GA24:169-171 – essentia-existentia e “quem”

Casanova

Se o ser-aí mostra uma constituição ontológica totalmente diversa do ente presente à vista e se existir em nosso uso terminológico significa algo diverso de existere e existentia (εἶναι), então também se torna questionável se à constituição ontológica do ser-aí pode pertencer algo assim como coisidade, essentia, οὐσία. Coisidade, realitas ou quiditas é aquilo que responde à pergunta: Quid est res, o que é a coisa? Uma consideração rudimentar já revela: o ente que nós mesmos somos, o ser-aí, não pode ser de modo algum inquirido enquanto tal com a pergunta “o que é isso?” Nós só conquistamos um acesso a esse ente quando perguntamos: “Quem é ele?” O ser-aí não é constituído pela quididade, mas – se é que podemos cunhar essa expressão – pelo caráter-quem. A resposta não traz consigo uma coisa, mas um eu, um tu, um nós. Nós perguntamos, contudo, por outro lado: O que é esse quem e esse caráter-quem do ser-aí – o que significa o “quem” em sua diferença ante o quid anteriormente citado no sentido mais restrito da coisidade do ente presente à vista? Sem dúvida alguma perguntamos assim. Com isso, porém, apenas se anuncia o fato de esse quid, com o (178) qual também levantamos a pergunta acerca da essência do quem, não poder significar evidentemente o mesmo que o quid no sentido da quididade. Em outras palavras, o conceito fundamental da essentia, da quididade, torna-se efetivamente problemático em face do ente que nós designamos ser-aí. A fundamentação insuficiente da tese como uma tese ontológico-universal se torna visível. Se ela deve ter em geral um significado ontológico, então ela carece de uma restrição e modificação. Precisa ser mostrado positivamente em que sentido todo e qualquer ente precisa ser questionado sobre o seu quid, mas em que sentido um ente precisa ser inquirido por meio da pergunta quem. É somente a partir daqui que o problema da distinctio entre essentia e existentia se torna complicado. Não se trata apenas da questão da relação entre quididade e presença à vista, mas ao mesmo tempo da relação entre o caráter-quem e existência, e existência compreendida em nosso sentido como modo de ser do ente que nós mesmos somos. Concebida de maneira genérica, a tese de que a todo ente pertencem essentia e existentia mostra simplesmente o problema geral da articulação de todo ente em um ente que ele é e no modo como de seu ser.

Já mostramos anteriormente a conexão entre a articulação fundamental do ser e a diferença ontológica. O problema da articulação do ser em essentia e existentia, formulado escolasticamente, é apenas uma questão mais especial que diz respeito à diferença ontológica em geral, isto é, à diferença entre ente e ser. Agora se mostra que a diferença ontológica é mais complicada, por mais formal que essa diferença possa soar e se mostrar. Mais complicada, porque sob o título “ser” não se encontram agora apenas essentia e existentia, mas ao mesmo tempo o caráter-quem e a existência em nosso sentido. A articulação do ser varia de acordo com o respectivo modo de ser de um ente. Esse modo de ser não pode ser restrito à presença à vista e à realidade efetiva no sentido da tradição. A questão acerca da multiplicidade possível e, com isso, ao mesmo tempo a questão acerca da unidade do conceito de ser em geral se tornam prementes. Simultaneamente, a fórmula vazia para a diferença ontológica fica cada vez mais rica em termos de conteúdo de problema.

(179) De início, contudo, anuncia-se para nós o problema de que, além do ente presente à vista (presença à vista), há um ente no sentido do ser-aí que existe. Mas esse ente que nós mesmos somos já não se achava desde sempre conhecido na filosofia e até mesmo no conhecimento pré-filosófico? Pode-se fazer tanto barulho em torno do acento expresso no fato de que, além do ente presente à vista, também há o ente que nós mesmos somos? Todo ser-aí já sempre possui de qualquer modo, na medida em que é, um saber sobre si mesmo: todo ser-aí sabe que se distingue de um outro ente. Mós mesmos dissemos de qualquer forma que, na ontologia antiga, uma ontologia orientada primariamente pelo ente presente à vista, ψυχὴ, νοῦς, λόγος, ζῷή, βιος, alma, razão, vida no sentido mais amplo possível, eram termos conhecidos. Com certeza; mas precisamos levar em conta o fato de o conhecimento ôntico fático de um ente ainda não garantir a interpretação apropriada de seu ser. Em verdade, o ser-aí tem conhecimento do fato de que ele não é o outro ente que ele experimenta. Ao menos isso pode se mostrar como conhecido para o ser-aí. Isso não é conhecido de todo e qualquer ser-aí, porém, na medida em que, por exemplo, o pensamento mítico e mágico identifica a coisa consigo mesmo. Mas mesmo que seja conhecido para o ser-aí o fato de que ele mesmo não é um outro ente, ainda não reside aí o conhecimento explícito de que seu modo de ser seria um modo de ser diverso do modo de ser do ente que ele mesmo não é. Ao contrário, o ser-aí pode muito mais interpretar a si mesmo e ao seu modo de ser, tal como vimos a partir do exemplo da Antiguidade, ontologicamente com vistas ao ente presente à vista e ao modo de ser da presença à vista. A questão específica sobre a constituição ontológica do ser-aí é mantida de lado e confundida por múltiplos preconceitos que estão fundamentados na existência do próprio ser-aí. É isso entre outras coisas que a discussão da terceira tese deve tornar claro para nós. Essa discussão tem por meta sobretudo nos aproximar efetivamente do problema de uma multiplicidade de modos de ser, para além da unicidade daquilo que se mostra apenas como presença à vista.

Hofstadter

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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