(…) o ser não é presença constante, menos ainda sendo supremo; o ser propriamente falando não «é»; não é um sendo.
O que é então? O primeiro passo para responder a uma questão deste tipo consiste em dizer: com e no sentido denuncia-se de uma certa forma o Outro de todo o sendo, esse outro que Nada é — um nada. Só quando passa para além de todo o sendo para se retirar dentro dessa ausência do ser, vista como néantir activo, é que o homem pode juntar-se ao sendo1. Desta forma a ausência do ser aparece nos anos contemporâneos do Sein und Zeit. Como condição de revelação do sendo. Muito longe de estar reduzido a uma simples negação, é reenviado — sem que a natureza deste reenvio esteja ainda claramente fixada — ao «ser do sendo»2.
Mais tarde, aquilo que a conferência de 1929 chamava ainda de Nada, e de que já pressentia o carácter de plenitude, será reconhecido não só como participando de alguma forma no ser mas como constituindo o seu próprio modo de desenvolvimento, ou seja a sua própria essência: «Aquilo que nunca chega a ser um sendo revela-se como aquilo que distingue qualquer sendo e a que chamamos ser3.» E é esse «nada que não é nada» que; mais tarde ainda, Heidegger ouvirá ressoar no «Caos sagrado» de Hölderlin4, identificado com o bem-estar primordial de onde pode surgir qualquer abertura e daí, qualquer sendo. Em suma, um dos traços da essência do ser tal como Heidegger tenta pensar no seu carácter de (164) ausência do ser — que será depois especificado num movimento mais complexo, tal como um abismo (ou seja sem fundo) e retirada (ou seja ocultação de si próprio). Que uma concepção da ausência do ser tenha dado origem, nomeadamente numa sua primeira formulação, a várias más interpretações, diz bastante a que ponto era insólita, face ao modo de pensar tradicional no Ocidente.
O que é que de facto entendíamos por essência do ser? O próprio Heidegger estabelece um breve recapitulativo na sua conferência de 1929. Simplificando ao máximo, podemos dizer que não conhecíamos nada sobre o Caos e o Nihil. Caos por oposição ao cosmos, é antes do mais magma e desordem: o chão não é nada, não tem nem forma nem rosto, matéria privada de eidos, desta forma não pode produzir. A ausência do ser concebida desta forma não é então pura nulidade, mas não poderia estar dotada de forma alguma de poder e de energia criadora.
Com o cristianismo surge uma outra ideia da ausência do ser: o nihil é ausência radical de todo o sendo, não-ser absoluto. Considerado na perspectiva da criação irá tornar-se pura ausência de todas as coisas a partir da qual (ex nihilo) Deus criou todas as coisas. É esta concepção que será depois veiculada tanto pela filosofia como pela teologia incluindo algumas correntes da teologia judia, visto que esta serve como qualquer teologia de conceitos importados.
[ZARADER, Marlène. A Dívida Impensada. Heidegger e a Herança Hebraica. Lisboa: Instituto Piaget, 2000]