Casanova (2014) – o sido

(Casanova2014)

[…] O sentido do termo história, porém, não se confunde em Heidegger com a análise metodologicamente fundada dos eventos do passado em seus traços estruturais específicos. Uma verdadeira confrontação histórica não se atém ao passado como aquilo que se encontra distante do presente e do futuro, mas se liga incessantemente àquela dimensão do passado que continua decisiva para o presente e que encerra em si as possibilidades do futuro. Para descrever esse passado peculiar, Heidegger valeu-se dos termos alemães das Gewesene e die Gewesenheit. Traduzidos ao pé da letra, esses termos significam “o sido” e o “caráter de ter sido”. Eles se formam a partir do particípio passado do verbo ser e não são senão substantivações desse particípio. Porquanto o particípio passado do verbo ser em alemão (gewesen) possui uma ligação de fundo com o termo essência (Wesen),1 traduzimos normalmente das Gewesene e die Gewesenheit por “aquilo que foi essencialmente” e o “ter sido essencial”. Uma mera lembrança da relação entre a abertura do mundo e a determinação do ser do ente na totalidade, contudo, é suficiente para que comecemos a perceber o que está realmente em questão com esses termos. O “que foi” não designa nesse contexto alguma coisa em particular entre tantas outras que ocorreram no passado, mas nos remete muito mais ao próprio acontecimento do ser. É esse acontecimento que não decai simplesmente em um passado alienado do presente e inócuo em relação ao futuro, mas que continua sempre vigente no instante e que atrai para si todo o porvir. Desse modo, uma confrontação histórica se revela como uma confrontação no instante com o que foi essencialmente a partir da abertura do ser do ente na totalidade em nome daqueles que estão por vir e que podem se mostrar como a voz de uma nova abertura. A questão é que a confrontação com o que foi essencialmente depende de uma intelecção do projeto que veio aí à tona de maneira inicial. […]

Dentre as três dimensões da temporalidade “acontecencial” do ser (o ter sido essencial, o instante da decisão e o porvir incessantemente coimplicado), Heidegger confere manifestamente um primado para aquilo que foi essencialmente, para as aberturas anteriores do ser do ente na totalidade. O que está em questão com esse primado não é, contudo, uma espécie de nostalgia da origem, um olhar mareado em face da perda da plenitude do passado. Ao contrário, o que fala nesse primado é, antes, a percepção de que o modo como o ser historicamente se abre delimita as possibilidades de constituição de novos campos de manifestação do ente na totalidade. Expresso no contexto da ideia de confrontação: o acontecimento de um projeto de mundo histórico específico e da abertura do ser do ente na totalidade que lhe é pertinente sempre exerce um poder de articulação sobre os acontecimentos congêneres que estão por vir. A razão de ser de tal posição também não repousa sobre um hegelianismo escamoteado, sobre a suposição da história como o âmbito de essencialização e de desenvolvimento de uma subjetividade absoluta que se mostra desde o princípio como o princípio de estruturação dessa história. O primado do ter sido essencial implica aqui muito mais a experiência de que todo começo instaura originariamente o seu campo de jogo próprio e tende a se movimentar nesse seu campo de jogo até o seu esgotamento. Desse modo, é evidentemente o conceito grego de arché que se mostra nesse contexto como determinante. A arché descreve justamente um princípio que não se apresenta apenas em um momento inicial, mas que perpassa incessantemente a dinâmica daquilo de que ele é princípio. O primado do ter sido essencial aponta, em outras palavras, para o acento no poder histórico intrínseco a todo verdadeiro começo, para a força de futuração de todo despontar inicial de certa tradição. Portanto, uma confrontação histórica com um determinado pensador sempre exige necessariamente uma visualização do projeto histórico no qual ele se acha inserido. E isso é tanto mais pertinente porquanto os pensadores desempenham para Heidegger justamente o papel daqueles que dão voz à abertura do ser do ente na totalidade e que têm por tarefa primordial a colocação da questão sobre a verdade não de um setor particular da totalidade ou de um conjunto de regiões ônticas específicas, mas sobre a verdade do ser do ente na totalidade.

 

 

  1. Em verdade, a essência designa em alemão a reunião daquilo que é.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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