GA11:56-72 – A Diferença Ontológica

Ernildo Stein

Para Hegel o objeto do pensamento é o ser sob o ponto de vista do caráter de pensado do ente, no pensamento absoluto e enquanto tal. Para nós o objeto do pensamento é o mesmo, portanto o ser, mas o ser sob o ponto de vista de sua diferença com o ente. Expresso com mais rigor: para Hegel o objeto do pensamento é o pensamento absoluto como conceito absoluto. Para nós o objeto do pensamento, designado provisoriamente, é a diferença enquanto diferença.

(…)

Após esta rápida caracterização da diferença do pensamento de Hegel e do nosso, no que se refere ao objeto, no que se refere à medida e ao caráter de um diálogo com a história do pensamento, tentamos pôr em marcha, com um pouco mais de clareza, o diálogo iniciado com Hegel. Isto significa: ousamos uma experiência com o passo de volta. A expressão “passo de volta” suscita múltiplas interpretações falsas. “Passo de volta” não significa um passo isolado do pensamento, mas uma espécie de movimento do pensamento e um longo caminho. Na medida em que o passo de volta determina o caráter de nosso diálogo com a história do pensamento ocidental, o pensamento conduz, de certo modo, para fora do que até agora foi pensado na filosofia. O pensamento recua diante de seu objeto, o ser, e põe o que foi assim pensado num confronto, em que vemos o todo desta história, e, na verdade, sob o ponto de vista daquilo que constitui a fonte de todo este pensamento, enquanto lhe prepara, enfim, o âmbito de sua residência. Isto não é, à diferença com Hegel, um problema já transmitido e já formulado, mas aquilo que, em toda parte, através de toda esta história do pensamento, não foi questionado. Designamo-lo provisória e inevitavelmente na linguagem da tradição. Falamos da diferença entre o ser e o ente. O passo de volta vai do impensado, da diferença enquanto tal, para dentro do que deve ser pensado. Isto é o esquecimento da diferença. O esquecimento a ser aqui pensado é o velamento da diferença enquanto tal, pensado a partir da lethe (ocultamento), velamento que por sua vez originariamente se subtrai. O esquecimento faz parte da diferença porque esta faz parte daquele. O esquecimento não surpreende a diferença, apenas posteriormente, em consequência de uma distração do pensamento humano.

A diferença de ente e ser é o âmbito no seio do qual a metafísica, o pensamento ocidental em sua totalidade essencial, pode ser aquilo que é. O passo de volta, portanto, se movimenta para fora da metafísica e para dentro da essência da metafísica. A observação sobre o emprego que Hegel faz parte da palavra-guia “ser”, em sua pluralidade de sentidos, permite reconhecer que o discurso sobre ser e ente jamais se deixa fixar numa época da história reveladora de “ser”. O discurso do “ser” também jamais compreende este nome no sentido de um gênero, sob cuja vazia universalidade se alinham, como casos individuais, as doutrinas do ente historicamente apresentadas. “Ser” fala sempre historialmente e, por isso, perpassado pela tradição.

(…)

Trata-se aqui de discutir, primeiro, apenas como questão, aquela da essência onto-lógica da metafísica. Unicamente o próprio objeto pode apontar para o lugar o qual analisa a questão da constituição onto-teo-lógica da metafísica de tal maneira que procuremos pensar mais objetivamente o objeto do pensamento. Este foi legado ao pensamento ocidental sob o nome de, “ser”. Se pensarmos este objeto um pouco mais objetivamente, se prestarmos atenção ao que é controvertido no objeto, então se mostra: ser significa sempre e em toda parte: ser do ente, locução em que deve ser pensado o genitivo como genitivus obiectivus. Ente significa sempre e em toda parte: ente do ser, locução em que deve ser pensado o genitivo como genitivus subiectivus. Falamos, sem dúvida, com reserva de um genitivo, referindo-nos a objeto e sujeito; pois estas expressões sujeito e objeto já têm por sua vez origem em uma caracterização do ser. Claro está apenas que no ser do ente e no ente do ser se trata, cada vez, de uma diferença.

De acordo com isto, pensamos apenas então objetivamente o ser quando o pensamos na diferença com o ente e este na diferença com o ser. Assim a diferença se torna objeto de nossa análise, em sentido próprio. Se procurarmos representá-la, então logo nos descobrimos levados a conceber a diferença como relação que nossa representação acrescentou ao ser e ao ente. Com isto a diferença é rebaixada a uma distinção, a uma obra de nosso entendimento.

Aceitemos uma vez que a diferença é acréscimo de nossa representação, então surge a questão: um acréscimo destinado a quê? Responde-se: ao ente. Bem. Mas que quer dizer isto: “o ente”? Que outra coisa significa senão: tal coisa que é? Assim abrigamos o presumido acréscimo, a representação da diferença, junto ao ser. Mas “ser” mesmo diz: ser que é ente. Já encontramos sempre ente e ser em sua diferença lá para onde deveríamos levar a diferença como o suposto acréscimo. A situação aqui é idêntica à do conto da Lebre e do Ouriço de Grimm: “Já sempre estou aqui” (Ick bünn all hier). Poder-se-ia agora proceder de modo global com este singular estado de coisas que consiste no fato de que ente e ser já sempre são previamente encontrados a partir da diferença e no seio dela, e então esclarecê-la assim: nosso pensamento representativo é assim organizado e constituído que ele aplica, por assim dizer, antecipadamente, em toda parte, além do uso de seu intelecto e, contudo, dele emergindo, a diferença entre o ente e o ser. Deste esclarecimento, cristalino em sua aparência, mas também rapidamente feito, muita coisa poder-se-ia dizer e ainda mais questionar; antes de mais nada talvez isto: de onde surge o “entre” no qual a diferença deve, por assim dizer, ser inserida?

Deixamos de lado opiniões e esclarecimentos; em vez disso, fixemos nossa atenção no seguinte: em toda parte e sempre encontramos aquilo que é chamado diferença: no objeto do pensamento, no ente enquanto tal, e isto tão despojado de dúvidas, que primeiro nem tomamos conhecimento desta constatação, enquanto tal. Nada nos obriga também a fazer isto. Nosso pensamento está livre para deixar impensada a diferença ou para considerá-la propriamente enquanto tal. Mas esta liberdade não vigora para todos os casos. Imprevistamente pode dar-se o fato de que o pensamento se veja chamado a enfrentar a questão: o que, pois significa este tão falado “ser”? Mostra-se aqui imediatamente o ser como ser…, por conseguinte, no genitivo da diferença; então a questão anterior pode ser formulada mais objetivamente assim: que pensais da diferença, se tanto o ser como o ente, cada um a seu modo, tornam-se fenômenos emergindo da diferença? Para estarmos à altura desta pergunta, devemos primeiro colocar-nos num confronto objetivo com a diferença. Este confronto abre-se-nos se realizarmos o passo de volta. Pois somente através da distância por ele trazida se dá o próximo enquanto tal, a proximidade chega à sua primeira manifestação. Pelo passo de volta, liberamos o objeto do pensamento, o ser da diferença, para um confronto, que absolutamente pode permanecer inobjetivado.

Olhando ainda sempre a diferença e, contudo, liberando-a já pelo passo de volta para dentro do que deve ser pensado, podemos dizer: ser do ente quer dizer: ser que e o ente. O “é” fala aqui transitivamente, ultrapassando. O ser se manifesta como fenômeno ao modo de uma ultrapassagem para o ente. Contudo, o ser não passa para o outro lado, para junto do ente, deixando seu lugar, como se o ente pudesse, subsistindo primeiro sem o ser, ser apenas então abordado por ele. Ser ultrapassa (aquilo) para, sobrevêm desocultando (aquilo) que unicamente através de tal sobrevento advém como desvelamento a partir de si. Advento quer dizer: ocultar-se no desvelamento; portanto, demorar-se oculto no presente: ser ente.

Ser mostra-se como sobrevento desocultante. Ente enquanto tal aparece ao modo do advento que se oculta no desvelamento.

Ser no sentido do sobrevento desocultante e ente enquanto tal, no sentido do advento que se esconde, acontecem como fenômeno os enquanto são assim diferenciados a partir do mesmo, a partir da di-ferença. Somente esta dá e mantém separado o “entre” em que sobrevento e advento são conservados na unidade, em que são sustentados distintos e identificados. A diferença entre ser e ente é, enquanto diferença entre sobrevento e advento, a de-cisão desocultante-oculante de ambos. Na de-cisão impera a revelação do que se fecha e se vela; este imperar dá a separação e união de sobrevento e advento.

Enquanto procuramos considerar a diferença enquanto tal, não a conseguimos fazer desaparecer, mas a perseguimos na sua origem essencial. A caminho dela pensamos a de-cisão de sobre-vento e ad-vento. Isto é o objeto do pensamento pensado por um passo de volta mais objetivamente: ser pensado a partir da diferença.

Préau

Stambaugh

Original

  1. In ein Gegenüber. Cf. Le Principe de raison, p. 185.[↩]
  2. Ruse du hérisson, qui prétend battre le lièvre à la course, mais installe secrètement au but sa hérissonne, indiscernable de lui pour le lièvre. Lui-même fait seulement semblant de courir et reste au point de départ. Qu’il aille dans un sens ou dans l’autre, le lièvre trouve toujours au bout du champ un hérisson qui lui crie : « Je suis là! »[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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