GA24:194-197 – personalitas moralis

Casanova

Apesar de Kant não formular a questão da mesma maneira que nós o fazemos, gostaríamos agora de formulá-la da seguinte forma: Como é que o si mesmo manifesto onticamente desse modo no sentimento moral do respeito como um eu que é precisa ser determinado ontologicamente? O respeito é o acesso ôntico do eu, que é fática e propriamente, a si mesmo. Nesse tornar-se manifesto para si mesmo como algo que é faticamente precisa ser dada a possibilidade de determinar a constituição ontológica desse ente mesmo assim manifesto. Em outras palavras, qual é o conceito ontológico da pessoa moral manifesta no respeito, o conceito ontológico da personalitas moralis?

Kant oferece faticamente a resposta a essa pergunta, que não é formulada expressamente por ele, em sua Metafísica dos costumes. Metafísica significa ontologia. Metafísica dos costumes significa ontologia da existência humana. O fato de Kant oferecer a resposta na ontologia da existência humana, na metafísica dos costumes, indica que ele tem uma compreensão clara do sentido metodológico da análise da pessoa e, com isso, da questão metafísica o que é o homem.

Deixemos claro para nós uma vez mais o que se acha em jogo no sentimento moral: a dignidade do homem, uma dignidade que o eleva, na medida em que ele serve a ela. Nessa dignidade e em unidade com o servir, o homem é ao mesmo tempo senhor e escravo de si mesmo. No respeito, isto é, agindo eticamente, o homem cria a si mesmo, como Kant disse certa vez 1. Qual é o sentido ontológico da pessoa manifesta no respeito? Kant diz: “Pois bem, agora afirmo o seguinte: o homem e, em geral, todo ser racional existem como fins em si mesmos, não meramente como meios para uma utilização qualquer para essa ou aquela vontade. O homem precisa ser inversamente considerado incessantemente em todas as suas ações dirigidas para si mesmo tanto quanto para outros seres racionais ao mesmo tempo como fim”2. O homem existe como fim em si mesmo, ele nunca é meio, ele também jamais se mostra como meio, por exemplo, para Deus, mas, mesmo perante Deus, ele é fim de si mesmo. A partir daqui, ou seja, a partir da caracterização ontológica do ente que não apenas é concebido e apreendido pelos outros como fim, mas que existe objetivamente – real e efetivamente – como fim, fica claro o sentido propriamente ontológico da pessoa moral. Ela existe como fim de si mesma, ou seja, ela é ela mesma fim.

Somente com isso se conquista o solo para a distinção ontológica entre o ente egoico e o ente não egoico, entre sujeito e objeto, res cogitans e res extensa. “Os seres, cuja existência não se baseia, em verdade, em nossa vontade, mas na natureza (isto é, na natureza no sentido da organização física), possuem, contudo, caso eles se mostrem como seres desprovidos de razão, apenas um valor relativo como meios e se chamam, por isso, coisas. Em contrapartida, seres racionais são chamados pessoas porque sua natureza (natureza significa aqui tanto quanto a φύσις o mesmo que essência) já os distingue como fins em si mesmos, isto é, como algo que não pode ser usado como mero meio, ou seja, ela já os distingue na medida em que sua natureza restringe todo arbítrio (e é um objeto do respeito)”3.

O que constitui a natureza da pessoa, sua essência, e restringe todo arbítrio, ou seja, aquilo que é determinado como liberdade, é objeto do respeito. Inversamente, o elemento objetivo no respeito, isto é, o que se manifesta nele, anuncia a pessoalidade da pessoa. Seu conceito ontológico diz de maneira resumida: pessoas são “fins objetivos, isto é, coisas (res no sentido mais amplo possível) cuja existência é fim em si mesmo”4.

Com essa interpretação da personalitas moralis esclarece-se pela primeira vez o que é o homem. Sua quidditas é demarcada, temos aqui a essência do homem, isto é, o conceito maximamente rigoroso da humanidade. Kant não usa a expressão humanidade como se ele compreendesse aí a soma de todos os homens, mas humanidade é para ele um conceito ontológico e tem em vista a constituição ontológica do homem. Assim como a realidade efetiva é a constituição ontológica do efetivamente real, a humanidade é a essência do homem, a justiça a essência daquilo que é justo. Por isso, Kant consegue formular o princípio fundamental da moralidade, o imperativo categórico, da seguinte forma: “Aja de tal modo que tu te valhas da humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de um outro indivíduo, ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio”5. Esse princípio caracteriza o dever-ser propriamente dito do homem. Ela delineia previamente o poder-ser do homem, tal como ele se determina a partir da essência de sua existência. O imperativo é um imperativo categórico, isto é, não é nenhum imperativo hipotético. Ele não está submetido a nenhum se-então. O princípio do agir moral não diz: se tu queres alcançar tal e tal coisa, esse ou aquele fim determinado, então tu precisas te comportar de tal e tal modo. Não há aqui nenhuma se e nenhuma hipótese, porque o sujeito que age, um sujeito com vistas ao qual apenas a ação é levada a termo, é, segundo sua essência mesma, fim; fim de si mesmo, fim não condicionado e submetido a um outro. Como não há aqui nenhuma hipótese, esse imperativo é um imperativo categórico, um imperativo incondicional. Como agente moral, isto é, como fim existente de si mesmo, o homem se encontra no reino dos fins. A palavra “fim” precisa ser compreendida aqui sempre no sentido objetivo, como fim essente, pessoa. O reino dos fins é o ser-um-com-o-outro, o comércio entre as pessoas enquanto tal, e, por isso, o reino da liberdade. Trata-se do reino das pessoas existentes entre si, e não, por exemplo, um sistema de valores, com o qual um eu agente qualquer se relaciona e no qual estão fundados como algo humano os fins em conexão como uma corrente de intenções para algo. Reino dos fins precisa ser tomado em sentido ôntico. Fim é uma pessoa existente, o reino dos fins é a convivência das próprias pessoas existentes. (p. 202-205)

Original

  1. Ibid. Vol. 5, p. 107.[↩]
  2. Ibid. Vol. 4, p. 286.[↩]
  3. Ibid., p. 286-287.[↩]
  4. Ibid., p. 287.[↩]
  5. Ibid.[↩]
  6. Kant, Kr. d. pr. V., W W (Cassirer) Bd. 5, p. 107.[↩]
  7. Kant, W W (Cassirer) Bd. 4, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, p. 286.[↩]
  8. a.a.O., p. 287.[↩]
  9. a.a.O., p. 286/87.[↩]
  10. Ebd.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress