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GA27:§29.12 – Filosofar como transcender faz parte da essência do ser-aí humano

quarta-feira 1º de fevereiro de 2023, por Cardoso de Castro

12. Transcender é filosofar, quer aconteça de maneira implicitamente velada, quer seja tomado expressamente.

Mostramos que a essência do teórico reside no deixar-ser o ente nele mesmo e denominamos esse deixar-ser uma ação originária do ser-aí. Agora fica claro com que riqueza o deixar-ser acontece no projeto ontológico, no transcender. Esse é, porém, o acontecimento fundamental da própria existência. Anteriormente denominamos esse deixar-ser o ente indiferença metafísica, uma serenidade peculiar na qual o ente ganha voz nele mesmo. Contudo, essa serenidade precisa emergir de um agir originário; ela não é nada além disso. Agir, no entanto, é ser livre. Para que a obrigatoriedade propriamente dita seja possível, a obrigatoriedade que parte do ente em si manifesto e exige uma objetividade específica, é preciso que um projeto ontológico (um transcender), isto é, uma ação livre, aconteça. Somente onde há liberdade são possíveis a vinculação e a necessidade. Assim, o transcender expresso é uma ação originária da liberdade do ser-aí, sim, o acontecer do espaço de liberdade do próprio ser-aí, o que significa, todavia, o existir no fundamento e a partir do fundamento do ser-aí.

Como pergunta acerca do ser como tal, porém, o transcender expresso é o filosofar. Dessa forma, fica claro o que apenas afirmávamos em nosso primeiro encontro no início do semestre: o ser-aí humano como tal filosofa; existir significa filosofar. O ser-aí filosofa porque transcende. No transcender reside compreensão de ser. Todavia, como já ouvimos, a compreensão de ser pertence ao ser-aí; e, com efeito, na maioria das vezes, ela pertence ao ser-aí de um tal modo que, embora este efetivamente compreenda o ser, não obstante, não o concebe. O ser-aí não poderia existir como o que é e segundo o modo como é se ele, no fundo de sua essência, já não tivesse desde sempre desencoberto e compreendido algo assim como o ser.

No entanto, a essência e o cerne do homem residem desde a Antiguidade no que chamamos "alma". Por isso, Platão diz (Fedro 249e 4-6): [Todo ser-aí já vislumbrou no fundo de sua essência o ente, isto é, o que perfaz junto ao ente o ser, ou ele não poderia ter chegado a esse ser-aí fático] [1] (sem essa visão do ser).

Contudo, não é outra coisa senão esse fato originário do ser-aí que é problematizado no transcender expresso, isto é, no filosofar. Com isso mostra-se o seguinte: a filosofia não precisa de início absolutamente imaginar e ir buscar para si muito longe um objeto qualquer; o próprio ser-aí em sua essência - enquanto transcendente - traz em si a pergunta possível pelo ser e pelo sentido do ser. Também aqui Platão viu o essencial: [O filósofo dedica-se por inteiro à visualização constante do ente (como ente - o ser), na medida em que, por meio da discussão, leva à conceituação do ente. Mantém-se na claridade da compreensão de ser e, porque se detém em um tal lugar claro, é difícil de ser visto. Pois os olhos da alma da multidão, sua compreensão, não estão em condições de suportar a visão direta do divino que se encontra para além do ente.] (Sofista 2 54a 8-bl) [2].

Deduzimos daí que filosofar pertence à essência do ser-aí humano, mas que, porém, a multidão não consegue se livrar das amarras daquilo que precisamente está em voga, daquilo sobre o que se fala e precisa ter visto. O filosofar não é senão o privilégio daqueles que estão prontos para compreender que o essencial repousa metafisicamente na simplicidade e no caráter originário do próprio ser-aí e que ele espera por libertação.

Aristóteles, com seu modo sóbrio, mas em nada menos profundo, enunciou a mesma ideia de Platão de que o filósofo aei proskeimenos te tou ontos idea   (Met. Z 1, 1028 b2 s.): [E assim aquilo que é buscado há muito tempo, que se busca agora e se continuará buscando em todos os tempos futuros, e aquilo em relação ao que a busca e o questionamento sempre fracassam uma vez mais não é outra coisa senão a pergunta acerca do que é o ser.] [3]

Aqui vem à tona a importante intelecção de que essa pergunta acerca do que é o ser sempre conduz uma vez mais a situações das quais não parece haver nenhuma saída. Em outras palavras: a pergunta fundamental do filosofar, "o que é o ser mesmo?", é a pergunta que sempre se disporá a ser e necessariamente continuará a ser pergunta. Na maioria das vezes, temos uma ideia errada da filosofia grega, de Platão e Aristóteles em particular, como se eles tivessem criado sistemas perfeitos e fechados que foram legados aos tempos futuros como conteúdos doutrinais dogmáticos. Não se encontra, contudo, nada que pudesse indicar terem eles suposto que teriam resolvido de uma vez por todas o essencial para as gerações vindouras. O que empresta a grandeza interior a Platão e Aristóteles é essa livre entrega das mesmas tarefas fundamentais aos que vêm depois, uma entrega que é superior a si própria.

(Hoje, quando a pseudofilosofia e a metafísica são proclamadas em todas as esquinas, é mais importante do que nunca deixar as questões fundamentais do filosofar se tornarem questões, ou seja, formular uma vez mais a pergunta acerca do ser como tal. Precisamos compreender agora que justamente a formulação dessa questão já é o próprio filosofar.)

Transcender expressamente enquanto filosofar é um reiterado perguntar sobre o ser do ente; inquirir o ser como tal significa buscar concebê-lo. O filosofar pergunta sobre o conceito daquilo que já compreendemos. A partir daí torna-se visível que justamente o filosofar está cercado pelas insinuações de sua mais tenaz opositora, pelas insinuações da suposta auto-evidência das coisas.

Filosofar significa buscar conceber o ser como tal, formar a compreensão de ser em sua possibilidade interna e trazê-la para o seu fundamento, conformar uma compreensão, compreender enquanto projetar, realizar expressamente o projeto; e isso significa: determinar esse projeto mesmo em sua possibilidade interna, de modo que ele se torne realizável como um projetar conceptivo, como a formação da compreensão de ser pré-ontológica para a compreensão de ser ontológica, de uma tal maneira que a partir dessa compreensão ontológica aquela compreensão pré-ontológica seja iluminada pela primeira vez.

Filosofar significa buscar conceber o ser como tal e fundamentar de maneira principiai a ontologia como problema. No entanto, não dizemos simplesmente: filosofia é ontologia; e, antes de tudo, não o dizemos no sentido de assumirmos um conceito qualquer de ontologia, que tenhamos herdado e queiramos persuasivamente impingir à essência da filosofia. A sentença "filosofia é ontologia" no máximo significa: a filosofia é em sua essência um problema que brota daquilo que constitui a essência fundamental da existência do ser-aí; a sentença "a filosofia é ontológica" significa então: se conseguirmos compreender isto, então necessariamente iremos deixar que a tendência interior e plena da essência do filosofar seja desencoberta a partir daí, primária e unicamente a partir daí.


Ver online : Einleitung in die Philosophie [GA27]


[1Platonis Opera (ed. Burnet), Tomus 1.

[2ldem.

[3Aristotelis Metaphysica. Recognovit W. Christ, Lipsiae in aedibus, B. G. Teubneri, 1886.