GA10 – ratio (razão)

O princípio do fundamento enquanto o fundamento do princípio – esta estranha relação torna confuso o nosso representar habitual. Tal não nos deve surpreender, admitindo que a confusão [28] agora surgida tem uma origem genuína. Poder-ser-ia certamente duvidar disto e chamar a atenção para isto que o confuso nasce apenas de jogarmos com as palavras «fundamento» e «princípio», que formam a epígrafe do princípio do fundamento. A jogatina com palavras chega entretanto logo ao fim, quando nos vemos devolvidos à versão latina do princípio do fundamento. Ela reza: nihil est sine ratione. Mas como reza a correspondente epígrafe latina? Leibniz denomina o princípio do fundamento o principium rationis. O que principium aqui significa, poderemos saber através da sucinta definição, que Christian Wolff, o mais activo discípulo de Leibniz, dá na sua Ontologia. Ele diz aí (§ 70): principium dicitur id, quod in se continet rationem alterius. Principium é consequentemente aquilo que a RATIO em si contém de outrem. Por conseguinte, o principium rationis não é outra coisa senão a RATIO rationis: o fundamento do fundamento. Também a epígrafe latina do princípio do fundamento nos impele para a mesma confusão e complicação: o fundamento do fundamento; o fundamento vira-se para trás para si próprio, conforme se anuncia no princípio do fundamento como o fundamento do princípio. Por conseguinte, não reside no teor da epígrafe do princípio, nem em alemão, nem em latim, o facto de nós não podermos ir em frente ao longo do princípio do fundamento, senão que somos imediatamente arrastados para um movimento anelar. Pois continua a dever-se ter em consideração, que a epígrafe alemã: «o princípio do fundamento» (Der Satz vom Grund) é totalmente outra coisa do que a tradução literal da epígrafe latina: principium rationis, mesmo quando nós em vez de princípio do fundamento dizemos mais adequadamente: princípio fundamental do fundamento. Pois nem a palavra fundamento é a tradução literal da palavra RATIO (raison) nem a palavra princípio fundamental é a tradução literal da palavra principium. Justamente isto pertence ao enigma do princípio do fundamento, assim como do principium rationis, que o princípio (Satz) e o princípio (Prinzip) nos confundem logo com a simples epígrafe, sem que nós reflictamos o mínimo que seja sobre o seu conteúdo. O enigmático não se encontra nas epígrafes, [29] como se nós pudéssemos praticar com estas palavras um jogo vazio. O enigmático do princípio do fundamento, reside nisto que o princípio (Satz) que está para discussão como princípio que ele é, tem o nível e o papel de um princípio (Prinzip). [tr. Telles Menezes; GA10: SEGUNDA AULA]

Leibniz escreve num dos últimos ensaios (Specimen inventorum, Philos. Schriften ed. Gerhardt VII, 309): duo sunt prima principia omnium ratiocinationum, Principium nempe contradictionis… [39] et principium reddendae rationis; «há dois princípios superiores para todos os procedimentos demonstrativos, o princípio – entende-se – da contradição e o princípio reddendae rationis». Este princípio mencionado em segundo lugar diz, quod omnis veritatis reddi RATIO potest (ib.), «que para cada verdade (isto é, segundo Leibniz, para cada verdadeiro princípio) pode ser concedido um fundamento». O principium rationis é para Leibniz, pensado rigorosamente, o principium reddendae rationis. Rationem reddere significa: devolver o fundamento. Por que razão devolver e para onde dar de volta? Porque nos métodos demonstrativos, falando em geral do reconhecimento, tratando-se da re(a)-presentação dos ob-jectos, entra em jogo este «devolver». A linguagem latina da Filosofia di-lo mais claramente: o conceber é re-praesentatio. Aquilo que vem ao encontro, vem em direcção ao eu representante, de volta para ele e é apresentado ao seu encontro, (de)posto num presente. Conforme o principium reddendae rationis, o representar tem de, caso pretenda que seja reconhecedora, dar de volta o fundamento daquilo que vem ao encontro ao representar, e isto quer dizer, dá-lo de volta a si mesmo (reddere). No representar re-cognitivo o fundamento é entregue ao eu recognitivo. Isso é exigido pelo principium rationis. O princípio do fundamento é por isso, para Leibniz, o princípio fundamental do fundamento a ser deposicionado. [tr. Telles Menezes; GA10: TERCEIRA AULA]

O princípio do fundamento é por isso apenas um princípio normativo dentro do sistema leibniziano, porque este princípio se relaciona com tudo que é. Pois na versão que o próprio Leibniz nomeia como a vulgar, reza: nihil fit sine causa. Nada acontece, isto é, nada se torna em algo sendo (etwas Seiendem) sem causa. A versão vulgar do princípio do fundamento não é incorrecta, mas contudo, no sentido de Leibniz ela é imprecisa. O principium rationis, que é válido para tudo que de certo modo é, não rege apenas o reino dos acontecimentos naturais, mas também a área, que nós hoje denominamos «a História.» Mais ainda: Natureza e História pertencem à totalidade da essência do ente, que Leibniz em ressonância com o mais antigo uso da língua do pensamento ocidental denomina como «Natura». A palavra está escrita com maiúscula. Um dos mais profundos, entre os graves ensaios ulteriores de Leibniz, começa assim (Gerh. VII, 289 ff.): RATIO est in Natura, cur aliquid potius existat quam nihil – «Fundamento é na Natureza, pela qual algo pode existir mais do que nada». «Natureza» não tem aqui o significado de ser uma área do ente por diferença com uma outra. «Natureza» é agora referida no sentido que nós pensamos, quando falamos da natureza das coisas: Natura, quam rebus tribuere solemus (Gerh. IV, 504 ff.); «a Natureza, à qual nós [46] costumamos atribuir as coisas». A característica fundamental nesta assim entendida natureza das coisas, é porque algo pode existir em vez de nada. [tr. Telles Menezes; GA10: QUARTA AULA]

A primeira e decisiva palavra do ensaio, RATIO, está sublinhada no manuscrito. Leibniz afirma depois numa das frases seguintes: Ea RATIO debet esse in aliquo Ente Reali seu causa. «Este fundamento (na [natureza] das coisas, em conformidade com a inclinação que elas têm, antes para existirem do que para não existirem) dever estar num, de algum modo, Ente Real, ou na sua causa.» Deve existir uma causa primeira. Esse existente é nomeado na frase seguinte, a ultima RATIO Rerum, o extremo (supremo) fundamento existente (seiende) de todas as coisas. Leibniz acrescenta a propósito: et (a saber, illud Ens necessarium) uno vocabulo solet appelari DEUS, «e aquele necessariamente como o supremo ente fundamental (Grund Seiende) costuma ser chamado com uma palavra, Deus». [tr. Telles Menezes; GA10: QUARTA AULA]

Como a ultima RATIO da Natura, como o extremo, supremo e isto quer dizer, o primeiro fundamento existente (seiende) para a natureza das coisas, deve-se colocar aquilo que costumamos denonimar por Deus. [48] [tr. Telles Menezes; GA10: QUARTA AULA]

Na natureza das coisas, existe um fundamento para que qualquer coisa antes seja, do que seja nada. O fundamento chama-se Deus como a primeira causa existente de todo o ente. Mas porque é legítimo o princípio de que deve haver um fundamento para que alguma coisa antes seja, do que ela não seja? Com este princípio inicia Leibniz o seu ensaio. Repete-se o teor do princípio: RATIO est in Natura, porque é que existe algo mais do que nada. «Fundamento é na natureza das coisas.» Este princípio invertido pela extremidade é ele próprio já uma consequência, a saber, do princípio do fundamento. Imediatamente a seguir ao princípio antes mencionado prossegue Leibniz no texto: Id consequens est magni illius principii, quod nihil fiat sine ratione. «Isso – ou seja, o que o primeiro principio diz – , é uma consequência, um seguimento daquele principium magnum, daquele magno princípio fundamental, o qual diz que nada é, isto é, nada chega ao ser, sem fundamento.» [tr. Telles Menezes; GA10: QUARTA AULA]

A primeira menção publicada do principium rationis encontra-se em Leibniz no tratado «Theoria motus abstracti» (Gerh. Philos. IV, 232). Esta teoria considera aquelas condições para a possibilidade de movimento, as quais são independentes das manifestações perceptíveis sensorialmente. Leibniz enviou o tratado, em 1671, com vinte e cinco anos de idade, à Academia das Ciências de Paris. Neste tratado, diz ele o seguinte, quase no fim de um dos princípios estabelecidos sobre o movimento considerado abstractamente: pendet ex nobilissimo illo (para completar: principio) Nihil est sine ratione; «ele (ou seja, o princípio considerado sobre o movimento abstracto) depende daquele mais conhecido e simultaneamente mais insigne princípio: Nada é sem fundamento.» Leibniz pressupõe aqui a versão [55] tradicional do princípio do fundamento como geralmente conhecida e admitida, e atribui-lhe contudo, ao mesmo tempo, um papel extraordinariamente dominante. O princípio do fundamento é o principium nobilissimum; ele é o mais nobre princípio. Seis anos mais tarde (1677), Leibniz fala do principium rationis nas suas anotações aos escritos de um discípulo de Espinosa. Leibniz visitara Espinosa em Amesterdão, na sua viagem de regresso de Londres para a Alemanha, entre 18 e 28 de Novembro de 1676. Leibniz escreve na passagem mencionada (IV, 138): id, quod dicere soleo, nihil exist er e nisi cujus reddi potest RATIO existentiae sufficiens, «(o principio), que eu costumo dizer (na forma), nada existe, cujo fundamento suficiente de existência não possa ser entregue». [tr. Telles Menezes; GA10: QUINTA AULA]

O fundamento, que pretende a sua entrega, exige simultaneamente, que ele seja suficiente enquanto fundamento, isto é, que baste plenamente. Para quê? Para que possa salvaguardar um objecto na sua posição. No plano de fundo da determinação da suficiência, (da suffectio), encontra-se uma representação condutora do pensamento leibniziano, aquela da perfectio, isto é, da integridade (Vollständigkeit) das determinações para o permanecer de um objecto. Só na perfeição das condições da sua possibilidade, só na perfeição dos seus fundamentos está a consistência (Ständigkeit) de um objecto, do princípio ao fim salvaguardada, perfeita. O fundamento (RATIO) está relacionado como causa (causa) com o efeito (efficere); o fundamento em si mesmo deve ser suficiente (sufficiens, sufficere). Este suficiente é exigido e definido através da perfectio (perficere) do objecto. Que na proximidade do princípio do fundamento a língua como por moto próprio fale de um efficere, sufficere, perficere, isto é de um multiforme facere, fazer, de um pro-duzir e en-tregar, não é certamente um acaso. A epígrafe do princípio do fundamento pensada rigorosa e perfeitamente, reza para Leibniz: principium reddendae rationis sufficientis (Monadologie § 32), o princípio fundamental do fundamento suficiente a ser entregue. Nós podemos também dizer: O princípio do fundamento competente. Aí, onde como no caso da descoberta e definição leibniziana do princípio do fundamento suficiente, vem à luz um princípio magno, o pensamento e a concepção atingem, segundo todos os pontos de vista essenciais, um movimento de tipo novo. Isso é o modo do pensamento moderno, no qual nós próprios nos detemos [56] quotidianamente, sem que sintamos e reparemos ainda expressamente na reivindicação do fundamento à entrega em toda a representação. Em consequência disto, mais oculto no histórico (geschichtlich) do que visível na história factual (historisch), Leibniz define não apenas o desenvolvimento da Lógica moderna para a Logística e para a máquina pensante, não apenas a mais radical interpretação da subjectividade do sujeito no interior da Filosofia do Idealismo Alemão e seus depositários vindouros. O pensamento de Leibniz transporta e dá forma à tendência principal daquilo que pensado com alcance suficiente, poderíamos denominar a Metafísica da Era Moderna. O nome de Leibniz não se encontra por essa razão nas nossas reflexões como uma referência a um sistema de filosofia passado. O nome denomina o presente de um pensamento, cuja força ainda está pendente (ausgestanden), um presente, por cujo encontro nós ainda esperamos. Apenas se olharmos para trás, para aquilo que Leibniz pensa, poderemos nós caracterizar a era presente, à qual se chama a Era Atômica, como aquela que está sujeita ao poder do principium reddendae rationis sufficientis. A reivindicação à entrega do fundamento suficiente para tudo o que é concebido, expressa-se naquilo, que hoje se tomou objecto sob o nome de atômico e energia atômica. [tr. Telles Menezes; GA10: QUINTA AULA]

Somos nós, humanos, quem pomos o seu próprio representar sob a reivindicação de que o fundamento deve ser sempre entregue? Ou põe o próprio fundamento, a partir de si, enquanto fundamento, uma tal reivindicação ao nosso representar? Esta pergunta só poderá ser evidentemente respondida, quando soübermos com clareza suficiente em que consiste a essência do fundamento, quando nós tivermos perguntado previamente pela essência do fundamento, para por esse meio ouvirmos dele, o que é isso, que se chama fundamento e RATIO. Sobre isso, o princípio do fundamento, deverá dar a próxima e completamente esclarecedora informação. [tr. Telles Menezes; GA10: QUINTA AULA]

Escutando apenas imperfeitamente, «a rosa é sem porquê» diz o mesmo que «a rosa não tem nenhum fundamento». Dito com exactidão, «sem porquê» significa tanto como: sem relação com o fundamento. Porém o «porque» nomeia uma relação com o fundamento. Certo. Apenas temos de considerar sobre aquilo que nós levianamente designamos por relação, é uma das coisas mais capciosas, tanto mais que nós a respeito dela nos encontramos aprisionados em opiniões unilaterais. Determinante para cada relação permanece sempre o saber em que domínio é que ela se joga. A quem, por exemplo, se demora no estrangeiro, é-lhe interdita a relação habitacional com a terra natal. Falta a relação do habitar na terra natal. Mas a falta da relação é em si mesma uma intimidade própria desta relação, isto é a saudade da terra natal. A relação pode com isso, justamente através da sua própria ausência, existir. Nós falamos preparatoriamente da relação com o fundamento numa certa uniformidade. No «sem porquê» e negada a relação com o fundamento, no «porque» ela é afirmada. Isto permanece correcto, mas também na superfície. Por isso nós perguntamos: O que nega o «sem» em comparação com o «porque»? Não simplesmente a relação com o fundamento, mas primeiramente [68] isto que a rosa sem a relação questionadora, permanece o fundamento expresso da relação re(a)presentante com o fundamento. Pelo contrário, a relação re(a)presentante com o fundamento é para nós, humanos, corrente. Tudo isto demonstra apenas por enquanto que: o fundamento pode encontrar-se em relações multiformes connosco como o ser representante (vorstellenden Wesen). Mas não são também os animais e até as plantas seres representantes? Certo. A experiência-do-fundamento (Grund-erfahrung) do pensamento leibniziano até vai tão longe que afirma também que, aquilo que nós costumamos denominar de matéria inanimada, é representante. Cada ser é, segundo Leibniz, ser-vivo (Lebewesen) e como tal representante-apetente. Certamente que o homem é em primeiro lugar um tal ser vivo, que no seu representar pode apresentar perante si um fundamento enquanto fundamento. (Monadologie § 29 sqq.). O homem é, segundo uma definição tradicional, o animal rationale. Por isso o homem vive na relação representante com a RATIO, como o fundamento. Ou deveríamos afirmar ao contrário: como o homem se encontra na relação conceptual com a razão, eis porque ele é um animal rationale? Ou mesmo esta inversão é insuficiente? Em qualquer caso o homem vive com a possibilidade, de representar o fundamento como fundamento. Os outros seres vivos terrenos vivem decerto através de fundamentos e causas, mas nunca por princípios. poderíamos, por isso, ser tentados a abrigar aqui a segunda parte do primeiro verso, «ela floresce, porque ela floresce», e esclarecer: a rosa não vive segundo fundamentos, ela vive sem porquê, mas ela vive através de fundamentos. Apesar disso, Angelus Silesius queria dizer qualquer coisa completamente diferente com o «ela floresce, porque ela floresce». Se ele pretendesse apenas realçar a diferença da rosa com os humanos, então ele poderia dizer: a rosa floresce, porque o Sol brilha e uma grande variedade de outras coisas a circunda e determina. [tr. Telles Menezes; GA10: SEXTA AULA]

Além disso, levantou-se um obstáculo entretanto neste caminho, no qual nós ainda muitas vezes esbarraremos. Nós confrontámos ambas as versões abreviadas do princípio do fundamento: nada é sem fundamento – nada é sem porquê. Através da comparação de ambos os princípios, demos atenção a que o fundamento, por vezes, e decerto necessariamente, é um fundamento respectivamente representado. Ficamos desconfiados e gostaríamos de perguntar: mas é então possível alguma vez que haja um fundamento, o qual liberto de qualquer «porquê» e «porque» ainda seja um fundamento? Não terá tal coisa como um «fundamento» de trazer a partir de si, e por isso necessariamente, em si a relação connosco como o ser pensante? A resposta a esta pergunta e antes disso a ponderação, sobre se nos é permitido perguntar deste modo, dependem de como nós determinamos, o que agora continuamente é nomeado por «fundamento» e «RATIO». Desta determinação depende em absoluto, como é que nós encontraremos o caminho certo em toda a falta de transparência, que apesar dos conhecimentos adquiridos, se reuniu agora em torno do princípio do fundamento. [tr. Telles Menezes; GA10: SEXTA AULA]

Apliquemos agora aquilo que foi mencionado brevemente sobre ver, ter em vista e equivocar-se, ao caso do ensaio que trata «Da Essência do Fundamento». Para este ensaio é evidente que, o princípio «nada é sem fundamento» afirma algo sobre o ente e não dá qualquer esclarecimento sobre isso, a que se chama «fundamento». Esta perspectiva sobre o presente conteúdo não alcança no entanto uma visão sobre o situado mais próximo. Em vez disso ela deixa-se arrastar para um passo que é quase inevitável. Nós podemos apresentar assim o passo como uma conclusão: O princípio do fundamento é uma afirmação sobre o ente. Em consequência ele não dá nenhuma informação sobre a [74] essência do fundamento. Portanto o princípio do fundamento não se apropria, sobretudo na sua versão tradicional, como fio condutor para uma discussão, para aquilo para onde o nosso sentido se inclina, quando nós reflectimos sobre a essência do fundamento. Nós vemos: o princípio do fundamento diz algo sobre o ente. Mas o que é que nós não permitimos que chegue até à vista, quando nós a deixamos ficar pelo apuramento anterior? O que é que ainda se pode ter em vista no que está à vista? Nós aproximamo-nos mais do que aqui pode ser tido em vista, logo que nós ouvimos ainda mais claramente e retemos no ouvido, o princípio do fundamento naquela entoação, que nós antecipadamente denominamos de determinante: nihil est sine ratione. «Nada é sem fundamento». A entoação permite-nos ouvir uma unissonância de «é» e «fundamento», est e RATIO. Nós até já ouvimos esta unissonância, antes de verificarmos, que o princípio do fundamento afirma sobre o ente que ele tem um fundamento. [tr. Telles Menezes; GA10: SEXTA AULA]

O pensamento de Kant é crítica da razão pura, da RATIO pura. A razão é segundo Kant a faculdade dos princípios, isto é dos princípios fundamentais, da doação de fundamento. Logo nesta denotação salta à vista, que o princípio do fundamento, o principium rationis, rege no pensamento de Kant de uma forma extraordinária. Esse é justamente o fundamento para que Kant apenas raramente fale do princípio do fundamento. Crítica da razão pura não significa aqui de modo geral: criticar no sentido de censurar. A crítica também não é simplesmente examinação e inspecção. A crítica também não coloca apenas limites à razão. A crítica leva, pelo contrário, a razão até às suas fronteiras. Limites e fronteiras não são a mesma coisa. Habitualmente nós julgamos que a fronteira é aquilo onde algo se interrompe. Mas a fronteira tem – segundo o antigo sentido grego – em absoluto o carácter de reunir e não o de separar. Fronteira é aquilo, de onde e em cujo contexto algo começa, se abre como aquilo que isso é. Quem permanecer alheio a este sentido de fronteira, não conseguirá nunca apreender um templo grego, uma estátua grega, um vaso grego no seu estar presente. Na utilização kantiana do título «crítica» vibra ainda o sentido grego de krinein: diferenciar, mas isso contudo no sentido de um levantar, através do qual é levantado aquilo de que se trata. A fronteira não defende, ela faz realçar a forma até à luz do estar presente e sustenta-a. Kant conhecia o sentido superior da crítica. As suas três críticas apontam para o que designa como as «condições da possibilidade a priori». [tr. Telles Menezes; GA10: NONA AULA]

Isto quer dizer, pensado modernamente: perceber, razão (RATIO) e ser pertencem-se reciprocamente, e assim que a razão pura, a RATIO, não é outra coisa senão o pôr, isto é, o entregar do fundamento suficiente àquilo a respeito do qual isso como ente aparece, isto é, pode ser representado e encomendado, trabalhado e discutido. [tr. Telles Menezes; GA10: NONA AULA]

Nada nos impede de nos darmos por satisfeitos, por explicarmos a epígrafe «crítica da razão pura» como um título historicamente existente para a primeira entre as obras principais de Kant. Mas também podemos reflectir sobre isto que medida o pensamento de Kant é universal sob esta epígrafe, como uma reivindicação. Então demonstra-se a razão pura, a teórica e a prática, como RATIO pura no sentido em que ela é a posição do fundamento, isto é o fundamento de toda a fundamentação: a definidora de todas as condições da possibilidade do ente na sua unidade. A crítica da razão pura traz o fundamento de toda a fundamentação na sua forma esboçada. Na medida em que através de Kant o pensamento se torna crítica da razão pura, ele corresponde à reivindicação do principium rationis sufficientis. O pensamento de Kant traz à luz através desta correspondência a reivindicação do principium rationis em toda a sua envergadura, que a RATIO apenas é fundamento como RATIO no sentido da razão como da faculdade dos princípios fundamentais. [tr. Telles Menezes; GA10: NONA AULA]

O pensamento de Kant é no mais íntimo e no mais exterior crítica da razão pura, e pensamos nesse título em toda a sua plenitude e alcance. Razão significa e é RATIO, isto é a faculdade dos princípios fundamentais, isto é do fundamento. A razão é o fundamento fundante. O fundamento é apenas como mais razão da razão pura. Quando Kant, obedecendo ao motivo condutor do seu pensamento, reflecte sobre as condições da possibilidade a priori para a natureza e a liberdade, então este pensamento é como representação racional a entrega do fundamento suficiente para aquilo que ao homem pode ou não aparecer como ente, para o modo, como o aparecido pode aparecer e como não. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA AULA]

Em que medida é que nos auxilia a escassa referência à concatenação histórica interna entre o principium reddendae rationis sufficientis e a crítica da razão pura, para uma visão na época moderna do destino do ser? Como é que se remete o ser no circulo do pensamento kantiano? A pergunta perguntaria simultaneamente, como é que neste remeter-se o ser se retira. Na resposta a esta pergunta, teríamos de nos limitar a um único, mas decisivo traço do pensamento kantiano. Ele desenvolve-se no contexto em que Kant pela primeira vez de novo desde a filosofia dos Gregos projecta a pergunta pelo ser do ente como uma pergunta demasiado desenvolvida. Com esta pergunta como pergunta e através dela reflecte Kant expressamente sobre o caminho, que o ente prossegue no referente ao seu ser, sobre o método. Tudo isto acontece obviamente numa direcção de caminho completamente diferente, porque numa outra dimensão, da dos pensadores gregos. Direcção de caminho e âmbito do caminho da questão kantiana são caracterizadas pela RATIO, RATIO no duplo sentido de razão e fundamento. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA AULA]

Conforme à feição do pensamento moderno, o qual se move na área da razão, Kant pensa em e a partir da dimensão da razão. Esta é enquanto faculdade dos princípios fundamentais a faculdade em geral, de representar algo enquanto algo. O «eu represento-me algo enquanto algo» é a versão mais rigorosa do ego cogito de Descartes, do «eu penso». A dimensão da crítica, da razão teórica, da prática e da técnica, é assim a egoidade (Ichheit) do eu: a subjectividade do sujeito. Em relação ao eu como sujeito, o ente que é posto perante o eu no representar tem o carácter do objecto [115] para o sujeito. O ente é ente enquanto objecto para uma consciência. A consciência, ao permitir o objecto estar em si, representa-se assim a si própria, é consciência própria. Mas porque agora a área da subjectividade enquanto área da RATIO no sentido da razão é em si a área do principium rationis, a RATIO no sentido do fundamento, a crítica da razão pura persegue o fundamento suficiente para os objectos, isto é para os objectos enquanto objectos do sujeito representante consciente de si próprio. A pergunta crítica pelo fundamento suficiente para os objectos torna-se em pergunta pelas condições apriorísticas da possibilidade do representar que experimenta os objectos. Em que contexto consistem estas condições e de que modo elas possibilitam, segundo Kant, o representar, não pode ser aqui exposto. Importante agora é uma outra coisa. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA AULA]

Aqui o discurso não é nem sobre o transcendental, que no sentido de Kant define o ente como objecto na sua objectualidade, nem também de um modus entis generaliter consequens omne ens. É isto pela simples razão, que se está a pensar em grego e se fala de ón. O ón é physis tis, o mesmo que um abrir-se a partir de si próprio. O ón não é o ens no sentido do ens creatum da Escolástica medieval, ente como aquilo criado por Deus. ón não é no entanto também o objecto no que respeita à sua objectualidade. O que define, no sentido de Aristóteles, o ente no que respeita ao seu ser e o modo como isso acontece, é experimentado diferentemente do que na lição medieval do ens qua ens. Seria no entanto uma insensatez dizer que os teólogos medievais teriam interpretado mal Aristóteles; pelo contrário eles entenderam-no diferentemente, correspondendo ao modo pelo qual o ser se lhes remetia. Por sua vez é diferente o destino do ser para Kant. O diferente entendimento torna-se um mal entendido primeiramente aí, onde ele germina para uma única verdade possível e simultaneamente cai na categoria do que é para ser entendido. É primeiramente para Kant que o método, no qual o pensamento segue ao ser do ente, se torna o método transcendental. A rotulação da definição transcendental do ente enquanto tal não se esgota de modo algum em que o ente agora seja experimentado como objecto da razão subjectiva colada-ao-eu (ichhaften). Pelo contrário, a rotulação do método transcendental apoia-se em ela pertencer, como definição da objectualidade dos objectos, à própria objectualidade. A entrega do [119] fundamento suficiente para os objectos é aquela representação, que antes de tudo realça e salvaguarda a objectualidade dos objectos e por esse motivo pertence à objectualidade, isto é ao ser do próprio ente experimentável. O método transcendental corresponde à reivindicação do princípio do fundamento. Através do método transcendental chega o principium rationis sufficientis regente na RATIO (razão) à liberdade e à luminosidade do seu poder adquirido. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA AULA]

Pelo facto de que o ser do ente se remete como objectualidade dos objectos, afirma-se o destino com uma outrora inaudita decisão e exclusividade. Mas a este remeter-se corresponde também a decisão com a qual o ser se retira na origem da sua essência. Quando a RATIO como razão, isto é como subjectividade, é o veio de fonte da RATIO no sentido do fundamento e da sua reivindicação de entrega, então dentro da área da RATIO não pode encontrar qualquer lugar a pergunta pela origem da essência do ser como objectualidade. Por que razão não? Porque através da RATIO como subjectividade revela-se à luz que e como é que a razão encerra em si o conteúdo das rationes possíveis, dos fundamentos, e assim é o fundamento de toda a fundamentação. O transcendental do método transcendental de Kant é uma representação, que corresponde à entrega do fundamento suficiente, e isto quer dizer se apoia na reivindicação desta entrega. O transcendental não é de forma alguma um método inventado pelo pensamento humano. Como o transcendental do método acena para trás até ao physis dos Gregos, assim também indica ele ulteriormente para a mais recente época do destino do ser. Porque no método transcendental pertencente à objectualidade dos objectos, isto é ao ser do ente experimentável, funda-se aquilo que na Metafísica do Idealismo Alemão é a Dialéctica. Mas esta Dialéctica para ser pensada histórica-ontologicamente, transformada em Materialismo histórico-dialéctico, define multiplamente a história hodierna da [130] humanidade. A confrontação da história universal na nossa era dimana de mais longe do que aquilo que as evidentes lutas de poder políticas e econômicas nos gostariam de persuadir. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA PRIMEIRA AULA]

Com o remetimento do ser como objectualidade começa a retirada exterior do ser, na medida em que a origem da essência do ser nem sequer consegue ser visível como pergunta e digno-de-ser-perguntado. Porque razão não? Porque na área perfeita-mente medida em toda a sua extensão da RATIO como razão e subjectividade simultaneamente, se encontra decidida e encerrada a perfeita fundamentação do ente como tal. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA PRIMEIRA AULA]

Entretanto, há uma série de aulas que falamos sobre «ser» e sobre «fundamento», sem que tenhamos preenchido a mais urgente exigência, isto é de entender aquilo de que se fala incessantemente, tanto «ser» como «fundamento», através de noções rigorosas e assim garantir ao andamento da discussão previamente a necessária confiança. Por que razão esta omissão? Ela vem daquilo de que se falou até agora, se nós nos recordarmos da história do ser e do princípio do fundamento como princípio fundamental supremo. Aí o ser foi nomeado no sentido de physis de o-que se-abre-a-partir-de-si-mesmo; ser foi nomeado no sentido da objectualidade do objecto da experiência. Falou-se de fundamento como RATIO e como causa, como condição da possibilidade. Do que obviamente não se falou de modo directo, mas que contudo algo disso se pôde e teve de mostrar indirectamente no caminho até aqui, [133] foi o seguinte: aquilo que diferenciadamente se nomeia como «ser» e «fundamento» e numa tal nomeação é colocado sob uma certa luz, isso não permite a partir de si uma definição no sentido escolar da formação tradicional de conceitos. Quando nós por essa razão omitimos algo, que permanece inadmissível no caso, então trata-se de uma omissão, que pensada rigorosamente não o é. Deverão então os nomes que por modos diversos, trazem «ser» e «fundamento» à discussão, deverá então o pensado que nós pensamos nos nomes historicamente diferentes para «ser» e «fundamento», divergir numa confusa dispersão? Absolutamente não; porque naquilo que historicamente retomado e reunido se exceptua como uma confusa variedade de concepções, revela-se à luz uma coincidência e uma simplicidade do destino do ser e em conformidade, uma genuína constância da história do pensamento e do seu pensado. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA PRIMEIRA AULA]

O que porém nomeia a palavra «fundamento» e os nomes correspondentes, deixa-se ainda mais dificilmente expor, sobretudo então quando nós também aí buscamos ter em vista o mesmo que é debatido nos nomes até aqui utilizados como fundamento, RATIO, causa, causa primeira, condição da possibilidade. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA PRIMEIRA AULA]

Mas com tais observações que facilmente se puderam acumular, ficamos pendentes na explicação da palavra isolada «fundamento». Nós não avistamos ainda qualquer coisa do lugar, a partir do qual o princípio do fundamento fala, caso nós o ouçamos conforme a segunda tonalidade, que deixa ressoar uma co-pertança de fundamento e ser. Esta ressonância ouvimo-la nós, ao reflectirmos que o princípio do fundamento, mais exactamente a sua ordenação como um princípio fundamental supremo por Leibniz, prepara aquela época histórico-ontológica, na qual o ser como a objectualidade marcada transcendentalmente se revela. Reflictamos sobre isso, e então prestemos atenção ao seguinte: Aquilo que na nossa língua falada significa «princípio fundamental do fundamento», há a tradução abreviada da epígrafe principium reddendae rationis stifßcientis. Fundamento é a tradução de RATIO. Este apuramento deveria ser entretanto supérfluo. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

Além disso, o apuramento é um lugar comum, e assim decerto enquanto nós não nos preocuparmos com a importância que tem a tradução no caso presente e em casos semelhantes. Traduzir e traduzir não são a mesma coisa quando aqui se trata de uma carta comercial e ali de um poema. Aquela é traduzível, este não. Entretanto a técnica moderna, ou dito com mais precisão, a sua electiva-mente afim, interpretação logística moderna do pensamento e da fala, já pôs em funcionamento máquinas de tradução. Ao traduzir-se, não se trata apenas do que correspondentemente é traduzido, mas de que língua para que língua se traduz. Isto agora observado diz respeito entretanto a condições do traduzir, que com alguns [142] conhecimentos e uma reflexão mínima podem ser facilmente dominadas. Não obstante, podemos aí falhar ainda um traço decisivo, que perpassa todas as traduções essenciais. Com isto referimo-nos àquelas traduções, que em épocas, visto que isso ocorre no tempo, trasladam uma obra da poesia, do pensamento. O traço pensado, consiste em que a tradução em tais casos não é apenas interpretação mas também tradição. Como tradição ela pertence ao mais íntimo movimento da história. Conforme observação anterior, isso significa: uma tradução essencial corresponde respectivamente numa época do destino do ser ao modo como no destino do ser uma língua fala. Foi demonstrado, decerto apenas por alusão, como a Crítica da Razão Pura, de Kant, corresponde à reivindicação do princípio do fundamento suficiente e dá expressão a esta correspondência na linguagem. Mas «razão» assim como «fundamento» falam como traduções da palavra RATIO. Pensado historicamente, isto significa: a partir daquele pensamento de que a crítica da razão pura está no aclarar do princípio do fundamento suficiente, a palavra RATIO diz com o seu dizer duplo e unido, que nomeia como coincidente a razão e o fundamento. Em tal dizer transmite-se a RATIO e aquilo nela pensado. O transmitir aqui significado movimenta a autêntica história. Correndo o perigo de uma aparência de exagero, poderemos até mesmo dizer: se no pensamento moderno a RATIO não falasse na tradução, num sentido duplo como razão e como fundamento, então não haveria a Crítica da Razão Pura, de Kant, como delimitação das condições da possibilidade do objecto da experiência. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

Assim deveria pois a verificação de que a palavra «fundamento» é a tradução de RATIO, ter perdido a sua banalidade. Somente de passagem, seja referido que a fonte clássica para uma visão da tradição destinada da RATIO como fundamento e razão para o pensamento moderno, são os parágrafos 29 até 32 da «Monadologia» de Leibniz. «Monadologia» é o nome de um dos últimos escritos de Leibniz. Ele trata dos princípios da Filosofia. Os 90 parágrafos deste escrito permitem reconhecer tão claramente a estrutura da metafísica ocidental, especialmente da moderna, como quase nenhuma outra obra de pensamento antes da época de Kant. O mencionado escrito de Leibniz, surgido no ano de 1714, só foi publicado no texto original francês da Biblioteca de Hannover, em 1840, por um discípulo de Hegel, Joh. Ed. Erdmann. [143] [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

«Fundamento» é a tradução de RATIO. Aquilo que «fundamento» designa e aquilo de que o princípio do fundamento diz, transmite por consequência aquilo que é experimentado e pensado no duplo unido dizer da RATIO. Isso deveríamos nós interrogar. Aqui apenas o podemos fazer com traços grosseiros. Para que isso não se fique por uma casual explicação de uma palavra, mantenhamos em vista a orientação do caminho; porque é legítimo obter em vista porque é que, e como, ser e fundamento «são» o mesmo. Isto diz agora: é legítimo guardar e receber de volta na memória autêntica, na medida em que no início da história do ser a coincidência de ser e de fundamento se anuncia, e anuncia-se decerto para depois como essa coincidência permanecer durante muito tempo inaudível e impensada. Apesar disso este inaudível é o fabuloso, ou seja, a singularidade da história do ser e do seu início. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

Na palavra «fundamento» fala a RATIO e na verdade a partir do sentido duplo de razão e fundamento. Ser um fundamento, caracteriza também aquilo que nós denominamos causa primordial, em latim causa; razão pela qual o princípio do fundamento, como tantas vezes referido, também reza: Nihil est sine causa. Na sequência de uma longa tradição e habituação do pensamento e dizer, já não achamos mais nada de excitante, em que RATIO nomeie simultaneamente razão e fundamento. Pensando cuidadosamente, teríamos agora de admitir que aquilo que «fundamento» exprime, ou seja profundidade e terra, solo, tem de imediato muito pouco a ver com razão e perceber. Entretanto RATIO significa indiscutivelmente ao mesmo tempo razão e fundamento. De onde provém este sentido duplo de RATIO? [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

A palavra latina RATIO não significa originalmente nem razão, nem fundamento, mas outra coisa. Esse outro, não obstante, não é assim tão totalmente diferente, que à palavra RATIO lhe pudesse ficar vedado, falar posteriormente no duplo sentido de «razão» e «fundamento». Para procurarmos para a palavra latina RATIO o contexto clássico do seu dizer, que seja mencionada uma passagem de Cícero. Ela projecta ao mesmo tempo uma luz sobre o âmbito da questão que nós gostaríamos de reflectir. Cícero diz (Part. 110): Causam appello rationem efficiendi, eventum id quod est effectum. Traduzido Conforme ao que é costume, isto significa: «Chamo causa ao fundamento do efectuar, aquilo que é ponto de partida e resultado, que é o efectuado». [144] [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

Que faremos com esta afirmação de Cícero? Parece que ela traz mais sombras e obscuridade sobre a questão do que luz em si. Assim é com efeito e felizmente, logo que afastamos de nós a precipitação cega com que traduzimos as palavras latinas por aquelas que nos são correntes: causa por causa primordial (Ursache), RATIO por fundamento, efficere por efectuar, effectus por efectuado. Estas traduções são absolutamente correctas. Mas a sua correcção é também capciosa; porque através delas nos enredamos historicamente em concepções posteriores, modernas e ainda hoje determinantes. Nós não ouvimos, enquanto assim enredados, nada mais daquilo que é dito na palavra romana e do modo como isso é dito. Se tomarmos isso todavia em consideração, permanece depois mesmo assim questionável, se nós ouvimos longe bastante no passado. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

Causam appello rationem efficiendi, eventum id quod est effectum. Aqui nós encontramos mencionadas RATIO e causa em relação com efficere e eventus. A palavra eventus é talvez a chave para a expressão de Cícero, que soa quase como a constatação de um mestre-escola, sem a marca de um alcance historicamente universal. Contudo ela existe nas palavras mencionadas. Eventus é aquilo a um resultado; efficere é o trazer para fora e trazer para diante. Na esfera do produzir para fora e fazer resultar está-se a falar de RATIO, palavra que nós agora já não podemos mais traduzir por «fundamento» e «razão»; porque com isso obstruiriamos a nós próprios o caminho dentro do percurso do olhar, que doravante é legítimo respeitar. Mas como deveremos então traduzir RATIO efficiendi? RATIO é RATIO para aquilo que é para ser produzido, é a sua causa primordial, causa. A relação com o efficere caracteriza a RATIO como causa. Esta causa pertence à esfera do trazer para diante, caso em que algo é resultado. Em que medida pertence a causa aí? Na medida em que ela tiver o carácter de RATIO. O que significa aqui RATIO? A RATIO está subordinada à esfera do efficere ou é sequer limitada por ele? De forma alguma. O oposto é válido. A esfera de efficere e eventus pertence àquela da RATIO. O que esta palavra nomeia, não o saberemos agora apenas através desta passagem, porque tudo o que Cícero aqui diz, conduz de regresso à RATIO. Não obstante a afirmação de Cícero permanece elucidativa. [145] [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

RATIO pertence ao verbo reor, cujo sentido directriz é: tomar algo por algo; aquilo, pelo qual alguma coisa é tomada, é posto por baixo, suposto. Num tal pôr por baixo, aquilo ao qual alguma coisa é posta por baixo, é aprestado para aquilo que lhe é posto por baixo. Isto: dirigir algo para algo, é o sentido do nosso verbo «contar». Contar com alguma coisa, significa: mantê-la em vista e orientar-se por ela. Fazer conta de alguma coisa, significa: esperá-la, e nesse caso dirigi-la devidamente como tal, para onde se confia. O sentido próprio de «contar» não é necessariamente relacionado com números. Isto é válido também para aquilo que se denomina cálculo. Calculus é a pedra de jogo nos jogos de tabuleiro, e ainda também a pedra de cálculo. Calculação é contar como se de reflectir se tratasse: um é colocado defronte do outro, comparativamente, avaliativamente. Por conseguinte, o contar no sentido do operar com números, é um modo de contar especial, através da essência da quantidade. No contar com e no fazer conta de, aquilo que é assim contado é trazido para diante do representar, isto é, à evidência. Através de um tal contar algo se mostra; eventus e efficere pertencem assim à esfera da RATIO. O sentido próprio e por isso amplo, do verbo «contar», explicado com brevidade, é designado no verbo latino reor. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

RATIO significa conta. Quando nós contamos, representamos aquilo que, com o qual e sobre o qual numa coisa contada, se deve manter em vista. Aquilo assim contado e computado dá a razão daquilo que é consequência de uma coisa, do que está nela como aquilo que dela é determinante. Na razão manifesta-se aquilo, onde reside o motivo de uma coisa ser como ela é. RATIO significa conta; mas conta tem um duplo sentido. Conta significa por um lado o contar como um fazer; e por outro o que resultou de um tal fazer, o contado, a conta apresentada, a razão. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

Nós dizemos: dar uma razão. A língua dos romanos diz: rationem reddere. Na medida em que na conta e razão é dado aquilo, [146] com o qual e sobre o qual se calcula uma coisa ou acção, pertence o reddere necessariamente à RATIO. Que o principium rationis é um principium reddendae rationis, encontra-se na essência da própria RATIO. Como razão ela é em si um reddendum. Este não é proposto e imposto à RATIO de um sítio qualquer. O reddere é na essência a RATIO como conta prefigurada e pré-exigida. O fazer conta de… e contar com… é um apresentar re-flectido (über-legendes). [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA SEGUNDA AULA]

O princípio do fundamento reza: nada é sem fundamento. Nihil est sine ratione. Fundamento é a tradução de RATIO. Uma tradução torna-se numa tradição aí, onde o falar das palavras fundamentais de uma língua histórica traduz para a outra. Uma tradição pode, quando ela entorpece, degenerar em fardo e estorvo. Ela atinge isso, porque a tradição propriamente, no que o seu nome diz, é um transmitir no sentido do liberare, da libertação. Como uma libertação, a tradição revela à luz tesouros ocultos do sido, mesmo se essa luz for apenas também uma hesitante alvorada. Que «fundamento» seja a tradução de RATIO, quer dizer: a RATIO transmitiu-se no fundamento, cuja tradição desde cedo fala num duplo sentido. A tradição de duplo sentido da RATIO como fundamento e razão obtém de facto primeiro o seu carácter aí, onde o destino do ser define aquela época, que segundo a cronologia histórica se chama «moderna». Se, de modo diferente, ser e fundamento «são» o mesmo, então o moderno destino do ser também deverá transformar o antigo sentido duplo romano de RATIO. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Por muito que também o sentido de fundamento, isto é solo e terra, consiga permanecer distante do sentido de razão, isto é perceber, ouvir, no duplo sentido da RATIO ambos os significados estão já prematuramente unidos, se bem que não expressamente ponderados na sua co-pertança. Mais convenientemente deveríamos dizer: naquilo que a RATIO nomeia, estão traçadas ambas as [149] direcções deste duplo sentido, razão e fundamento. Pois o que significa RATIO? Nós respondemos através de uma tradução da palavra RATIO. Ela reza: conta. Mas conta é aqui para ser pensada no sentido do verbo reor, ao qual pertence o substantivo RATIO. Contar significa: dirigir algo para algo, representar algo como algo. Aquilo, como o que algo é respectivamente representado, é o posto por baixo. Este contar pensado com amplitude define também o sentido da palavra cálculo. Fala-se de cálculo matemático. Mas existe também um outro. Hölderlin ainda usa a palavra cálculo nas «anotações» à sua tradução do Rei Édipo, e da Antígona, de Sófocles, num sentido mais profundo. Nas «Anmerkungen zum Oedipus» (Stuttg. Ausgabe V, 196) diz-se: «Também a outras obras de arte falta, se comparadas com as gregas, a confiança; pelo menos elas são avaliadas até agora mais segundo as impressões que elas causam, do que segundo o seu cálculo legítimo e outros métodos do género, através dos quais o belo é apresentado.» E continua: «A lei, o cálculo, o modo, como um sistema de sensibilidade, a totalidade do homem, se desenvolve como sob a influência do elemento, e a representação e a sensibilidade e o raciocínio têm a sua origem em diferentes sucessões, mas sempre segundo uma regra segura, é no trágico mais equilíbrio do que um simples sucessivo suceder.» E as «Anmerkungen zur Antigonä» começam (a. a. O p. 265): «A regra, a lei calculável da Antigona relaciona-se com aquela do Édipo, como / para v, de forma que o equilíbrio pende mais do princípio contra o fim, do que do fim contra o princípio.» Na medida em que ambas as anotações falam de «equilíbrio», também parece aqui o chamado cálculo ser representado de modo quantitativo-mecânico, matemático. Mas o equilíbrio mencionado por Hölderlin pertence à balança e equilíbrio da obra de arte, isto é aqui, à apresentação trágica numa peça de tragédia. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

RATIO é cálculo, conta no sentido amplo, elevado e habitual. Contar como dirigir de algo para algo, apresenta sempre algo e é [150] desse modo em si um dar-se, reddere. À RATIO pertence o reddendum. Mas sempre segundo a conexão histórica do Ser, do qual a RATIO fala mais tarde como razão e fundamento, tem o reddendum um outro significado. Modernamente, isso consiste no momento da incondicionada e corrente reivindicação à entrega dos fundamentos matemática-tecnicamente calculáveis, a «racionalização» total. Na expressão do principium reddendae rationis, Leibniz fala decerto na língua latina, mas ao fazê-lo não fala a partir da língua da antiga Romanidade. Não obstante, aquilo que em romano se chama RATIO, transmitiu-se na concepção daquilo que modernamente «razão» e «fundamento» dizem. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Mas em que medida pôde então a RATIO no antigo sentido bifurcar-se, de modo a falar num sentido duplo, não só como fundamento mas também como razão? Em que medida ela pôde ir até aí, já se deverá ter tornado agora compreensível para os ouvintes atentos. É necessário entretanto ainda uma referência própria a este «em que medida»; porque nós falamos de uma bifurcação da RATIO na RATIO como razão e na RATIO como fundamento. A expressão da bifurcação gostaria de dar a entender que ambas as palavras, «razão» e «fundamento» e o que elas dizem tendem a afastar-se, mas todavia se mantêm no mesmo tronco e raiz, razão pela qual elas também no seu tender a afastar-se ainda e justamente aí se relacionam uma com a outra. A palavra do antigo alto-alemão para o ramo bifurcado, o tronco de árvore bifurcado e a totalidade da árvore deste rebento reza: a bifurcação. Tal bifurcação encontramos nós muitas vezes sob o velho abeto altaneiro da Floresta Negra. Em que medida é a RATIO uma bifurcação? RATIO exprime conta no sentido mais amplo, em conformidade com o qual a propósito de algo, se conta com algo, se faz conta de algo, isto é também dizemos: isso conta, sem que aqui apareçam números. Na conta, algo é posto por baixo, não arbitrariamente e não no sentido de uma suspeita; posto por baixo é aquilo para o qual já é uma causa, que uma coisa assim permaneça, como ela permanece. Aquilo assim posto por baixo, calculado, é como aquilo que é a causa, o existente, transportado, o calculado da conta; a RATIO é por conseguinte a base, o solo, isto é o fundamento. O contar representa no pôr por baixo algo como algo. Esta representação de algo como algo é um trazer-perante-si, que correspondentemente [151] se pro-põe uma existência e num tal pro-pôr percebe como é pedido aquilo de que faz conta de, e com o qual se conta. O contar, a RATIO, é como um tal perceber a razão. RATIO é como conta: fundamento e razão. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Nós tentamos pensar o princípio do fundamento como um dizer do ser. O princípio diz: ser e fundamento: o mesmo. Para reflectirmos sobre o dito, nós perguntamos: O que diz fundamento? A resposta reza: na palavra «fundamento» fala, transmitindo-se, a RATIO, palavra que simultaneamente significa razão. Esclareceu-se em que medida a RATIO é uma bifurcação. A pergunta retrospectiva pelo que diz o princípio do fundamento como dizer do ser, transformou-se e reza agora: em que medida RATIO e ser «são» o mesmo? [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Indicará a palavra bifurcada RATIO, que agora fala representativamente e ao mesmo tempo com um sentido duplo pela palavra «fundamento», de todo uma pertença recíproca, isto é na coincidência com o ser? De imediato nada disso é visto na palavra bifurcada RATIO. Nem uma ponta nem a outra da palavra bifurcada «conta», «razão» ‘, nem «fundamento» nem «razão» nomeiam imediatamente o ser. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

A pergunta na qual nós somos colocados através do princípio do fundamento, reza: em que medida ser e RATIO «são» o mesmo? Em que medida se pertencem reciprocamente fundamento e razão (RATIO) por um lado e ser pelo outro? [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Quando nós perguntamos, em que medida ser e a bifurcada RATIO «serão» o mesmo, isto é se pertencem reciprocamente, então parece que o digno-de-ser-interrogado apenas consiste em que ser de um lado e a RATIO bifurcada do outro lado sejam abrigados na [152] pretendida pertença recíproca. Para um tal projecto manifesta-se então a mencionada pertença recíproca como algo terceiro e como um telhado, uma abóboda, que por assim dizer já se encontra preparada para o abrigo. Afirmar isto, seria contudo errôneo. Pelo contrário a pertença recíproca deverá justamente iluminar a partir daquilo que nela tem o seu alojamento e do que assim também já fala a partir de si: ser fala para nós, ainda que de um modo diferente, como physis, o que-se-abre-a-partir-de-si, como ousia, estar presente, como objectualidade. Do mesmo modo RATIO fala como fundamento mas também como razão. O que é propriamente obscuro e digno-de-ser-interrogado permanece justamente a reciprocidade de pertença. Este pertencer reciprocamente deverá manifestar-se a partir daquilo que a partir de si pertence ao recíproco, admitindo que aqui o recíproco significa mais e diferente do que o soldar um ao outro de dois pedaços de outro modo separados. Ser deve em conformidade pertencer como ser à RATIO e opostamente: a própria bifurcada RATIO fala, se nós cuidadosamente prestarmos suficiente atenção ao seu dizer, da sua pertença ao ser. Mas quando nós reflectimos sobre isso que a RATIO diz, ou seja conta, então nada encontramos aí que pudesse falar de uma pertença ao ser. Como acontece isto de que a palavra RATIO não nos responde quando nós perguntamos, em que medida aquilo nela mencionado contém uma pertença ao ser? Isso provém por um lado, de que nós agora corremos o perigo de tomarmos a palavra RATIO em si e por assim dizer solta do seu dizer, que é continuamente um dizer histórico. Por outro, tacteamos na escuridão no respeitante à pertença da RATIO ao ser, porque nós perdemos com demasiada facilidade o sentido de que também a palavra «ser» sempre fala apenas historicamente. Daqui resulta para nós uma indicação decisiva. A pergunta, em que medida ser e RATIO reciprocamente se pertencem, deixa-se apenas perguntar histórica-ontologicamente e responder somente através de um pensar retrospectivamente no destino do ser. Agora conhecemos no entanto o destino do ser primeiramente apenas na passagem através da história do pensamento ocidental. Este começa com o pensamento dos Gregos. O início do destino do ser encontra a sua correspondência destinada e salvaguarda no pensamento da Helenidade, de Anaximandro até Aristóteles. A pergunta pela [153] pertença recíproca de ser e RATIO perguntamo-la nós histórica-ontologicamente apenas e inicialmente primeiro quando nós pensamos helenicamente a pergunta e o seu perguntado. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

O caminho da nossa pergunta está previamente sinalizado através da audição do princípio do fundamento. Por isso fomos do fundamento de regresso para a RATIO. Mas a RATIO fala latino-romano e não grego, isto não quer dizer portanto, que nós ao ouvirmos essa palavra logo estaremos em condições de perguntar a nossa pergunta inicialmente de acordo com a história do Ser. Ou deveria a palavra romana RATIO afinal imediatamente falar também grego? Assim acontece de facto. Porque «RATIO» é, pelo seu lado, no contexto da história do pensamento uma palavra traduzida e isto quer dizer uma palavra transmitida. Assim como nas palavras fundamentais do pensamento moderno, razão e fundamento, se transmite a palavra bifurcada RATIO, assim fala na palavra romana RATIO uma palavra grega; ela chama-se logos. Consequentemente ouvimos o princípio do fundamento na segunda tonalidade só então histórica-ontologicamente e isto em simultâneo inicialmente, quando dizemos em grego o tema do princípio: tò auto (estin) einai te kai logos: O mesmo (é) einai e logos. Na verdade, não se encontra em lado algum nos pensadores gregos uma frase textualmente como a mencionada. Não obstante, ela nomeia o traço destinadamente do ser do pensamento grego e isto de um modo, que ela pré-interpreta nas épocas posteriores da história do ser. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Em que medida pertence este ser assim pensado reciprocamente ao fundamento e à RATIO? Enquanto nós ainda deixarmos ficar a pergunta sob esta forma, ela permanecerá enredada e recusa qualquer sugestão de resposta. O enredado desenreda-se, quando nós perguntamos: em que medida pertence reciprocamente o grego como «estar presente» ao «ser» pensado com o logos? Expresso de outro modo: em que medida fala naquilo que a palavra logos [154] nomeia, a pertença recíproca ao o ser pensado em grego? Em que medida «são» logos e «estar presente» o mesmo? O que significa logos? [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Para um tratamento cuidadoso desta pergunta decisiva, mas também vasta, já se ganhou muito, se nós não perdermos mais de vista, o que se produziu no caminho do curso. O que é isso? Uma visão bem simples, que nós, porque ela é simples, aceitamos agradados com demasiada facilidade. O que é que ela nos demonstra? Ela permite-nos saber o seguinte: fundamento e razão são a tradução, isto quer dizer agora a tradição histórica da bifurcada RATIO. A RATIO é a tradução, isto quer dizer agora a tradição histórica do logos. Por isto ser assim, não podemos nós pensar logos nem a partir das nossas concepções tardias de «fundamento» e «razão», nem também a partir do sentido do romano RATIO. Como então de outro modo? Resposta: ao modo grego, no sentido do pensar e do dizer gregos. Isto parece ser uma informação banal, mas isto é uma informação que não o é; porque o que significa: pensar e dizer grego? Isso significa: o grego dos agora referidos pensar e dizer é justamente definido através do logos e como logos. Por isso não nos podemos convencer de que seja fácil reflectir sobre a palavra grega logos e o seu dizer grego, e isto quer dizer agora, imparcialmente em relação à nossa concepção habitual. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Mas por muito difícil que a tarefa pareça ser, permanece inevitável a sua realização, pressupondo que nós, entretanto, consideramos necessário ouvir aquilo que o princípio do fundamento diz propriamente, isto é na outra tonalidade. Entretanto ficamos a saber que o princípio do fundamento nos atribui a reivindicação, sob a qual a nossa era se encontra na história universal. O que significa logos pensado em grego? A resposta deverá, inevitavelmente grosseira, surgir aqui. Ela limita-se àquelas referências, que nos auxiliam a pensar histórica-ontologicamente, sobre o que diz o princípio do fundamento na segunda tonalidade: ser e fundamento: o mesmo. O substantivo grego logos pertence ao verbo legein. Isto exprime: reunir, situar um junto ao outro. Aqui pode acontecer, que um seja situado junto ao outro de tal modo que um se dirige para o outro. Um tal dirigir-se é aquele contar, que é representado pelo latim reor e RATIO, motivo pelo qual a palavra romana RATIO é apropriada para traduzir a palavra grega [155] logos para o pensamento romano. Também em grego logos pode significar tanto como conta, dirigir um para o outro, cujo dirigir é aquilo que nós de um modo ainda mais geral denominamos como a relação de algo com algo. logos pode significar o mesmo que a palavra latina relatio: relation, relação. Mas afinal por que razão pode logos significar isto? Porque logos nomeiam algo de mais essencial do que os por nós supracitados, reunir e contar; o verbo legein é uma palavra para «dizer» e logos significa enunciado e dito. Qualquer dicionário fornece informação sobre isso. Aceita-se isso como óbvio que para os gregos «dizer» se chama legein. É inteiramente válido como óbvio, o que ambas as palavras, diferentes textualmente, significam. Entretanto seria altura de perguntar: em que se apoia para os gregos a essência do dizer? [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Quando mais tarde o princípio do fundamento é classificado, então ele não expressa mais nada além desta naturalidade. Mas o princípio mesmo, que por assim dizer sanciona esta naturalidade, apossa-se também dela para si como reivindicação. Assim o princípio do fundamento é válido então como uma lei do pensamento imediatamente intuível. De onde é que isso vem? Isso vem de que ser e fundamento «são» o mesmo, mas a sua pertença recíproca como tal permanece esquecida, isto é entendido em grego: oculta. Mas não é possível pensar isto, enquanto nós entendermos logos a partir da RATIO e da razão. Nesse caso também não distinguimos, [157] em que medida o romano rationem reddere não diz o mesmo que o grego logon didonai. Podemos traduzir correctamente esta expressão grega por: prestar contas, indicar o fundamento; mas aí não se pensa autenticamente grego. Pensado em grego, logon didonai diz: apresentar algo sido no seu modo de estar presente e existir, isto é ao perceber concentrador. Conquanto cada ente através do ser, isto é através do fundamentar, permaneça definido, é o próprio ente sempre fundado e fundamentado e isto por modos diferentes, cuja variedade e origem não poderão ser aqui abordadas. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Ser é como deixar abrir-se concentrador-ocultador aquele primeiro, a partir do qual cada um se abre primeiramente como o correspondente do seu concentrado, tendo a sua origem no desoculto-aberto. Como logos o ser é o primeiro, a partir de onde o ter sido está presente – em grego tò proton othen. «O primeiro a partir de onde» é aquilo, de onde cada um que é, começa, e a partir de onde ele como começado permanece dominado; começar significa em grego archein. O logos desdobra-se em proton othen, isto é em arche, dito em latino-romano em principium. Que todo o pensar, todo o proceder busca conceptualmente por princípios e os observa, resulta da essência do ser como logos e physis. Aqui a pertença recíproca de ser e princípio e RATIO, de ser e fundamento, é fundada como argumento da razão. Só que tudo isto não é de modo algum óbvio, senão um segredo único de um destino singular. [158] [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Ao seguirmos a segunda tonalidade, já não pensamos mais o ser a partir do ente, senão que o pensamos como ser, isto é como fundamento, isto é não como RATIO, não como causa primordial, não como fundamento racional, mas como um deixar existir concentrante. Ser e fundamento não são contudo uma indiferença vazia, mas o conteúdo oculto daquilo que, antes de tudo, se revela no destino do ser como história do pensamento ocidental. Nos primeiros comentários à segunda tonalidade do princípio do fundamento, disse-se: ser e fundamento: o mesmo. Simultaneamente disse-se: ser: o sem-fundo. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Nós mal experimentámos este jogo e ainda não o pensamos na sua essência, isto é naquilo que ele joga e como ele o joga, e como é que o jogar deve aqui ser pensado. Quando nós asseguramos que o jogo aqui referido, no qual o ser como ser repousa, é um jogo elevado e até o jogo supremo e livre de qualquer arbítrio, então com isso diz-se pouco, enquanto este elevado e o seu supremo não é pensado a partir do segredo do jogo. Pensar isto, não é contudo suficiente para o modo de pensar até agora; porque logo que ele busca pensar o jogo, isto é concebê-lo segundo a sua espécie, toma-o como algo, que é. Ao ser de um ente, portanto também ao jogo, pertence então o fundamento. A essência do jogo é por conseguinte definida como dialéctica de liberdade e necessidade por toda a parte no raio de acção do fundamento, da RATIO, da regra, das regras do jogo, do cálculo. Talvez se devesse traduzir mais apropriadamente a frase de Leibniz: Cum Deus calculat fit mundus, por: Enquanto Deus joga, faz-se mundo. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

O caminho de pensamento do curso conduziu-nos a ouvirmos o princípio do fundamento na outra tonalidade. Isso exigiu de nós que perguntássemos: em que medida «são» ser e fundamento o mesmo? A resposta deu-se-nos no caminho de um regresso ao início do destino do ser. O caminho conduziu através da tradição [162] segundo a qual, nas palavras «fundamento» e «razão» fala a RATIO no duplo sentido da conta. Mas na RATIO fala o pensado em grego logos. Mas só quando nós reflectimos sobre o que no pensamento grego primevo logos diz para Heráclito, se tornou claro, que esta palavra nomeia ao mesmo tempo ser e fundamento, ambos a partir da sua pertença recíproca. Aquilo que Heráclito designa por logos diz ele ainda por outros nomes, que são expressões condutoras do seu pensamento: physis, o que se-abre-a-partir-de-si, que simultaneamente está presente como ocultar-se; kosmos, que em grego simultaneamente expressa ordem, injunção e ornamento, que como brilho e esplendor expõe à revelação; por fim Heráclito nomeia aquilo que se lhe atribui como logos como o mesmo de ser e fundamento: aion. A palavra é difícil de traduzir. Diz-se: tempo do mundo. É o mundo, que mundifica e temporiza, quando ele como kosmos (Frg. 30) traz a injunção do ser a um resplandecer exaltante. Nós podemos após o que foi dito nos logos, physis, kosmos ouvir aquele indito, que nós nomeamos destino do ser. [tr. Telles Menezes; GA10: DÉCIMA TERCEIRA AULA]

Leibniz responde à primeira pergunta através de uma observação breve, mas de amplo alcance. O fundamento é um a ser devolvido, quod omnis veritatis reddi RATIO potest (Gerh. Phil. VII, 309), «porque uma verdade sempre é uma verdade, quando o fundamento lhe pode ser devolvido». Verdade é para Leibniz continuamente – e isto permanece decisivo – proposito vera, um princípio verdadeiro, isto é um juízo certo. O juízo é connexio praedicati cum subiecto, conexão do enunciado com aquilo sobre o qual é enunciado. Aquilo que como unidade associadora de sujeito e predicado sustenta a sua conexão, é o solo, o fundamento do juízo. Este dá a legitimação para a associação. O fundamento dá a conta para a verdade do juízo. Conta chama-se em latim RATIO. O fundamento da verdade do juízo é apresentado como a RATIO. De harmonia com isto Leibniz escreve numa carta para Arnauld, [169] «Hanovre le 14 juillet 1686: il faut tousjours qu’il y ait quelque fondement de la connexion des termes d’une proposition, qui se doit trouver dans leur notions. C’est lá mon grand principe, dont je croy que tous les philosophes doivent demeurer d’accord, et dont un des corollaires est cet axiome vulgaire que rien n’arrive sans raison, qu’ont peut tousjours rendre pourquoy la chose est plustost allé ainsi qu’autrement…» Na tradução: «é sempre necessário que haja um fundamento da conexão dos termos de uma proposição, a qual se deverá encontrar nas suas noções. Este é mesmo o meu grande princípio, o qual creio que todos os filósofos deveriam admitir, e do qual um dos corolários é este vulgar axioma de que nada acontece sem um fundamento, que se pode sempre devolver porque é que uma coisa se passou antes deste modo em vez de outro.» (Correspondência entre Leibniz, Arnauld e o Landgrafen Ernst v. Hessen-Rheinfels. Editado por C. L. Grotefend, Hannover 1846, p. 49; sobre isso colatar: Gerhardt, Phil. II, 62.) O magno princípio é o principium reddendae rationis, o princípio fundamental do fundamento a ser devolvido. [tr. Telles Menezes; GA10: CONFERÊNCIA O PRINCÍPIO DO FUNDAMENTO]

Nós levantamos a segunda pergunta: para quê deve ser devolvido, isto é expressamente alegado o fundamento? Porque o fundamento é RATIO, quer dizer, conta. Se ela não for dada, o juízo fica sem legitimação. Falta a correcção legitimada. O juízo não é uma verdade. O juízo é apenas então uma verdade quando é dado o fundamento da conexão, quando a RATIO, isto é a conta é prestada. Uma tal prestação necessita de um lugar onde a conta esteja depositada antes de ela ser prestada. [tr. Telles Menezes; GA10: CONFERÊNCIA O PRINCÍPIO DO FUNDAMENTO]

Leibniz escreve uma vez o seguinte sobre o princípio do fundamento: (principium rationis) quod dicere soleo nihil existere nisi cuius reddi potest RATIO existentiae sufficiens. O principio do fundamento, «que eu costumo enunciar (em a forma): nada existe, a que o fundamento da sua existência não possa ser entregue como o suficiente». O fundamento, que em cada juízo sobre um objecto reclama a sua impreterível entrega, exige simultaneamente, que ele seja suficiente como fundamento, isto é que baste perfeita-mente como conta. Para quê? Para que ele traga inteiramente à permanência um objecto na totalidade do seu estado, isto é segundo qualquer perspectiva para qualquer pessoa. Só a perfeição dos fundamentos a serem entregues, a perfectio, garante que algo esteja segurado para o representar humano como objecto, no sentido literal «veri»-ficado no seu estado. A perfeição da conta afiança primeiramente que cada concepção em qualquer altura e por toda a parte pode contar com e fazer conta do objecto. [tr. Telles Menezes; GA10: CONFERÊNCIA O PRINCÍPIO DO FUNDAMENTO]

Nada é sem fundamento. O princípio diz agora: cada um é válido então e apenas então como ente, quando ele está assegurado como um objecto calculável para o conceber. Em que consiste por conseguinte a magnitude do princípio do fundamento como a do principium magnum, grande et nobilissimum, do principio magno, poderoso, da mais elevada nobreza? Resposta: em que este princípio dispõe sobre aquilo que poderá ser legítimo [171] como objecto do conceber, em geral, como um ente. No princípio do fundamento fala essa reivindicação à disposição sobre o que se chama o ser de um ente. Quando Leibniz pela primeira vez classifica expressamente o princípio do fundamento, então ele exprime com isso, que entretanto o representar humano de um modo decisivo e por consequência inevitável, é assumido na reivindicação do principium rationis e é regido pelo seu poder. O principium rationis, o princípio do fundamento torna-se em princípio fundamental de todo o conceber. Isto significa: o conceber é dominado pelo principium rationis agora afirmado rational, governado pela razão. Porque «RATIO» significa desde há muito tempo não apenas conta no sentido do que justifica uma outra coisa, isto é, fundamenta. RATIO significa simultaneamente conta no sentido de justificar algo legitimamente existente, como correctamente computado e segurado através de uma tal conta. Este contar amplamente entendido é o modo como o homem recolhe, pretende e admite algo, isto é percebe algo em geral. RATIO é o modo do perceber, isto é a razão. O racional, representar rationale segue ao principium rationis. O princípio do fundamento é o supremo princípio fundamental da razão na medida em que através dele a razão primeiramente como razão atinge o pleno desdobramento da sua essência. O princípio do fundamento é o princípio fundamental da concepção racional no sentido do contar salvaguurdador. Fala-se de fundamentos racionais. Pelo facto de Leibniz ter afirmado o pequeno princípio, quase não pensado expressamente: nihil sine ratione, nada sem fundamento, na versão rigorosa e perfeita do poderoso princípio fundamental, terminou, sob um ponto de vista, o período de incubação do princípio do fundamento. Desde essa altura, a reivindicação reinante no princípio fundamental desenvolve um domínio anteriormente não pressentido. Este realiza inteiramente nada menor do que a matriz mais íntima, mas simultaneamente mais oculta da era da história ocidental, que nós denominamos «moderna». O domínio do poderoso princípio fundamental torna-se tanto mais poderoso na história da humanidade, quanto mais universal, mais evidente e por conseguinte mais discretamente o princípio do fundamento define todo o conceber e comportamento. É assim que hoje se passa. [tr. Telles Menezes; GA10: CONFERÊNCIA O PRINCÍPIO DO FUNDAMENTO]

A este digno-de-ser-pensado pertence a simples correlação de coisas, que agora talvez em algumas coisas se moveu para mais próximo de nós. Nós nomeamo-la, quando dizemos: ser é experimentado como fundamento. O fundamento é interpretado como RATIO, como conta. [tr. Telles Menezes; GA10: CONFERÊNCIA O PRINCÍPIO DO FUNDAMENTO]

Por consequência o homem é o animal rationale, o ser vivente, que exige conta e dá conta. O homem é segundo a definição mencionada o ser vivente contador, contar entendido no sentido [183] vasto que a palavra RATIO, uma palavra originalmente da linguagem de negócios romana, assume já em Cícero na altura em que o pensamento grego é transposto para a concepção romana. [tr. Telles Menezes; GA10: CONFERÊNCIA O PRINCÍPIO DO FUNDAMENTO]

Ser é experimentado como o fundamento. O fundamento é interpretado como RATIO, como conta. O homem é o ser vivente contador. Tudo isto é válido nas mais variadas conjugações e no entanto de modo unânime através de toda a história do pensamento ocidental. Este pensamento como europeu-moderno, trouxe o mundo para a sua actualidade, a Era Atômica. Face a esta simples, e simultaneamente para a Europa, desenraizada correlação de coisas, nós perguntamos: A definição mencionada exaure que o homem seja o animal rationale, a essência do homem? Reza o último dito, que pode ser dito do ser: ser significa fundamento? Ou não permanece a essência do homem, não permanece a sua pertença ao ser, não permanece a essência do ser ainda sempre e sempre mais perplexamente o digno-de-ser-pensado? Podemos nós, se assim devesse ser colocado, abandonar este digno-de-ser-pensado em favor da correria louca do exclusivo pensamento calculador e dos seus enormes sucessos? Ou estamos prestes a determo-nos para encontrarmos caminhos, nos quais o pensamento consiga corresponder ao digno-de-ser-pensado, em vez de enfeitiçados pelo pensamento calculador pensarmos superficialmente no digno-de-ser-pensado? Esta é a questão. É a questão mundial do pensamento. Na sua resposta decide-se o que será da Terra e da existência do homem sobre esta Terra. [tr. Telles Menezes; GA10: CONFERÊNCIA O PRINCÍPIO DO FUNDAMENTO]