escolha da escolha

A análise que agora se inicia envolve a noção de “atestação” (Bezeugung), que designa uma possibilidade que não vem do exterior para o Dasein, mas que está enraizada no seu próprio ser. “O que se procura é um autêntico poder-ser do Dasein, que é atestado pelo próprio Dasein na sua possibilidade existencial” (SZ 267). Ao dizer que a atestação tem a sua raiz no próprio ser do Dasein estamos simplesmente a dar um primeiro passo para justificar esta noção, uma vez que todos os existenciais têm — por definição — a sua raiz no Dasein!

As coisas começam a se tornar mais claras se tivermos em consideração o objeto próprio da atestação, que “deve dar uma compreensão de um autêntico ser-aí” (SZ 267). É aqui que reencontramos o “eu” e a pergunta “Quem?” que tínhamos perdido de vista depois dos § 25-27, nos quais tínhamos descoberto um primeiro esboço da hermenêutica heideggeriana do eu. Contrariamente ao que poderíamos ter suposto na altura, a última palavra desta “hermenêutica do eu” ainda não foi dita. Só agora é que Heidegger faz alguns esclarecimentos essenciais.

Em que sentido? Num estado de quotidianidade, o Dasein está “perdido no impessoal (das Man)”. Ele submete-se a inúmeras regras de comportamento, critérios de ação, tarefas que lhe são ditadas pela vida quotidiana. Não se pode dizer que ele as tenha escolhido; são coisas “que têm de ser feitas”. Mas invocar este “é preciso” também pode servir de álibi. Esconde o fato de que, se quiséssemos, poderíamos ter organizado a nossa vida de outra forma. Mas — para citar apenas um exemplo — é precisamente isso que o “workaholic” não quer fazer. Qualquer mudança de atitude existencial é dispendiosa, porque isto que deu como lei do impessoal tem de se tornar objeto de uma escolha que nunca teve lugar, uma escolha na primeira pessoa, a escolha do Eu: “Recuperar uma escolha (Nachholen der Wahl) significa escolher esta escolha, decidir-se por um poder-ser (Seinkönnen) retirado do Si mais próprio. É na escolha da escolha (Wählen der Wahl) que o Dasein torna pela primeira vez possível o seu autêntico poder-ser (eigentliches Seinkönnen)” (SZ 268).

Em que condição é que esta estranha estrutura reduplicativa (“escolha da escolha”) se torna pensável? Quem diz ao Dasein: “Controla-te a ti mesmo”? O sujeito em causa protesta: “Prova-me que isto é possível! E tem razão em reagir desta forma. Mas a prova exigida só pode assumir a forma de um atestado. Não é por razões retóricas que exprimimos a situação sob a forma de um diálogo dirigido ao Dasein. Na realidade, este diálogo não tem nada de fictício; pelo contrário, constitui uma dimensão essencial da auto-interpretação do Dasein. De fato, é muito simplesmente o fenômeno da “voz da consciência” (Stimme des Gewissens) que se faz ouvir desta forma. É esta voz da consciência que é o locus de atestação procurado. Longe de qualquer descrição psicológica, interpretação teológica, explicação científica ou consideração moral, Heidegger propõe submeter este fenômeno a uma análise ontológica que reconheça nele um “fenômeno originário do Dasein” (SZ 268), ou seja, um existencial.

Isto equivale a discernir um modo específico de compreensão que possui o seu próprio poder de revelação. Este deve estar ligado ao fenômeno da abertura (Erschlossenheit) do Dasein, com as suas modalidades características de afeto, compreensão, discurso e decadência (SZ 269). Em particular, o conceito existencial de “discurso” (Rede) deve ser remobilizado aqui. O que foi dito no § 34 sobre a relação fala/escuta encontra uma verificação exemplar na análise do apelo da consciência. Com efeito, temos aqui o caso singular em que o chamador e o ouvinte são o mesmo, na medida em que “o chamamento da consciência tem o carácter de ad-vocação do Dasein (Anruf) para o seu mais próprio ser-aí, e isto segundo a roupagem da con-vocação (Aufruf) para o seu mais próprio ser-em-dívida” (SZ 269). Desde logo, somos confrontados com três noções centrais que exigem uma elucidação fenomenológica pormenorizada: “ad-vocação”, “con-vocação” e aquela que é, sem dúvida, a noção mais enigmática, a de “ser-em-dívida” (Schuldigsein). (JGOT)

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress