Que devemos fazer quando a questão tem um caráter histórico? Que significa aqui «histórico» 1? Em primeiro lugar, afirmamos somente que a resposta provisória à questão acerca da coisa 2 provém de um tempo anterior, já passado. Podemos afirmar que, desde esse tempo, o tratamento da questão sofreu várias alterações, embora nenhuma fosse decisiva e que diversas teorias acerca da coisa, acerca da proposição 3 e acerca da verdade 4 sobre a coisa, surgiram no decurso dos séculos. Por isso, pode mostrar-se que a questão e a resposta, tal como se diz, têm a sua história, quer dizer, o seu passado 5. Mas não é exatamente nisto que pensamos quando dizemos que a questão «que é uma coisa?» é histórica. Porque qualquer referência 6 ao passado, bem como aos níveis elementares da questão acerca da coisa, tratam de outra coisa, que permanece na imobilidade; esta forma de referência histórica é, expressamente, uma suspensão da história [Stillegung der [?Geschichte]] — ao passo que esta é, sempre, um acontecer 7. Perguntamos historicamente quando perguntamos pelo que ainda acontece, mesmo quando tal dá a aparência de já ter passado. Perguntamos pelo que ainda acontece se permanecemos à altura desse acontecer, de modo que, primeiro, ele se possa manifestar.
Por conseguinte, não pomos em questão opiniões, pontos de vista e proposições [Meinungen
und Ansichten und Sätzen] anteriormente estabelecidas acerca da coisa, para os enumerar uns atrás dos outros, século após século, como se fossem lanças numa coleção de armas de guerra. Não perguntamos, em geral, pela fórmula, ou pela definição da essência da coisa [Wesen des Dinges]. Tais fórmulas são apenas o apoio e o sedimento de posições fundamentais que um estar-aí histórico [geschichtliche Dasein], no meio da totalidade do Ente [Seienden im Ganzen], tomou em relação a este e absorveu em si mesmo. Ao invés, questionamos acerca destas posições fundamentais [Grundstellungen], acerca do que acontece nelas e dos movimentos-de-fundo [Grundbewegungen] que acontecem ao estar-aí, movimentos [Bewegungen] que, segundo parece, não existem mais, porque já passaram. Mas, mesmo quando um movimento não se pode constatar, isso não significa que já tenha acabado, um movimento pode encontrar-se, também, numa situação de repouso [Zustand der Ruhe].
O que nos aparece como passado, quer dizer, simplesmente, como acontecimento que já não existe, pode ser repouso. E este repouso pode possuir uma plenitude de ser e de efetividade [Fülle des Seins und der [?Wirklichkeit]] que, finalmente, ultrapassa, de forma essencial, a efetividade do efetivo [Wirklichkeit des Wirklichen], no sentido de atual [Sinne des Aktuellen].
Este repouso do acontecer não é ausência de história, mas uma forma fundamental da sua presença [Diese Ruhe des Geschehens ist nicht [?Abwesenheit] der Geschichte, sondern eine Grundform ihrer [?Anwesenheit]]. O que conhecemos mediatamente e representamos, em primeiro lugar, como passado é, acima de tudo, o que já uma vez foi «atual» 8, o que, nessa altura, causou sensação ou provocou ruído, o que pertence sempre à história, mas não é autêntica história. O meramente passado não esgota o acontecido. Este acontecido exerce ainda o seu domínio (west) e o seu modo-de-ser 9 que, por sua vez, se determina a partir do que acontece, é um peculiar repouso do acontecer. O repouso é apenas um movimento que se detém em si mesmo e que é, muitas vezes, mais inquietante do que este.
[Martin Heidegger. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Lisboa: Edições 70]