Zarader (2000:221-223) – pensamento e linguagem

No caso do pensamento, a situação inverte-se. De facto, Heidegger parte bem, num primeiro tempo, do pensamento (visto metafisicamente como lógico) ao logos inicial; e desvia-se de facto, num segundo tempo (nem que fosse apresentado como provisório) da meditação do logos para se deixar conduzir no sítio original do (221) pensamento através do Gedanc alemão. Mas a relação entre aquilo que é dito no Gedanc e aquilo que está reservado no logos permanece indecidido: Heidegger não afirma em parte nenhuma que o apanhar da essência original exigiría o ultrapassar da palavra grega, um salto aquém daquilo que ela nomeia. Tem mais tendência a apresentar toda a meditação do Gedanc como um desvio que permite ir ter com o impensável do logos (é pelo menos aquilo que toda a última aula Was heisst Denken deixaria pensar?1). Mas, se noutro sentido Heidegger cumpre um desvio deste tipo, se lhe concede tanta amplitude (e não se pode negar que o recurso ao alemão esteja aqui especialmente em grande peso e patente) é talvez porque era incontornável. Essa inflexibilidade que não está enunciada em lado nenhum, mas que pode ser legitimamente deduzida dos reais trajectos utilizados por Heidegger. E, se o desvio através do vocábulo alemão é incontornável — se Heidegger não pudesse poupar, tendo em conta aquilo que pretendia soltar é porque a palavra logos não dizia o suficiente2.

A questão do pensamento apresenta então uma estrutura comparável com a da verdade, apesar dos acentos estarem deslocados: se, no caso da verdade, o ultrapassar grego estivesse explicitamente sublinhado enquanto o recurso ao alemão permanecería discreto, no caso do pensamento, o ultrapassar grego não é afirmado, enquanto o recurso ao alemão torna-se prevalente. A língua alemã é então tratada, como se fosse depositária da última palavra (da palavra origem), mesmo se não é assim apresentada; inversamente, a língua grega já não funciona de facto enquanto via real que conduz ao estender da origem, mesmo se esse estatuto lhe está formalmente conservado.

Mesma estrutura, e mesma hesitação na questão da linguagem. Heidegger parte da língua apanhada metafisicamente como conjunto de significados, até o logos originário então recolha. Porém, a linguagem tal como é nomeada na palavra grega, só aparece ainda «à luz do ser»3. Originalidade decisiva, com certeza, face à marca metafísica — onde já só será agarrada na sua relação com o sendo —, a originalidade, não última. Entre o «impensável» abrigado na palavra grega e «aquilo que está para pensar» no que diz respeito à essência da linguagem, resta cumprir um passo: o passo que leva de uma proximidade (da linguagem ao ser) a uma identidade (do ser e da linguagem). (222)

De facto, no vocábulo grego, a palavra é de facto reenviada ao reino do próprio ser: assim é o impensável, ou seja aquilo que se abrigava na língua grega, e permanecia em espera mais longe e durante mais tempo: a saber, que o próprio ser tem de ser reenviado ao reino da palavra4, e que neste reenvio só reside na essência última da linguagem. Ora em alemão — e já não em grego — que um reenvio deste tipo pode ser finalmente chamado em claro. O logos é apenas a abertura de um caminho que conduz, no fim aquilo que Heidegger designa de Die Sage. A Sage é a essência última da linguagem, o desenvolver finalmente pronunciado do seu «mais alto reino»5, onde ocorre o ensino supremo: o ser só surge através da palavra6. E esta essência que Heidegger esforça-se de deixar ressoar, como a partir de si própria, ficando à escuta dos poemas de George ou de Trakl, muito especialmente o último verso do poema de George, precisamente chamado: Das Wort.

Vimos que a própria palavra grega encontra-se ultrapassável — mesmo se o for, como sempre, num sentido aberto por ela. A essência original só é finalmente dita no vocábulo die Sage, que aparece como sendo o sítio onde a linguagem se nomeia em claro. Em relação à Sage compreendida desta forma, o próprio logos é apenas, tal como o diz admiravelmente Heidegger, «o apelido de qualquer linguagem»7.

Assim, confirma-se uma notável constância da estrutura. Estrutura na forma de clivagem entre a «metafísica» e o «original», e compreendendo uma parte de indecisão no que diz respeito ao sítio onde a essência dita original pode ser reenviada. Nesta indecisão joga-se o difícil problema da relação grego/alemão. Se as primeiras palavras gregas (e daí, a própria língua grega) são primeiro consideradas como depositárias, de pleno direito do número da origem, são depois, ou reconhecidas como já sendo derivadas e desta forma, reenviadas aos lados da metafísica (no caso da verdade) ou seja, formalmente mantidas no seu pensamento). Mas a essência original sendo procurada e em última instância nomeada, cada vez mais (embora não metafisicamente) através do desvio do alemão, um caminho deste tipo permite pensar que só pode ser atingida «para além daquilo que é grego». E que a língua alemã está de facto investida, no fim da obra, de um «suplemento de originalidade»8 face ao próprio grego.

  1. GA8:WhD, II, 11, p. 149 (Qu’appelle-t-on…, 225-226).[]
  2. Conclusão que é também a de Derrida. Cf., De l’Esprit, op. cit., p. 114.[]
  3. Cf. GA7:VuA, p. 221 (EC, 277): «Uma vez no início do pensamento ocidental, a essência da linguagem rompeu como um raio, à luz do ser (…). Mas o raio apaga-se subitamente. Ninguém agarra o seu raio, nem a proximidade daquilo que esclarecia.»[]
  4. Para esse duplo movimento, cf. Heidegger et les Paroles de I’origine, op. cit., pp. 177-178.[]
  5. GA12:UzSp, pp. 163, 232 (Acheminemmt…, 147, 218).[]
  6. Cf ibid., p. 193 (178), onde Heidegger após ter afirmado «Teríamos então de procurar a palavra no “es, das gibt”, a palavra como o próprio dado, reconhece mais longe: Desse “es gibt”, o próprio ser ainda precisa para enquanto presença chegar ao seu.»[]
  7. GA55, p. 384. Cf, também, pp. 215-216 (202), pp. 226-227 (212-213).[]
  8. J. Derrida, De l’Esprit, op. cit., p. 141.[]