Com o propósito de determinar a posição real de Descartes na história da filosofia ocidental, no tocante às questões fundamentais, e ao fazê-lo, realçar o predomínio decisivo da ideia matemática do método 1, afirmo o seguinte:
1. a radicalidade da dúvida 2 de Descartes e o vigor 3 da nova fundamentação 4 da filosofia e do saber em geral é uma aparência 5 e, assim, fonte de ilusões fatais, hoje, muito difíceis de serem eliminadas;
2. este pretenso novo princípio 6 da filosofia moderna, com Descartes, não apenas não consiste, como é, sobretudo, o início de mais uma decadência da filosofia [Verfalls der Philosophie]. Descartes não leva a filosofia de volta para si mesma, para seu fundo e seu chão [Grund und Boden], mas a distancia mais ainda do questionamento da questão fundamental.
α) A dúvida metódica como caminho do indubitável [Unbezweifelbaren]. O mais simples e o mais evidente é o fundamento [Das Einfachste und Einsichtigste als Fundamentum]
Trata-se de provar essas afirmações no seu contexto. Tal proposta é, ao mesmo tempo, a primeira estocada num ataque geral, que visa a Hegel. Antes, porém, deve-se sondar a posição de Descartes com mais nitidez e, sobretudo, ver uma coisa à medida que sua atitude de duvidar e o intuito de dar nova fundamentação correspondem inteiramente à sua ideia diretriz de método.
Muitas vezes chama-se a dúvida cartesiana de “dúvida metódica”. Com isso, entende-se o seguinte: a dúvida não deve ser meta e fim em si mesma, duvidar por duvidar. Pratica-se a dúvida, visando a algo indubitável. A dúvida serve apenas de caminho para a certeza.
Todavia, a dúvida de Descartes é “metódica” ainda num outro sentido, mais profundo e totalmente diferente. A saber, à medida que a dúvida se dá e acontece no sentido e a serviço do que Descartes entende simplesmente por método, isto é, do “matemático”, acima caracterizado. Isso significa: subordinando o filosofar a um pensamento-guia [Leitgedanken], tal método decide, de antemão, o caráter que deve ter e satisfazer, o que há de se considerar como solo seguro para todo saber. Deve ser algo superlativamente simples, simplicissima propositio, e, com isso, algo absolutamente evidente (intuitus).
[HEIDEGGER, Martin. Ser e Verdade. 1. A questão fundamental da filosofia. 2. Da essência da verdade. Tr. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Petrópolis, 2007, p. 53-54]