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Casanova
Jaspers diz o seguinte em sua Psychologie der Weltanschauungen (Psicologia das visões de mundo): “Quando falamos de visões de mundo, temos em vista ideias, o que há de derradeiro e total no homem, tanto subjetivamente, como vivência, força e modo de pensar, quanto objetivamente como um mundo configurado”1. Para o nosso intuito de distinguir a filosofia como visão de mundo da filosofia científica, é importante perceber antes de tudo que a visão de mundo emerge, segundo o seu sentido, do ser-aí respectivamente fático do homem de acordo com suas possibilidades fáticas de meditação e de tomada de posição, e que, assim, ela emerge para esse ser-aí fático. A visão de mundo é algo que existe a cada (15) vez de modo histórico a partir, com e para o ser-aí fático. Cima visão de mundo filosófica é uma visão de mundo que deve ser formada e veiculada explícita e expressamente ou, em todo caso, preponderantemente, por meio da filosofia, isto é, por meio da especulação teórica, com uma exclusão de qualquer interpretação artística e religiosa do mundo e do ser-aí. Essa visão de mundo não é um produto secundário da filosofia, mas sua formação é antes a meta propriamente dita e a essência da própria filosofia. Segundo o seu próprio conceito, a filosofia é filosofia da visão de mundo. O fato de, sob o modo do conhecimento teórico do mundo, a filosofia ter por meta o que há de universal no mundo e o que há de derradeiro no ser-aí – o de onde, o para onde e o para quê do mundo e da vida – a distingue tanto das ciências particulares, que nunca consideram senão uma região particular do mundo e do ser-aí, quanto das posturas comportamentais artísticas e religiosas, que não se fundam primariamente no comportamento teórico 2. Parece não haver qualquer dúvida de que a filosofia tem por meta a formação de uma visão de mundo. Esta tarefa precisa determinar a essência da filosofia e o seu conceito. Ao que parece, a filosofia é tão essencialmente filosofia da visão de mundo que seria preferível rejeitar essa última expressão como uma sobrecarga desnecessária. Para além disso, querer aspirar a uma filosofia científica é uma incompreensão, pois a visão de mundo filosófica – é isso que se diz -deve ser naturalmente científica. O que se compreende por isso é o seguinte: em primeiro lugar, que a filosofia deve levar em conta os resultados das diversas ciências e empregá-los (16) na construção da imagem de mundo e na interpretação do ser-aí; em segundo lugar, que ela deve ser científica, na medida em que realiza rigorosamente a formação da visão de mundo segundo as regras do pensamento científico. Esta concepção da filosofia como formação da visão de mundo de uma maneira teórica é tão autoevidente que define geral e amplamente o conceito da filosofia, e, por conseguinte, também prescreve para a consciência vulgar aquilo que precisa e deve ser esperado da filosofia. Inversamente, quando a filosofia não dá respostas satisfatórias às questões ligadas à visão de mundo, a consciência vulgar a considera como algo iníquo. As requisições feitas à filosofia e as tomadas de posição em relação a ela são reguladas de acordo com essa noção da filosofia como formação científica de uma visão de mundo. Para saber se a filosofia triunfa ou fracassa na execução dessa tarefa, as pessoas se remetem à sua história e veem nela a prova inequívoca de que ela trata cognitivamente de questões derradeiras: da natureza, da alma, isto é, da liberdade e da história do homem, de Deus.
Se a filosofia é formação científica de uma visão de mundo, então cai por terra a distinção entre uma “filosofia científica” e uma “filosofia como visão de mundo”. As duas constituem conjuntamente a sua essência, de tal modo que o que é realmente enfatizado em última instância é a tarefa ligada à visão de mundo. Esta também parece ser a opinião de Kant, que colocou sobre uma nova base o caráter científico da filosofia. Só precisamos nos lembrar da distinção feita por ele na introdução à Lógica entre a filosofia segundo o seu conceito acadêmico e a filosofia segundo o seu conceito mundano 3. Com isso, nós nos voltamos para uma distinção que Kant gostava de citar com frequência e que pode aparentemente servir para apoiar a diferença entre filosofia científica e filosofia como visão de mundo, mais exatamente, como prova do fato de mesmo Kant, para o qual a cientificidade da filosofia se encontrava no centro do interesse, conceber a filosofia como filosofia da visão de mundo. (p. 14-16)
Original
(HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Tr. de Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 12-24)
- JASPERS, K. Psychologie der Weltanschauungen (Psicologia das visões de mundo), 3. vol. Berlim: (s.e.), 1925, p. 1s.[
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- Heidegger faz uma diferença nessa passagem entre Verhalten e Verhaltung. O segundo termo é uma palavra antiga para dizer “comportamento” e passou a designar em alemão contemporâneo uma certa retenção. Para não homogeneizar o texto, optamos por fazer uma diferença entre os dois termos e traduzir Verhaltung por uma locução explicativa. Como o sufixo -ung em alemão é um sufixo formador de substantivos e como o próprio desenvolvimento da língua alemã nos fornece uma indicação quanto ao sentido a ser buscado com a palavra, procuramos explicitar o resultado da contenção do comportamento. Assim, pensamos na locução “postura comportamental”, uma vez que a postura comportamental nasce da assunção de uma posição a partir da qual o comportamento se dá (N.T.).[
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- KANT. WW (Cassirer). Vol. 8, p. 342ss.[
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- K. Jaspers, Psychologie der Weltanschauungen. Berlin 1925, p. 1 f.[
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