GA10:55-59 – “a rosa é sem porquê”

Telles Menezes

«A rosa é sem porquê; ela floresce, porque ela floresce.»

Porque? Não nomeia esta palavra a relação com um fundamento, ao atraí-lo, por assim dizer? A rosa – sem porquê e contudo não sem porque. Portanto o Poeta contradiz-se e fala obscuramente. Mas é nisso que consiste a Mística. Mas o Poeta fala claro. «Porquê» e «porque» têm significados diferentes. «Porquê» é a palavra para a pergunta pelo fundamento. O «porque» contém a referência respondente ao fundamento. O porquê busca o fundamento. O porque traz o fundamento. Diferente é, em conformidade com isto, o modo pelo qual a relação com o fundamento é representado. No porquê a relação com o fundamento é aquela do buscar. No porque a relação com o fundamento é aquela do alegar. No entanto, para onde quer que as diferentes relações respectivamente vão, o fundamento permanece, assim parece, o mesmo. Na medida em que a primeira parte do primeiro verso nega a presença do fundamento, mas a segunda parte do mesmo verso afirma terminantemente o subsistir do fundamento através do «porque», apresenta-se afinal uma contradição, isto é uma simultânea afirmação e negação do mesmo, quer dizer, do fundamento. Afinal, o fundamento que o «porquê» busca e o que o «porque» alega, é o mesmo fundamento? A resposta dá-no-la o segundo verso do dito. Ele contém o esclarecimento do primeiro verso. Todo o aforismo é tão espantosamente claro e laconicamente construído, que nos agradaria chegar à ideia de que à grande (61) Mística pertencería a mais extrema agudeza e profundidade de pensamento. Esta é, com efeito, também a verdade. Mestre Eckehart demonstra-o.

O segundo verso no aforismo de Angelus Silesius reza:

«Ela não repara em si própria, não pergunta, se a vemos.»

A primeira parte do segundo verso diz-nos como o «sem» na primeira parte do primeiro verso deve ser entendido: a rosa é rosa, sem que ela tenha de reparar em si própria. Ela não precisa de se tomar a si própria em atenção. Para o modo pelo qual a rosa é, não é expressamente necessária uma atenção a si própria, e isto quer dizer, a tudo aquilo que a ela pertence, que a determina. Ela floresce, porque ela floresce. Entre o seu florescimento e os fundamentos do florescimento não se intromete uma atenção aos fundamentos, em virtude da qual os fundamentos pudessem ser primeiramente como fundamentos. Angelus Silesius não pretende desmentir, que o florescer da rosa tem um fundamento. Ela floresce, porque – ela floresce. Pelo contrário, o humano deve, para ser nas possibilidades essenciais do seu ser-o-aí, prestar atenção a quais são para ele os fundamentos determinantes e como eles o são. Mas disso não fala o aforismo de Angelus Silesius e certamente porque ele ainda significa qualquer coisa de mais oculto. Os fundamentos, que como destinação de-terminam (bestimmen) essencialmente o homem, têm origem na essência do fundamento. Por isso são sem fundo (ab-grundig) 1 estes fundamentos (comparar com o que adiante se diz sobre as outras tonalidades do princípio do fundamento). Mas à rosa acontece o florescer, na medida em que nele se abre (darin) e não repara naquilo que como algo diferente, a saber como causa e condição do florescer, poderia primeiramente causá-lo. O fundamento do seu florescer não (62) necessita de lhe ser primeiro e expressamente entregue. De outro modo é, pelo contrário, com o humano. Como este se relaciona com o fundamento, vem à luz no segundo verso do aforismo.

Aqui diz-se da rosa:

«Ela não repara em si própria, não pergunta, se a vemos.»

Em contraste com a rosa, o homem vive muitas vezes assim, que ele cobiça como fazer efeito no seu mundo, e o que este dele pensa e exige. Mas também quando esse tal cobiçar não tem lugar, nós humanos, não podemos ser a essência que nós somos, sem que nós reparemos no mundo, que nos determina com que atenção é que nós simultaneamente reparamos em nós próprios. A rosa não necessita disso. Pensando a partir de Leibniz, isto significa: para que a rosa floresça, ela não precisa da entrega dos fundamentos, nos quais o seu florescer se fundamenta. A rosa é a rosa, sem que uma reddere rationem, uma entrega do fundamento, tivesse de pertencer ao seu ser-rosa. Apesar disso a rosa nunca é sem fundamento. A relação da rosa com aquilo que o princípio do fundamento diz, continua, assim parece, discrepante.

A rosa é certamente sem porquê, mas afinal ela não é sem fundamento. «Sem porquê» e «sem fundamento» não são o mesmo. E apenas isto que o mencionado aforismo nos deveria por enquanto elucidar. A rosa não fica de fora, na medida em que ela é algo, da área de influência do princípio magno. Mesmo assim a maneira como ela pertence a esta área de influência, é uma maneira própria e por isso diferente da maneira como nós, humanos, nos detemos na área de influência do princípio do fundamento. Sem dúvida que estaríamos a pensar sucinto demais, se pretendéssemos afirmar que o sentido do aforismo de Angelus Silesius, se abre apenas para nomear a diferença dos modos, pelos quais a rosa e o homem, são o que são. O indito do aforismo – e tudo gira em torno disto – diz pelo contrário que o homem mais oculto da sua essencia, só é primeiramente verdadeiro quando ele ao seu modo, é assim como a rosa – sem porquê. Não podemos continuar a aprofundar aqui este pensamento. Nós meditamos agora apenas na frase: «A rosa é sem porquê;» meditamo-la atendendo à versão breve rigorosa do princípio do fundamento: nada é sem porquê. (63)

O que é que se nos demonstrou? Demonstrou-se: o principium reddendae rationis não é legítimo para a rosa, e para tudo o que é do seu gênero. A rosa é, sem a entrega pesquisadora que olha em torno de si, dos fundamentos, com base nos quais ela floresce. (O fundamento, sobre o qual a rosa floresce, não tem para a rosa o carácter de reivindicação, que de ela para ela, a entrega do fundamento exige. Se fosse assim, então isso quereria dizer, que ao florescer da rosa pertenceria a entrega dos fundamentos do florescer como os fundamentos que aqui regem. Mas a rosa floresce, porque ela floresce. O seu florescer é simplesmente abrir-se-a-partir-de-si.) Ao mesmo tempo temos o direito de afirmar, que o principium reddendae rationis é legítimo também para a rosa. E que é legítimo, na medida em que a rosa se torna objecto da nossa representação e nós exigimos uma informação sobre qual é o modo, isto é com origem em que fundamentos e causas, sob que condições, é que a rosa pode ser, o que ela é.

Em que posição se encontra aqui o principium reddendae rationis? Ele é legítimo a partir da rosa, mas não para a rosa; a partir da rosa, na medida em que ela é objecto da nossa representação; não para a rosa, na medida em que ela permanece em si própria, é simplesmente rosa.

Nós vemo-nos conduzidos perante um estranho estado de coisas: algo, como a rosa, é com efeito não sem fundamento e é, não obstante, sem porquê. Algo cai dentro da área de legitimidade do princípio do fundamento na sua versão vulgar. O mesmo algo cai para fora da área de legitimidade do princípio do fundamento na versão rigorosa. Mas para Leibniz e todo o representar moderno, como nós vimos nas aulas anteriores, a área de legitimidade do princípio do fundamento pensado rigorosamente é exactamente tão vasta, isto é ilimitada como aquela da versão entendida vulgarmente. Para Leibniz, o princípio «nada é sem fundamento» diz tanto como: nada é sem porquê. Segundo o aforismo de Angelus Silesius esta comparação não é legítima.

Préau

Original

  1. A preposição alemã ab, realçada pelo hífen de Heidegger, indica no sentido que aqui interessa, movimento ou direcção para baixo. O adjectivo ab-grundig, numa tradução livre, poderia significar algo aproximado de: o que está para baixo do fundo. Para baixo do fundo, fica aquilo que é abissal, um dos significados usuais de ab-grundig, ou o insondável, mas nós aqui optámos pela expressão sem-fundo. (N. T)[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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