GA14:79-82 – clareira e abertura

Ernildo Stein

Mas o que é que permanece impensado, tanto na questão da Filosofia como em seu método? A dialética especulativa é um modo como a questão da Filosofia chega a aparecer a partir de si mesma para si mesma, tornando-se assim presença. Um tal aparecer acontece necessariamente em uma certa claridade. Somente através dela pode mostrar-se aquilo que aparece, isto é, brilha. A claridade, por sua vez, porém, repousa numa dimensão de abertura e de liberdade que aqule acolá, de vez em quando, pode clarear-se. A claridade acontece no aberto e aí luta com a sombra. Em toda parte, onde um ente se presenta em face de um outro que se presenta ou apenas se demora ao seu encontro; mas também ali, onde, como em Hegel, um ente se reflete no outro especulativamente, ali também já impera abertura, já está em jogo o livre espaço.

Somente esta abertura garante também à marcha do pensamento especulativo sua passagem através daquilo que ela pensa.

Designamos esta abertura, que garante a possibilidade de um aparecer e de um mostrar-se, com a clareira (die Lichtung). A palavra alemã “Lichtung“ é, sob o ponto de vista da história da língua, uma tradução do francês “Clairière”. Formou-se segundo o modelo das palavras mais antigas “Waldung” e “Feldung”.1

A clareira da floresta contrasta com a floresta cerrada; na linguagem mais antiga esta era dominada “Dickung”.2

O substantivo “clareira” vem do verbo “clarear”. O adjetivo “claro” (“licht”) é a mesma palavra que “leicht”.3 Clarear algo quer dizer: tornar algo leve, tornar algo livre e aberto, por exemplo, tomar a floresta, em determinado lugar, livre de árvores. A dimensão livre que assim surge é a clareira. O claro, no sentido de livre e aberto, não possui nada de comum, nem sob o ponto de vista linguístico, nem no atinente à coisa que é expressa, com o adjetivo “luminoso” que significa “claro”.

Isto deve ser levado em consideração para se compreender a diferença entre Lichtung e Licht. Subsiste, contudo, a possibilidade de uma conexão real entre ambos. A luz pode, efetivamente, incidir na clareira, em sua dimensão aberta, suscitando aí; o jogo entre o claro e o escuro. Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela, a luz, pressupõe esta, a clareira. A clareira, no entanto, o aberto, não está apenas livre para a claridade é a sombra, mas também para a voz que reboa e para o eco que se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta.

Impõe-se ao pensamento a tarefa de atentar para a questão que aqui é designada como clareira. Ao fazer isto, não se extraem – como facilmente poderia parecer a um observador superficial – simples representações de puras palavras, por exemplo, “clareira”. Trata-se muito antes, de atentar que a singularidade da questão que é nomeada, de maneira adequada à realidade, com o nome de “clareira”. O que a palavra designa no contexto agora pensado, a livre dimensão do aberto, é, para usarmos uma palavra de Goethe, um “fenômeno originário”. Melhor diríamos: uma questão originária. Goethe observa (Máximas e Reflexões, n° 993): “Que não se invente procurar nada atrás dos fenômenos: estes mesmos são a doutrina”. Isto quer dizer: o próprio fenômeno, no caso presente, a clareira, nos afronta com a tarefa de, questionando-o; dele aprender, isto é, deixar que nos diga algo.

De acordo com isto, o pensamento provavelmente não deverá temer levantar um dia a questão se a clareira, a livre dimensão do aberto, não é precisamente aquilo em que tanto o puro espaço como o tempo estático e tudo o que neles se presenta e ausenta possui o lugar que recolhe e protege.

Da mesma maneira que o pensamento dialético-especulativo, também a intuição originária e sua evidência ficam dependentes da abertura que já impera, a clareira. O evidente é o imediatamente compreensível. Evidentia é a palavra com que Cícero traduz a palavra grega enárgeia, interpretando-a na língua romana. Enárgeia, em que fala a mesma raiz que em argentum (prata), designa aquilo que brilha em si e a partir de si mesmo e assim se expõe à luz.

Na língua grega não se fala da ação de ver, de videre, mas daquilo que luz e brilha. Só pode, porém, brilhar se a abertura já é garantida. O raio de luz não produz primeiramente a clareira, a abertura, apenas percorre-a. Somente tal abertura garante um dar e um receber, garante primeiramente a dimensão aberta para a evidência, onde podem demorar-se e devem mover-se.

Todo o pensamento da Filosofia, que, expressamente ou não segue o chamado “às coisas mesmas”, já está, em sua marcha, com seu método, entregue à livre dimensão da clareira. Da clareira, todavia, a Filosofia nada sabe. Não há dúvida que a Filosofia fala da luz da razão, mas não atenta para a clareira do ser. O lumen naturale, a luz da razão, só ilumina o aberto. Ela se refere certamente à clareira; de modo algum, no entanto, a constitui, tanto que dela antes necessita para poder iluminar aquilo que na clareira se presenta. Isto não vale apenas para o método da Filosofia, mas também e até em primeiro lugar para a questão que lhe é própria, a saber, da presença do que se presenta. Em que medida também já na subjetividade é sempre pensado o subiectum, o hypokeímenon, o que já está aí, portanto, que se presenta em sua presença, não pode ser aqui mostrado em detalhe. (Veja-se a propósito disto Heidegger, Nietzsche, II vol., 1961, p. 429 ss.) (GA14ES:102-104)

Beaufret & Fédier

Stambaugh

Original

  1. Waldung equivale a floresta; região de florestas. Feldung: campo, zona de campo, é expressão dialetal que não mais consta nos léxicos. (N. do T.)[↩]
  2. Dickung: provém de dick, grosso, espesso, cerrado. (N. do T.)[↩]
  3. Licht claro; leicht: leve. Lá onde existe vegetação leve (leicht), pode-se falar em licht (claro). (N. doT.)[↩]
  4. Both meanings exist in English for light. The meaning Heidegger intends is related to lever (i.e., alleviate, lighten a burden). (Tr.)[↩]
  5. vgl. Der Ursprung des Kunstwerkes. (1935 ff.)
    Holzwege 1950, S. 38 ff. (GA Bd. 5, S.36ff.) (Reclam 1960. 52 ff.) Hegel und die Griechen 1960, Wegmarken 270 ff. (GA Bd. 9, S. 441 ff.)
    Die Herkunft der Kunst und die Bestimmung des Denkens. Vortrag in der Akademie der Wissenschaften und Künste Athen 4. April 1967 (Denkerfahrungen, S. 135 ff.; erscheint in GA Bd. 80)[↩]
  6. vgl. Goethe. Italienische Reise, Neapel 26. Februar (1787)
    »Weitung« »Weite«[↩]
  7. »Ein Windstoß alte Linden lichtet«
    G. Trakl, WW 1969, S. 274[↩]
  8. vielleicht aus vil-lichte
    viel-freies, viel-mögliches, möglicherweise[↩]
  9. vgl. Vom Wesen der Wahrheit 1930 (GA Bd. 9, S. 177 ff.)[↩]
  10. genauer: von der Lichtung des Austrags, der selbst lichtend-nichtend hervor-bringt
    Anwesendes in seine je eigentümliche Anwesenheit
    Das Ende der Philosophie und die Aufgabe des Denkens[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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