GA24:101-102 – descerramento (desvelamento) do ser [Erschlossenheit (Enthülltheit) des Seins]

Casanova

Posteriormente nos ocuparemos em saber como essa compreensão prévia e pré-conceitual da presença à vista (realidade efetiva) reside na descoberta do ente presente à vista – o que esse residir significa e como ele é possível. Agora, a única coisa que importa é efetivamente ver que o comportamento descobridor em relação ao ente presente à vista se mantém em uma compreensão de presença à vista e que pertence a esse comportamento, isto é, à existência do ser-aí, o descerramento de presença à vista. Essa é a condição de possibilidade para que o ente presente à vista possa ser descoberto. A possibilidade da descoberta, isto é, a perceptibilidade de algo presente à vista, pressupõe o descerramento da presença à vista. No que concerne à sua possibilidade, o ter sido percebido funda-se na compreensão da presença à vista. Assim, somente quando tivermos trazido de volta o ter sido percebido do percebido para os seus fundamentos, isto é, somente quando tivermos analisado essa compreensão de presença à vista mesma que pertence à intencionalidade da percepção, estaremos em condições de clarificar o sentido da presença à vista assim compreendida, ou, dito em termos kantianos, o sentido de ser-aí e existência.

(110) Sem que tenha clareza quanto a isso, é a essa compreensão de ser que Kant manifestamente recorre, quando ele diz que ser-aí, realidade efetiva, seria igual à percepção. Sem que venhamos já a dar a resposta à pergunta sobre como seria preciso interpretar a realidade efetiva, precisamos manter presente para nós o fato de que, ante a interpretação kantiana de que realidade efetiva é igual à percepção, uma profusão de estruturas e momentos estruturais daquilo ao que Kant no fundo recorre se oferece. De início, deparamo-nos com a intencionalidade. A essa intencionalidade pertence não apenas intentio e intentum, mas de maneira igualmente originária um modo do ter sido descoberto do intentum. Ao ente, que é percebido na percepção, contudo, não pertence apenas o fato de ele ser descoberto, o ter sido descoberto do ente, mas também o fato de o modo de ser do ente descoberto ser compreendido, isto é, descerrado. Por isso, não cindimos apenas terminologicamente, mas também por razões materiais entre o ter sido descoberto de um ente e o descerramento de seu ser. O ente só pode ser descoberto, seja pela via da percepção, seja por algum outro modo de acesso, se o ser do ente já se encontrar descerrado – se eu o compreendo. Somente então posso perguntar se ele real e efetivamente é ou não e posso pôr mãos à obra para de alguma maneira constatar a realidade efetiva do ente. Precisamos conseguir, agora, expor mais exatamente a conexão entre o ter sido descoberto do ente e o descerramento de seu ser, mostrando como o descerramento (desvelamento) do ser funda, isto é, fornece o fundamento para a possibilidade do ter sido descoberto do ente. Formulado de outro modo, precisamos conseguir apreender conceitualmente a diferença entre ter sido descoberto e descerramento e apreendê-la conceitualmente como uma diferença possível e necessária, concebendo do mesmo modo, porém, também a unidade dos dois. Nisso reside ao mesmo tempo a possibilidade de apreender a diferença entre o ente descoberto no ter sido descoberto e o ser descerrado no descerramento, isto é, fixando a diferenciação entre ser e ente, a diferença ontológica. Na esteira do problema kantiano, chegamos à questão acerca da diferença ontológica. (111) Somente na medida em que resolvermos esse problema ontológico fundamental, conseguiremos não apenas fundamentar positivamente a tese kantiana de que o “ser não é nenhum predicado real”, mas ao mesmo completá-la positivamente por meio de uma interpretação radical do ser em geral como presença à vista (realidade efetiva, ser-aí, existência).

Courtine

Original

  1. Cf. SZ:85; cf. aussi GA20:§28, et la note de l’éditeur p. 349 et p. 444. (N.d.T.)[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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