Assim também não pode pois surpreender-nos o seguinte: em todos os lugares onde o representar humano procede não apenas de modo entendido mas também reflectidamente, também com o tempo se lhe torna expressamente claro que ele segue, o que só mais tarde é enunciado expressamente pelo estabelecido fixado princípio do fundamento. Isto – que o homem passa e fica em consequência do princípio do fundamento – ocorre lentamente ao homem. I
O enunciado afirmativo: «Cada ente tem o seu fundamento» soa como um apuramento. Ele observa que cada ente é provido de um fundamento. Um apuramento pode, em consequência, ser examinado para se saber se é exacto e qual o alcance da sua exactidão. Poderemos nós agora verificar se cada ente tem um fundamento? Para realizarmos esta verificação, teríamos de trazer perante nós, cada ente que em qualquer altura e em qualquer lugar é, foi e será, para então examinarmos até que ponto ele tem um fundamento para si, em si. Uma tal verificação não é consentida ao homem. I
Apenas casualmente é mencionado em primeiro lugar, que na moderna Física Atômica se prepara uma mutação da relação com os objectos, a qual no caminho através da técnica moderna altera por completo o modo de representar do homem. I
O que significa «estimar qualquer coisa digna», no sentido da relação primordial grega do homem com aquilo que é? Estimar digno significa: revelar qualquer coisa na consideração em que ela permanece, e aí conservá-la. II
O axioma mostra aquilo que permanece na mais alta estima e que com efeito não permanece aí, em consequência de uma avaliação que parta do homem e seja por ele atribuída. II
Este pensamento axiomático já se encontra, sem que nós reparemos nisso e vejamos transparentemente o seu, a modificar o pensamento do homem de tal forma que ele possa adaptar-se à essência da técnica moderna. III
Quem ponderar sobre este procedimento, reconhecerá no mesmo instante que o discurso muitas vezes escutado da mestria da técnica pelo homem tem origem num modo de representação, que apenas ainda se movimenta nas áreas periféricas daquilo que agora é. III
A superfície, permanece igualmente o apuramento de que o homem actual se tornou um escravo das máquinas e dos aparelhos. III
Porque uma coisa é a verificação disso; uma outra bem diferente será reflectir até que ponto o homem desta época não está apenas submetido à técnica, mas até que ponto é que ele deve corresponder à essência da técnica, até que ponto nessa correspondência se anunciam possibilidades primordiais de uma existência (Dasein) livre do homem. III
Isto quer dizer: o fundamento é aquilo que deve ser entregue ao homem pensante, conceptualizante. III
O reddendum, a reivindicação à entrega do fundamento, deslocou-se agora para se pôr entre o homem pensante e o seu mundo, para se apossar do representar humano de uma nova maneira. III
O homem determina uma época da sua existência histórico-espiritual a partir do afluxo e da disponibilização (Beistellung) de uma energia natural. IV
A existência do homem – formada pelo átomo. IV
A Era Atômica é caracterizada como época planetária da Humanidade pelo facto do poder do princípio magno, do principium reddendae rationis, se desenvolver de um modo expatriado na área determinante da existência do homem, se não mesmo a desencadeia. IV
É para que pensemos literal e objectivamente que o singular desencadeamento da reivindicação à entrega (Zustellung) do fundamento ameaça tudo o que é pátrio (Heimische) do homem e lhe rouba qualquer fundamento e solo para um enraizamento, isto é, para aquilo a partir do qual até agora cresceu cada uma das grandes Eras da Humanidade, cada espírito aberto para o mundo, cada formação da figura humana. IV
Assim evidencia-se uma situação extremamente estranha do homem moderno, uma tal que vai contra todas opiniões habituais das representações quotidianas, na qual nós vagueamos como cegos e surdos: a reivindicação do princípio magno do fundamento a ser entregue retira ao homem contemporâneo o enraizamento. IV
Também podemos dizer: quanto mais decisivamente for forjada a corrida para a sujeição das enormes energias, através da qual a necessidade energética do homem sobre a Terra deverá ser coberta para todos os tempos, tanto mais escassa será a riqueza do homem, na área do essencial para construir e para habitar. IV
Assim o fez, uma vez, numa carta para Paccius, de 28 de Janeiro de 1695: «Naqueles místicos há algumas passagens, que são extraordinariamente audaciosas, cheias de metáforas difíceis e quase propendentes ao ateísmo, tal como eu observei a mesma coisa algumas vezes nos poemas alemães – de resto belos – de um certo homem, que se chama Johannes Angelus Silesius…» E Hegel diz, nas suas «Vorlesungen über die Aesthetik», o seguinte: «A unidade panteísta agora sublinhada por relação ao sujeito, que se sente nessa unidade com Deus, e Deus como esse presente na consciência subjectiva, é dada completamente pela Mística, como ela de este modo mais subjectivo também chegou a formação no interior do Cristianismo. V
Os fundamentos, que como destinação de-terminam (be-stimmen) essencialmente o homem, têm origem na essência do fundamento. V
Em contraste com a rosa, o homem vive muitas vezes assim, que ele cobiça como fazer efeito no seu mundo, e o que este dele pensa e exige. V
Sem dúvida que estaríamos a pensar sucinto demais, se pretendéssemos afirmar que o sentido do aforismo de Angelus Silesius, se abre apenas para nomear a diferença dos modos, pelos quais a rosa e o homem, são o que são. V
O indito do aforismo – e tudo gira em torno disto – diz pelo contrário que o homem mais oculto da sua essência, só é primeiramente verdadeiro quando ele ao seu modo, é assim como a rosa – sem porquê. V
Certamente que o homem é em primeiro lugar um tal ser vivo, que no seu representar pode apresentar perante si um fundamento enquanto fundamento. ( VI
O homem é, segundo uma definição tradicional, o animal rationale. VI
Por isso o homem vive na relação representante com a ratio, como o fundamento. VI
Ou deveríamos afirmar ao contrário: como o homem se encontra na relação conceptual com a razão, eis porque ele é um animal rationale? Ou mesmo esta inversão é insuficiente? Em qualquer caso o homem vive com a possibilidade, de representar o fundamento como fundamento. VI
Por essa razão, se o ouvido se torna insensível, isto é, surdo, então pode ser que, como o caso de Beethoven demonstra, um homem ouça apesar disso, talvez até ainda ouça mais e mais grandiosamente do que antes. VI
Goethe refere-se na introdução ao seu «Farbenlehre» (Teoria das Cores) àquele pensamento grego e consequentemente eu gostaria de expressá-lo em rimas alemãs: «Se a vista não fosse solar, / Como poderíamos ter a luz em vista? / Se não vivesse em nós de Deus a própria força, / Como nos poderia o divino debitar?» Parece que até hoje ainda não reflectimos o suficiente sobre em que é que consiste a solaridade da vista e onde é que a própria força de Deus se baseia em nós; em que medida é que ambos se relacionam e dão a indicação de um ser do homem pensado mais profundamente, o qual é o ser pensante. VI
Este ouvido não está relacionado somente com o órgão auditivo, mas também simultaneamente com a pertença do homem àquilo sobre o que o seu ser está afinado. VII
O homem permanece afinado por aquilo de onde o seu ser é con-finado. VII
Na con-finação o homem é atingido e chamado por uma voz, que quanto mais pura soa, tanto mais silenciosa ela ressoa através do dito. VII
A reivindicação potenciante (machtet) pela forma expatriada como energias naturais e o modo da sua preparação e aproveitamento determinam a existência histórica (geschichtliche Dasein) do homem sobre a terra. VII
Que ocorre agora com o caminho do pensamento, que está a caminho para a physis? O caminho para lá recebe o seu próprio carácter do modo como o ser do ente é manifesto para o homem reconhecedor. VIII
Isto quer dizer: a reivindicação do ser instala primeiramente o homem na sua essência. IX
Que significa aqui «é imputável a nós, humanos», se a essência do homem se apoia em que ela seja reivindicada pelo ser? Que para nós o ente respectivo seja o mais manifesto e o ser o menos manifesto, isso pode apenas radicar na essência do ser, não em nos, «em nós» no sentido em que nós, por assim dizer, nos puséssemos, por nós, no vazio e na ausência de referências. IX
Por conseguinte não é um qualquer atributo do homem concebido antropologicamente, que causa que o ser seja menos manifesto para nós do que o respectivo ente. IX
O homem é o animal rationale. IX
Segundo Kant, apenas se pode no relativo à razão (ratio), definir-se algo naquilo que isso é, e como isso é um ente para o ser vivo «homem». IX
O ser remete-se ao homem, ao instalar, luminescente, um espaço de jogo temporal para o ente como tal. X
Quando Kant, obedecendo ao motivo condutor do seu pensamento, reflecte sobre as condições da possibilidade a priori para a natureza e a liberdade, então este pensamento é como representação racional a entrega do fundamento suficiente para aquilo que ao homem pode ou não aparecer como ente, para o modo, como o aparecido pode aparecer e como não. X
De tempos a tempos até parece como se esta fuga da história devesse remover as últimas barreiras, que ainda se opõem a uma completa e desenfreada tecnificação geral do mundo e do homem. X
No que está perante desvenda-se o contra no que sobrevém ao homem percepcionador, espectador-ouvinte, o que sobrevém ao homem, a ele, que nunca se concebeu como sujeito para objectos. X
Contra isso parecem estar as palavras de Hegel, que ele pronunciou a 22 de Outubro de 1818 na abertura do seu curso, na Universidade de Berlim: «A coragem da verdade, a fé no poder do espírito são a primeira condição do estudo filosófico; o homem deve honrar-se a si próprio e considerar-se na mais elevada dignidade. XI
Na linguagem ainda desajeitada e provisória do ensaio «Sein und Zeit», de 1927, diz-se isto: o traço fundamental da existência (Dasein), que o homem é, é definido através da sua compreensão do ser. XI
Compreensão do ser não significa nunca aqui, que o homem possua como sujeito uma representação subjectiva do ser e que este, o ser, seja uma simples representação. XI
Compreensão do ser exprime que o homem segundo a sua essência está naquilo aberto do projecto do ser e que este compreender assim significado está pendente. XI
Através da compreensão do ser assim experimentado e pensado, a concepção do homem como um sujeito, para falarmos com Hegel, é posta de lado. XI
Apenas na medida em que o homem segundo a sua essência se encontrar numa clareira do ser, será ele um ser pensante. XI
A história do pensamento é o envio da essência do homem a partir do destino do ser. XI
A essência do homem é enviada com o destinado (Schicklichen) ao trazer à discussão o ente no seu ser. XI
No fundo, o afirmado mesmo agora, não é outra coisa senão a interpretação da antiga definição da essência do homem antes meditada na pergunta pelo ser: homo est animal rationale; o homem é o ser vivo dotado de razão. XI
Apenas na medida em que o homem é dotado (be-gabt), a partir do destino com o destinado, para pensar o ente enquanto tal, é o destinado como história do pensamento. XI
Através da entrega do fundamento suficiente recebe esta representação aquela singularidade, que define a relação moderna do homem com o mundo, e isto quer dizer que possibilita a técnica moderna. XI
Hoje qualquer pessoa utiliza, mencionando de passagem e para uma reflexão, na nossa língua comum a palavra «problema», assim por exemplo, quando o mecânico de automóveis, um homem honrado, que limpa as velas de ignição sujas e observa «Isto não é qualquer problema». XI
Este modo habitual da nossa relação com o «ser» pertence necessariamente ao modo como o homem imediatamente e quase sempre, mantendo-se dentro do ente, corresponde ao destino do ser. XI
Na medida em que o destino do ser toma a essência pensante do homem histórico na reivindicação destinável, apoia-se a história do pensamento no destino do ser. XII
O destino do ser permanece em si a história essencial do homem ocidental, na medida em que o homem histórico é necessário no habitar edificante da clareira do ser. XII
Como retirada destinável, o ser é já em si relação com a essência do homem. XII
Através desta relação o ser não é contudo humanizado, senão que a essência do homem permanece através desta relação domiciliado na localidade do ser. XII
Nós dizemos «antes» com ponderação, porque também assim não está afastada a suspeita, de que o ser se desdobra como algo separado do homem. XII
Por que razão não? Porque o ser, ao remeter-se, produz o campo livre do espaço de jogo temporal e com isso o homem primeiramente num campo livre liberta as suas respectivas possibilidades essenciais remetidas. XII
Pensado a partir da essência da língua, isto quer dizer: a língua fala, não o homem. XII
O homem fala apenas ao corresponder destinadamente à língua. XII
Mas este corresponder é o modo próprio, segundo o qual o homem pertence à clareira do ser. XII
Uma tal interpretação da essência do homem e com isso daquilo que ele recebe no reddendum oferecido, teria sido estranha à Romanidade, apesar de já não ser tão decisivamente estranha como seria para o pensamento grego. XII
É necessário apenas um olhar de boa vontade para a nossa Era Atômica para ver que, se de acordo com as palavras de Nietzsche, Deus está morto, o mundo calculado ainda permanece e põe o homem por toda a parte na sua conta, ao lançar tudo em conta no principium rationis. XII
E continua: «A lei, o cálculo, o modo, como um sistema de sensibilidade, a totalidade do homem, se desenvolve como sob a influência do elemento, e a representação e a sensibilidade e o raciocínio têm a sua origem em diferentes sucessões, mas sempre segundo uma regra segura, é no trágico mais equilíbrio do que um simples sucessivo suceder». XIII
Assim se remete pois o ser na retirada ao homem por um modo, através do qual ele oculta a origem da sua essência por trás do espesso véu do fundamento entendido racionalmente e das causas primordiais e suas configurações. XIII
Apenas na medida em que o homem é trazido para este jogo e aí colocado em jogo, conseguirá ele verdadeiramente jogar e permanecer em jogo. XIII
A maior, criança régia pela suavidade do seu jogo, é aquele segredo do jogo, no qual o homem e o seu tempo de vida trazido, é posto na sua essência. XIII
Nós colocamos a terceira pergunta a respeito da ratio reddenda: para onde deve ser devolvido o fundamento? Resposta: de volta para o homem, que ao modo da concepção judicativa define os objectos como objectos. Conferência
Mas representar é: repraesentare – fazer algo presente ao homem. Conferência
Mas ora desde Descartes, a quem Leibniz e com ele o conjunto do pensamento moderno segue, o homem é experimentado como o eu que se relaciona com o mundo, que entrega este a si próprio em conexões de representação correctas, isto é juízos e assim se opõe como objecto. Conferência
O fundamento é apenas um tal fundamento como a ratio, quer dizer como a conta que é prestada sobre algo perante o homem como o eu judicativo e para este. Conferência
Este contar amplamente entendido é o modo como o homem recolhe, pretende e admite algo, isto é percebe algo em geral. Conferência
Ainda mais: o homem de hoje corre o perigo de apenas poder medir a importância de tudo o que é grande à escala do domínio do principium rationis. Conferência
Que existe nisso de especial? Pela primeira vez na sua História o homem interpreta uma época da sua existência histórica a partir do afluxo e preparação de uma energia da Natureza. Conferência
A existência do homem matrizada pela energia atômica! Se a energia atômica é utilizada pacificamente ou é mobilizada belicamente, se uma se apoia na outra e a desafia, estas permanecem perguntas de importância secundária. Conferência
Goethe bem pressentia como o infatigável da pesquisa, no caso de ela tão só e cegamente seguir o seu arrebatamento, extenua o homem e a terra na sua essência mais íntima. Conferência
Information exprime por um lado a comunicação, que informa o homem contemporâneo o mais rápido, o mais abrangente, o mais inequívoco, o mais produtivo possível sobre a salvaguarda das suas carências, das suas necessidades e da sua satisfação. Conferência
A informação é como comunicação também logo o instituir, que coloca ao homem todos os objectos e existências numa forma que é suficiente, para salvaguardar o domínio do homem sobre a totalidade da Terra e até sobre aquilo exterior a este planeta. Conferência
Nós perguntámos, para introduzir um pensamento reflectido, se o homem moderno e actual ouvirá a reivindicação que fala a partir do poderoso princípio fundamental de toda a concepção. Conferência
O homem actual escuta permanentemente o princípio fundamental do fundamento, ao tornar-se crescentemente um servo do princípio. Conferência
Pois durante o invulgarmente longo período de incubação do princípio do fundamento, sempre ao homem ocidental se aconselha o dito do ser como o fundamento. Conferência
Por consequência o homem é o animal rationale, o ser vivente, que exige conta e dá conta. Conferência
O homem é segundo a definição mencionada o ser vivente contador, contar entendido no sentido vasto que a palavra ratio, uma palavra originalmente da linguagem de negócios romana, assume já em Cícero na altura em que o pensamento grego é transposto para a concepção romana. Conferência
O homem é o ser vivente contador. Conferência
Face a esta simples, e simultaneamente para a Europa, desenraizada correlação de coisas, nós perguntamos: A definição mencionada exaure que o homem seja o animal rationale, a essência do homem? Reza o último dito, que pode ser dito do ser: ser significa fundamento? Ou não permanece a essência do homem, não permanece a sua pertença ao ser, não permanece a essência do ser ainda sempre e sempre mais perplexamente o digno-de-ser-pensado? Podemos nós, se assim devesse ser colocado, abandonar este digno-de-ser-pensado em favor da correria louca do exclusivo pensamento calculador e dos seus enormes sucessos? Ou estamos prestes a determo-nos para encontrarmos caminhos, nos quais o pensamento consiga corresponder ao digno-de-ser-pensado, em vez de enfeitiçados pelo pensamento calculador pensarmos superficialmente no digno-de-ser-pensado? Esta é a questão. Conferência