GA24:178-182 – o “Eu”

Casanova

O conceito de sujeito no sentido da subjetividade, da egoidade, depende ontologicamente da maneira mais íntima possível da categoria apofântico-formal do subjectum, do hypokeimenon, no qual não reside a princípio absolutamente nada relativo à egoidade. Ao contrário, ο hypokeimenon é o presente à vista, o disponível. Uma vez que, por mais que já se encontre prelineado em Descartes e sobretudo em Leibniz, só em Kant se torna pela primeira vez explícito o fato de o eu ser propriamente subjectum, dito em termos gregos, a substância propriamente dita, Hegel pode dizer: a substância propriamente dita é o sujeito, ou o sentido propriamente dito da substancialidade é a subjetividade. Esse princípio da filosofia hegeliana se acha na linha direta do desenvolvimento do modo de questionamento moderno.

No que consiste a mais universal estrutura do eu ou o que constitui a egoidade? Resposta: a autoconsciência. Todo (187) pensar é eu-penso. O eu não é simplesmente um ponto qualquer isolado, mas ele é eu-penso. Ele não se percebe, contudo, como um ente que ainda teria outras determinações diversas dessa: do fato de que pensa. O eu se sabe inversamente como o fundamento de suas determinações, isto é, de suas posturas comportamentais, como o fundamento de sua própria unidade na multiplicidade dessas posturas comportamentais, como fundamento da ipseidade de seu si mesmo. Todas as determinações e posturas comportamentais do eu estão fundadas no eu. Eu percebo, eu julgo, eu ajo. O eu-penso, diz Kant, precisa poder acompanhar todas as minhas representações, isto é, todo cogitare dos cogitata. Esse princípio, porém, não pode ser considerado de um modo tal, como se em todo comportamento, em todo pensamento no sentido mais amplo possível, também já estivesse presente a cada vez a representação do eu. Ao contrário, eu sou consciente da articulação de todas as representações com o meu eu, ou seja, sou consciente delas em sua multiplicidade como minha unidade, que tem seu fundamento em minha egoidade (como subiectum) enquanto tal. Somente com base no eu-penso, algo múltiplo me pode ser dado. Kant interpreta, em suma, o eu como a “unidade originária sintética da apercepção”. O que isso significa? O eu é o fundamento originário da unidade da multiplicidade de suas determinações, de tal modo que eu as tenho todas juntas enquanto eu com vistas a mim mesmo, que eu as mantenho desde o princípio juntas, isto é, que eu as ligo: síntese. O fundamento originário da unidade é o que ele é, ele é o fundamento como fundamento unificador, sintético. O ligar a multiplicidade das representações e aquilo que é representado nessa multiplicidade precisa ser sempre copensado. O ligar é de tal modo que, pensando, eu-penso concomitantemente a mim mesmo, isto é, eu não apreendo simplesmente o pensado e representado, eu não o percebo pura e simplesmente, mas em todo pensamento eu me penso. Eu não percebo, mas apercebo o eu. A unidade sintética originária da apercepção é a caracterização ontológica do sujeito insigne.

A partir do que foi dito fica claro o seguinte: com esse conceito da egoidade, conquista-se a estrutura formal da (188) pessoalidade, ou, como Kant diz, a personalitas transcendentalis. O que significa essa expressão “transcendental”? Kant diz: “Eu denomino transcendental todo conhecimento que não se ocupa em geral tanto com os objetos, mas muito mais com nosso modo de conhecimento de objetos, na medida em que esse modo de conhecimento deve ser possível a priori”1. Conhecimento transcendental não se refere a objetos, ou seja, a um ente, mas aos conceitos, que determinam o ser do ente. “um sistema de tais conceitos chamar-se-ia filosofia transcendental”2. Filosofia transcendental não significa outra coisa senão ontologia. O fato de essa interpretação não se basear em nenhum ato de violência é algo que nos mostra a seguinte sentença que Kant escreveu mais ou menos dez anos depois da segunda edição da Crítica da razão pura no ensaio editado imediatamente depois de sua morte, Sobre a questão proposta como concurso pela Real Academia de Ciências de Berlim para o ano de 1791: quais são os progressos efetivamente realizados pela metafísica na Alemanha desde Leibniz e Wolff? “A ontologia é aquela ciência (como parte da metafísica) que constitui um sistema de todos os conceitos do entendimento e de todos os princípios, mas apenas na medida em que eles dizem respeito a objetos, que podem ser dados aos sentidos e, portanto, atestados pela experiência”3. A ontologia é denominada filosofia transcendental porque ela contém as condições e os elementos primeiros de todo o nosso conhecimento”2. Kant sempre acentua aqui que a ontologia como filosofia transcendental tem algo em comum com o conhecimento dos objetos. Isso não significa que, tal como o neokantismo o interpretou, ela seria o mesmo que teoria do conhecimento. Ao contrário, uma vez que a ontologia trata do ser do ente, e, como nós sabemos, segundo a convicção de Kant, ser, realidade efetiva, é o mesmo que ser percebido, (189) ser conhecido, a ontologia como a ciência do ser precisa se mostrar para ele como a ciência do ser conhecido dos objetos e de sua possibilidade. Por isso, a ontologia é filosofia transcendental. A interpretação da Crítica da razão pura como teoria do conhecimento perde de vista completamente o seu sentido propriamente dito.

A partir do que vimos anteriormente, sabemos o seguinte: segundo Kant, ser é o mesmo que ser percebido. As condições fundamentais do ser do ente, isto é, do ser percebido, são, por isso, as condições fundamentais para que a coisa seja conhecida. Condição fundamental, porém, para o conhecer como conhecer é o eu como eu-penso. Por isso, Kant sempre acentua uma vez mais: o eu não é nenhuma representação, isto é, nenhum objeto representado, nenhum ente no sentido dos objetos, mas antes o fundamento da possibilidade de todo representar, de todo perceber, isto é, de todo ser percebido do ente, ou seja, o fundamento de todo ser. O eu como unidade sintética originária da apercepção é a condição ontológica fundamental para todo ser. As condições fundamentais do ser do ente são as categorias. O eu não é uma entre as categorias do ente, mas a condição de possibilidade das categorias em geral. Por isso, não é próprio ao eu estar ele mesmo entre os conceitos fundamentais do entendimento, tal como Kant denomina as categorias, mas o eu é, segundo o uso terminológico kantiano, “o veículo de todos os conceitos do entendimento”. É ele que possibilita pela primeira vez os conceitos fundamentais ontológicos a priori. Pois o eu não é algo destacado, um ponto qualquer, mas ele é sempre eu-penso, ou seja, eu-ligo. Kant interpreta as categorias, contudo, como aquilo que já é visto desde o princípio no ligar intrínseco ao entendimento e que é compreendido como o que entrega a cada vez à ligação a ser levada a termo a unidade correspondente do ligado. As categorias são as formas possíveis da unidade dos modos possíveis do eu-ligo pensante. A possibilidade de ligação e, de maneira correspondente, também a forma dessa ligação mesma, isto é, a sua respectiva unidade, se fundam no eu-ligo. Assim, o eu é a condição ontológica fundamental, ou seja, o transcendental, aquilo que (190) se acha à base de todo a priori particular. Compreendemos agora: o eu como eu-penso é a estrutura formal da pessoalidade como personalitas transcendentalis. (p. 185-190)

Norro

Courtine

Original

  1. KANT. Crítica da razão pura, B25.[↩]
  2. Ibid.[↩][↩][↩][↩][↩][↩]
  3. KANT. WW (Cassirer). Vol. 8, p. 238.[↩]
  4. I. Kant, Crítica de la razón pura, B 25.[↩]
  5. I. Kant, Werke 8, ed. de E. Cassirer, p. 238 [Existe traducción española de F. Duque, Los progresos de la metafísica desde Leibniz y Wolff Tecnos, Madrid, 1987, p. 9. (N. del T.)[↩]
  6. Kr V, B 25 Itrad. fr. T. et P., p. 461.[↩]
  7. Kant, WW., éd. Cassirer, t. VIII, p. 238 (Ak. Ausg. XX, 7, p. 260; trad. fr. Guillermit, p. 101.[↩]
  8. Kr V, B 107 (trad. fr. T. et P., p. 95). (N.d.T.)[↩]
  9. Kr V., B 406 (trad. fr. T. et P., p. 282). (N.d.T.)[↩]
  10. Kant, Kr. d. r. V. B 25.[↩]
  11. Ebd.[↩][↩]
  12. Kant, WW (Cassirer) Bd. 8, p. 238.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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