Fink (1994b:190-194) – o fenômeno

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O fenômeno não é, antes de mais, um conceito de gênero ou de espécie que definiria um domínio de coisas, uma região determinada do ser. Não há fenômenos como há matéria inerte e seres vivos. Além disso, não há fenômenos isolados nem vários fenômenos agrupados, estando as aparições singulares e os grupos de aparições sempre incluídos numa conexão mais abrangente de aparições. Surge a paisagem e, sobre ela, o vasto céu, com o trajeto do sol e das estrelas, a claridade do dia que tudo articula e a escuridão da noite que tudo envolve — na claridade do dia sobre a terra e sob o céu, as coisas numerosas e imprevisíveis, os sólidos, conservando as suas formas, os fluidos, como a água corrente e a chuva, e as coisas aéreas, como o nevoeiro das cidades ou os ventos marítimos. Aparecem as rochas e as areias, as árvores e os arbustos, os animais de vários tipos e, no meio da aparência geral de todas as coisas, aparece o homem, que se conhece a si próprio, faz experiências de todos os tipos, negocia no reino aberto da aparência com as coisas que aparecem, percebe-as, recebe-as, modifica-as e transforma-as, impregna-as de um significado inventado e feito pelo homem, objetiva nelas a sua força informadora e vê-se modificado pelas suas obras. A conexão vasta, aberta e global de todas as coisas e dados que aparecem, de todos os modos, propriedades e processos que se mostram, permanece rodeada por um horizonte que já não exibe nem entrega nada determinado — que se perde no infinito indeterminado. A esfera em que as muitas e variadas coisas e acontecimentos aparecem, se apresentam uns aos outros e ao ser humano que vê e atua, é, apesar da sua imensa amplitude, apenas como uma ilha no oceano do que está oculto (Verborgen). Nem tudo o que é vem a aparecer — em tudo o que aparece há lados e momentos que não se oferecem, não se mostram. O que está escondido desliza para o que aparece de diferentes maneiras. Cada coisa e cada dado tem “lados” que não se apresentam, que se retiram, que não se colocam na presença geral. O campo da aparição não está de modo algum rodeado por uma fronteira firme e definitiva que estaria equidistante de um centro; está estruturado de forma variada de acordo com a proximidade e a distância, cada vez de acordo com o ponto a que se refere.

Aqui encontramos grandes dificuldades para um descrição adequada, exata; pois estamos demasiado habituados a um esquema de descrição que parte do Eu de quem descreve e dá os “fenômenos” como o que é vivido, percebido, experimentado por este Eu, que apreende a aparência como o mundo circundante orientado da experiência vivida que se oferece ao Eu de múltiplas formas. É precisamente na fenomenologia de Husserl que se reencontram sempre análises deste tipo: o Eu refletor parte das múltiplas modalidades em que os objetos, (192) as coisas e os processos lhe aparecem — partindo, por exemplo, do modo de dação da percepção, em que uma coisa concreta se mostra como presente em carne e osso. A própria percepção é ex-plicitada (auseinandergelegt) numa pluralidade de fases parciais em que é sempre outra coisa da mesma coisa concreta que se mostra. O modelo orientador para isto é uma coisa corpórea sólida e persistente no meu campo de percepção, à volta da qual me posso mover enquanto percebo. Os resultados clássicos de uma tal análise são bem conhecidos: a coisa aparece numa pluralidade de dados laterais, é esboçada em muitos aspectos — não faz sentido esperar uma apresentação total (Präsentation) da coisa corpórea, ela só pode, “de acordo com a sua essência” (wesensmässig), mostrar-se de tal forma que na apresentação (Darbietung) de um lado os outros se retiram. Tomado em rigor, o auto-dado de tais coisas corpóreas é sempre apenas parcial e refere-se, para ser completo, a um movimento circular em torno da coisa. Husserl insiste neste estado de coisas com grande firmeza. E, no entanto, esta análise fenomenológica não nos permite nem compreender o modo de dados do solo terrestre sobre o qual me movo em torno das coisas corpóreas tal como as percebo, nem o modo de dados do ar, da luz, da água, ou das coisas sólidas mas transparentes.

Mas um tal ponto de partida é ainda mais problemático, na medida em que parte cada vez do Eu e do que é cada vez o mundo circundante e aparente centrado à sua volta, reivindicando ao mesmo tempo um sentido paradigmático. Não é o meu Eu que é dado em primeiro lugar e um perímetro de coisas que aparecem para ele, o “meu” Eu é sempre meu e está aberto para o teu, o nosso e o teu Eu. O outro homem (Mitmensch) é pelo menos tão original como a coisa corpórea. As coisas concretas que aparecem não aparecem apenas a mim, aparecem-nos a nós, mesmo que isso aconteça em relatividades diferentes. Participamos em maior ou menor grau no aparecimento do mundo circundante, podemos trocar entre nós o lugar onde nos encontramos, trocar as nossas perspectivas — o fato é que os lugares onde nos encontramos estão sempre no meio do aparecimento — nós (193) aparecemos nós próprios, para nós próprios e para os outros. A coisa concreta é concebida de forma demasiado estreita quando os fenômenos são, por assim dizer, postos de lado, do lado do objeto, e depois subordinados a um sujeito. Os sujeitos, como centros de experiência, não são menos do que as coisas e os acontecimentos que experimentam. Os sistemas subjetivos múltiplos pertencem ao campo do aparecer, no qual as coisas nos são dadas tanto quanto as próprias coisas. A pluralidade dos eus precede sempre o meu eu.

Kessler

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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