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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