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Marx está tão atento ao que faz que a vida é a vida, ao fato que ela se sente e se experiencia, que tudo o que se encontra desprovido desta propriedade extraordinária lhe parece, pelo contrário, privado de sentido, até mesmo como impossibilidade. E tanto amou Marx tudo o que é vivente, quanto rejeitou em um plano inferior tudo o que, privado da capacidade de sentir, sofrer, desfrutar e amar, não é senão a morte. Veremos que toda a sua análise econômica será construída sobre essa oposição decisiva. Isso não é de forma alguma um julgamento de valor, alguma visão romântica vaga ou imprecisa, mas a designação mais rigorosa de um dos fatores que entram em qualquer processo real de produção e fazem dele o que é isso. No entanto, esse julgamento é precisamente o fundamento da economia e de todos os fenômenos econômicos em geral. Divide-se entre trabalho vivente, por um lado, e, por outro, os elementos materiais que são os instrumentos de produção e as matérias-primas. Enquanto o primeiro é precisamente designado pela vida, o segundo, como materiais, sempre será afetado por um coeficiente de inércia insuperável que os torna eternamente incapazes de desempenhar um papel ativo no processo de produção, para constituir estritamente falando esta aqui. E isso não é por efeito de algum preconceito, mais uma vez, mas porque só o trabalho vivente é capaz de “produzir” realidade econômica, valor, enquanto os elementos materiais são incapazes de fazê-lo: eles poderiam ser eliminados de um tal processo onde, de qualquer forma, eles não têm de modo algum poder valorizante, e a valorização prossegue apesar de sua ausência. Porque a vida vive sem a morte e se basta a ela mesma. Voltaremos a este ponto decisivo.
Vamos sublinhar, por enquanto, as duas características da vida que acabamos de conhecer: antes de tudo, sua subjetividade, um conceito que não visa nada além do fato de se sentir si mesma, ou seja, precisamente a vida. Toda vida é subjetiva, começa e termina com a subjetividade, a ponto de não ser outra coisa senão ela. Naturalmente, “subjetivo” não deve ser entendido aqui no sentido trivial, como se “tudo é subjetivo” significasse “tudo é relativo”, tudo depende da maneira de ver de cada um: “cada um é sua verdade”. Longe de designar o modo de pensar variável de um indivíduo, seu ponto de vista particular sobre as coisas, a subjetividade constitui a realidade mais essencial deste indivíduo, sua condição metafísica ou ontológica, seu ser, enquanto este ser é justamente a vida.
A segunda característica da vida é que é uma força, uma força produtiva, quer dizer capaz de criar algo que não existiria sem ela. Até onde vai essa capacidade criativa da vida, é isso que veremos aos poucos. Digamos por um momento que a vida tem antes de tudo a capacidade de modificar a natureza que a cerca e, arrancando alguns de seus elementos e impondo-lhes uma forma específica, dá à luz objetos que nascem graças a ela. Esses objetos são de dois tipos: alguns são usados para esse fim e foram moldados por ela para esse fim: são alimentos, roupas, edifícios destinados à habitação, culto etc. — são chamados “valores de uso”; os outros são instrumentos que servem para produzir o primeiro, mas que são produzidos de maneira idêntica — eles também se enquadram na categoria de “valores de uso”. Considerando a vida como uma força, em seu poder produtivo, Marx a chamou de “práxis” em 1845 e imediatamente a qualificou como subjetiva. Ele critica o materialismo por ter compreendido a realidade “apenas na forma de objeto ou de intuição, mas não como uma atividade humana concreta, não como uma prática, de maneira subjetiva”
Encontramos então um terceiro caráter da vida que seria suficiente para opor esta às concepções românticas que contaminavam o marxismo muito mais do que o pensamento do próprio Marx. Isso porque, para este último, a vida não é uma entidade universal suscetível de se realizar e de subsistir como tal, enquanto realidade geral. Toda vida, pelo contrário, é individual e é realizada apenas dessa maneira, sob a forma de um indivíduo vivente. Eis porque esta atualização da vida, nisto que é cada vez que um indivíduo obedece à lei de uma reiteração indefinida, dando nascimento a inúmeros indivíduos 1. É também por isso que raramente encontramos o termo “vida” usado isoladamente nos textos de Marx, mas ao invés aquele de “indivíduos viventes” — indivíduos que, precisamente porque são o único modo possível de realização da vida, serão reconhecidos como o único fundamento de toda a realidade. É sob esse termo de “indivíduos viventes”, de “indivíduos reais” que eles são designados na Ideologia alemã como “o pressuposto de toda a história”2; de sorte que, reciprocamente, a história não pode ser senão a destes indivíduos, feita e vivida por eles, mesmo se ela escape à vontade deles – sim ela deles escapou pelo menos desde o início até que o socialismo tenta de alguma forma lhes devolver de alguma maneira e de sujeitá-la enfim à liberdade deles.
Na análise econômica que constitui a parte principal do trabalho de Marx após 1847, o termo indivíduo vivente dá lugar ao de trabalhador cujo sentido, estritamente idêntico, só pode ser entendido a partir da vida. A característica distintiva do trabalhador é o trabalho vivente, é a própria vida na forma tripla necessariamente subjetiva, ativa e individual de sua realização. Assim que esquecemos que a essência do trabalhador é a vida no sentido metafísico do que é de outra ordem além da coisa material e é provida, por outro lado, da capacidade ela mesma metafísica de criar isto que ainda não é, desde que consideremos positivamente o indivíduo como um ser empírico, assim como ele advém no marxismo e em todo o cientificismo em geral, não podemos mais entender uma palavra da análise econômica de Marx. E é preciso dizer que o marxismo, que é historicamente uma forma de positivismo e cientificismo, não entendeu nada.
A designação da vida sob o título de “indivíduo vivente” é para Marx algo tão óbvio que ele não se importou muito em justificá-la. Dado que os indivíduos delimitam, como viventes, o fundamento da economia, é importante mostrar, nem que seja brevemente, porque a vida reveste com efeito a forma de uma existência cada vez individual: porque o experienciar que ela faz dela mesma, reduzida à sua pura subjetividade, é necessariamente esta ou aquela, esta experiência singular vivendo e se experienciando si mesma, incluindo nela este Si irredutível a todo outro e que justamente faz dela um indivíduo, no sentido de um indivíduo que é um Si – um Si transcendental, sentindo e então se sentindo si mesmo, constantemente afetado por si e por nada de outro, e que não é ele mesmo nada de outro: nenhuma alteridade, nenhuma objetividade que se possa ver ou tocar, mas, ao contrário, o que vê e toca, o que toma e o que age — nenhum indivíduo empírico, assim como o concebe o marxismo. É apenas um indivíduo entendido desta maneira, vivendo, agindo e se movendo, que pode deter esse poder de criação e produção que constitui o fundamento da economia no sentido de Marx.
Certamente devemos nos precaver de autonomizar este indivíduo vivente, de entendê-lo como um princípio absoluto. Princípio, certamente o é no que diz respeito a tudo o que produz e, em particular, a todos os valores, como seu criador. E é precisamente assim, como criador dos “valores de uso” e, como veremos, dos valores de troca, bens de consumação considerados sob o duplo aspecto de sua realidade material e econômica, que ele é de pronto aquele da ordem econômica por inteira. Mas este indivíduo que cria a economia não se criou ele mesmo, não se propôs ele mesmo no ser. Isto que o caracteriza, pelo contrário, é uma passividade radical em relação ao seu ser próprio, que ele suporta então em um suportar mais forte que todo poder, todo querer e toda liberdade. É precisamente essa passividade radical do indivíduo a respeito dele mesmo que faz dele um vivente. Pois a vida consiste em se experienciar si mesma de tal maneira que este experienciar é insuperável, que ninguém tem o poder dele escapar, de se livrar da vida, de colocá-la ou de mantê-la à distância de qualquer maneira que seja. É enquanto vivente, porque, radicalmente passiva a respeito de si, a vida não pode romper o vínculo que a atém a ela mesma, que o indivíduo é colocado na situação que é a sua, aquela de não ser criado mas de se encontrar ele mesmo, de ser sempre de alguma forma já aí para ele mesmo, como se seu próprio ser o precedesse de uma certa maneira, como se ele fosse secundário não sem dúvida vis-à-vis disto que ele quer cada vez, mas a respeito do transbordar primitivo e ininterrupto da vida nele. Ser um vivente, é ser isso: é nascer da vida, ser levado, engendrado por ela, de sorte que este nascimento e este engendramento não cessem, que o indivíduo não seja outra coisa senão a prova deste engendramento interior ininterrupto que fusiona através dele sem que ele o desejasse e com o qual, no entanto, ele se co-fusiona.
Original
(MH1990)
- Em suas críticas à monarquia, Marx nega a Hegel o direito de incluir a soberania em um indivíduo em detrimento de todos os outros, insistindo constantemente nessa pluralidade indefinida de indivíduos viventes; cf. Karl Marx, Philosophical Works, op. cit .. Crítica da filosofia do Estado de Hegel, IV, em particular, p. 61: “O indivíduo tem a verdade apenas enquanto houver muitos indivíduos”.[
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- “O primeiro pressuposto de toda a história dos homens, é naturalmente a existência de indivíduos humanos viventes”. E ainda: “As pressuposições pelas quais começamos, são os indivíduos reais”. A Ideologia Alemã, op. cit., Costes, VI, p. 154-158; Edições sociais, p. 45-51.[
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- Thèses sur Feuerbach, in L’Idéologie allemande ; Marx, Œuvres philosophiques, Costes, Paris, 1937, VI, p. 141; Éditions Sociales, Paris, 1968, p. 31.[
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- Ces expressions interviennent de façon récurrente, notamment dans les Grundrisse et Le Capital.[
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- Dans sa critique de la monarchie Marx refuse à Hegel le droit d’inclure la souveraineté dans un individu au détriment de tous les autres, insistant sans cesse sur cette pluralité indéfinie des individus vivants; cf. Karl Marx, Œuvres philosophiques, op. cit., Critique de la philosophie de l’État de Hegel, IV, notamment, p. 61 : «L’individu n’a de vérité qu’en tant qu’il est beaucoup d’individus. »[
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- « La première présupposition de toute histoire des hommes, c’est naturellement l’existence d’individus humains vivants. » Et encore : « Les présuppositions par quoi nous commençons, ce sont les individus réels. » L’Idéologie allemande, op. cit., Costes, VI, p. 154-158; Éditions Sociales, p. 45-51.[
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