FRAGMENTO 123 (de Heráclito): φύσις κρύπτεσϑαι (φιλεῖ)
«Α φύσις (physis) gosta de se esconder». É esta (deixando a palavra φύσις em suspenso) a tradução usualmente proposta do fragmento 123. Heidegger não recusa tanto os termos desta formulação quanto a interpretação que lhe está subjacente. As diferentes traduções que ele próprio propõe ao longo da sua obra são apenas tentativas sempre renovadas para dizer o que já dizia a tradução habitual, mas para o dizer de tal maneira que seja entendido diferentemente, isto é para que se torne impossível qualquer má interpretação.
Eis as principais traduções propostas por Heidegger:
— GA40:87: Sein (aufgehendes Erscheinen) neigt in sich zum Sichverbergen.
— GA9:370: Das Sichverbergen gehört zu Vor-liebe des Seins.
— GA7:263 e GA55:110: Das Aufgehen (aus dem Sichverbergen) dem Sichverbergen schenkt’s die Gunst.
— GA10:113: Sein liebt (ein) Sichverbergen.
A interpretação mais corrente consiste, com efeito, em entender a φύσις como «Natureza» (Natur), e esta, por sua vez, como a «natureza» das coisas, a sua essência (Wesen) ou o seu ser (Sein). Ο κρύπτεσϑαι é então muito naturalmente entendido no sentido de uma dissimulação, e a afirmação de Heráclito torna-se-nos familiar: que a essência das coisas se esconda ou se encubra, isso quer dizer que não é facilmente acessível, que não se dá imediatamente aos homens, e que lhes são precisos grandes esforços para, como diz ironicamente Heidegger, «a tirar para fora do seu esconderijo» (GA9:370).
Contrassenso que, pelo fato de ser difundido não é menos evidente, responde Heidegger, e isto por duas razões. Em primeiro lugar, Heráclito não diz em parte alguma que a φύσις se encobre aos olhos dos homens, que é de acesso difícil para percepção ou para a inteligência humana: diz, mais simplesmente (e de modo mais desconcertante), que ela «gosta» (philia) de se esconder, que tende para a ocultação (Verberung), fora de toda a referência a um eventual olhar (Cf. GA55:140). Em segundo lugar, e sobretudo, não se encontra nenhum traço, no pensamento grego inicial, da ideia de uma «natureza» das coisas, compreendida como a sua essência (essentia, οὐσία) — tendo esta ideia aparecido «nunca antes de Platão» (GA7:262; GA55:121). É pois completamente impossível que a interpretação que acaba de ser apresentada tenha pertencido ao domínio de representação de Heráclito.
Mas o abandono desta leitura familiar faz imediatamente aparecer a frase no seu aspecto desconcertante e paradoxal. Por um lado, dá uma definição da φύσις que está em perfeita contradição com a definição implicitamente proposta pelo fragmento 16: a Aufgehen era aí definida como «o que nunca entra numa ocultação», ao passo que aqui é dito que ela «ama» a ocultação. Por outro lado, e sobretudo, se dermos como adquirida a determinação da φύσις precedentemente admitida (para a qual nos convida o uso mais corrente da palavra grega), é então o fragmento 123 que se torna contraditório em relação a si mesmo.
Contradição, de fato, esta proximidade entre φύσις e κρύπτεσϑαι: «Porque se a φύσις enquanto Aufgehen se afasta de alguma coisa, ou mesmo se se volta contra qualquer coisa, é de fato contra ο κρύπτεσϑαι, o esconder-se (Sichverbergen)» (GA7:262). Vemos isto ainda mais claramente se nos recordarmos da definição negativa da φύσις, pela meditação do δῦνον (dynon). Se φύσις é nunca soçobrar (das niemals Unterhegen), no sentido de uma oposição à ocultação, κρύπτεσϑαι em compensação, é entrar na ocultação: o κρύπτεσϑαι é justamente o que a φύσις se define como não sendo, a saber, um δῦνον (dynon), um «soçobrar» (Unterhegen). Os dois termos contradizem-se radicalmente.
Todavia, há um meio de escapar à contradição e de resolver o paradoxo: é estabelecer entre φύσις e κρύπτεσϑαι uma relação de sucessão temporal. A φύσις seria de fato uma emergência, mas «de tempos a tempos e para variar», teria uma certa «predileção» para se inverter no seu próprio contrário, e para se tornar um «esconder-se» (GA7:262). Tal como a flor desaparece no fruto, tal como o dia dá lugar à noite (exemplos apresentados em GA55:117-118), a Aufgehen transformar-se-ia por vezes em Sichverbergen, de modo que reinaria «ora uma, ora outra».
Uma vez mais, eis-nos confrontados com uma metodologia «errada» : a frase só é lida e compreendida através do prisma deformante constituído pelas representações familiares, e pedidas de empréstimo ao ente. Ora, o texto não diz de modo algum que «qualquer coisa» que desabrocha pode «também» conhecer o declínio: estabelece por intermédio de φιλεῖ, uma relação entre φύσις e κρύπτεσϑαι. Se a φύσις se inclina por si para a ocultação, é que a Aufgehen é já em si mesma uma Untergehen, que manifesta a sua essência como Sichverbergen. A contradição é assim mantida mais firmemente que nunca, e não parece de todo em vias de resolução.
No entanto, trata-se realmente de a resolver? Tantos esforços para anular ou apagar a contradição têm evidentemente por fonte a preocupação de «salvar» Heráclito, demonstrando que este não infringe de modo nenhum a lógica. Mas tem Heráclito necessidade de ser salvo? Como diz Heidegger numa fórmula capital, «o “lógico” pode bem conformar-se com a norma do pensamento, não pode nunca ser elevado à instância do verdadeiro» (GA7:115). Produto duplamente derivado — ela não é mais do que um aborto (Missgeburt) da metafísica, que é ela própria um aborto do pensamento essencial (GA7:113-114) — a lógica não poderia servir de lei para o pensamento matinal, nem de chave para o compreender. Trata-se portanto, aqui como noutros locais, de suspender as nossas representações habituais, e de inverter o sentido do nosso esforço: não tentar mais (resistindo ao texto) apagar a contradição, mas, uma vez que esta nos é dita num fragmento de Heráclito, tentar pelo contrário (resistindo às nossas próprias tendências) apagarmo-nos diante dela. Só então estaremos em condições de descobrir isto: no que pensámos ser apenas um pecado contra a lógica, dá-se a verdade da φύσις. (MZHPO:52-54)