Zarader (2000:131-134) – Erörterung

O Erörterung apresenta várias características paralelas às do Ort. Já notámos na anterioridade do local, em relação a tudo aquilo que concede: o local e a origem, o aquilo a partir de onde. De facto, o primeiro traço da situação, será que ela se orienta para a condição de possibilidade. Essa linguagem — marcada pelo léxico do transcendental — é o do Princípio da Razão. Apresentando «o princípio», Heidegger escreve: «Devemos considerá-lo a bem dizer, no sentido oposto: não no sentido das suas áreas, e dos distritos de aplicação, mas sim no sentido da sua própria origem (Herkunft), em direcção àquilo a partir de onde (von woher) fala (…). Aquilo a partir de onde fala o apelo do princípio, chamamos-lhe local (Ort) do princípio da razão. O caminho que lá deve conduzir e permitir uma primeira exploração, chama-se a situação (Erörterung) do princípio da razão1.

O mesmo texto oferece-nos também uma segunda indicação que tem a ver com a natureza do local e através disso, a da situação: o seu carácter de reunião. «Aquilo que chamamos o local é onde se junta o desenvolvimento essencial (das Wesende) de uma coisa2.» Desta forma, será a situação uma atenção para com a origem — se esta for recolhida por modo de unidade.

Segundo esta primeira formulação — que define o Erörterung relativamente a um princípio metafísico e não, tal como será o caso noutro lugar, ao canto do poeta —, acontece então que a situação prende-se em «localizar» e «recolher» a origem impensável do pensável. Por isso, aquilo que recolhe pertence ao pensável — tal como aquilo que lhe escapa ou que lá está reservado. É claro de facto que o impensável só faz sentido se for chamado pelo próprio pensável, se lá estiver de qualquer forma pré-planeado; se lá estiver abrigado, enfim, se é aquilo para onde conduz (ou reconduz) o pensamento (131) quando é interrogado no sentido daquilo que reservando-se no seu desdobramento, o permite3.

No texto, de há alguns anos, sobre Trakl, a formulação de Heidegger é diferente (diferença que nem ele, nem os seus intérpretes sublinham4, mas que me parece bastante significativa). O movimento do Erörterung não é ele apresentado como passagem do pensável ao impensável, mas sim do dito ao não-dito. Mudança certamente chamada de natureza do texto que se trata de «situar» um princípio metafísico expõe um pensamento que Heidegger reenvia ao impensável que nela está reservado; um poema canta ou diz, e é aquilo que ele diz, que Heidegger reenvia ao não-dito que nele se abriga — para enquanto pensador, pensá-lo, ou seja torná-lo «digno de questão». A passagem do par pensável/impensável ao par dito/não-dito parece desta forma corresponder à passagem de um texto filosófico a um texto poético. Os dois pares diriam «a mesma coisa» (no que diz respeito à interpretação) e só o diriam em termos diferentes porque o texto suporte teria entretanto mudado. Mas temos de ver isso de mais perto.

A primeira formulação define o Erörterung como passagem do pensável ao impensável. O impensável através da sua própria definição é aquilo que não foi tido em conta pelo pensamento. Se no entanto, pode ser considerado como ser impensável, é porque o pensamento faz duplamente sinal na sua direcção: por um lado (devido ao seu carácter derivado), «falha» na sua condição de possibilidade e reclama-a nesse sentido; por outro (devido ao seu carácter da linguagem), «abriga» essa condição na medida em que o testemunha. De facto, o impensável é aquilo que não foi meditado, pelo pensamento, tendo ficado depositado na língua5. Diremos, por exemplo, que no Logos pensado como lógica, reserva-se de modo impensável, a sua essência de recolha (como já dizia legein); ou que na Aletheia pensada como concordância ou rectidão reserva-se de modo impensável, a sua essência «reveladora» (já dizia a a-letheia). Por outras palavras, o «salto» em direcção ao impensável abandona de facto o terreno daquilo que foi pensado, mas não aquele do que foi dito: pelo contrário, atinge-o finalmente. Se saltar será em direcção da palavra, para a ouvir ressoar na sua força inicial de nominação, e pensar por fim naquilo que o pensamento não tinha recolhido, mas que permanecia em espera no «abrigo» do vocábulo. (132)

É claro que, não é por a palavra ter a marca da essência inicial que o pensamento é levado até ela (a etimologia aqui é directriz); no entanto, resta que quando o pensamento se dirige para essa essência, não pode deixar de encontrar o seu eco na palavra. Se quebrarmos esse paralelismo, falhamos o traço mais característico da problemática heideggeriana, traço que consiste em conceder ao pensamento (ou seja ao seu próprio pensamento também) a dupla garantia da história (a «manhã») e a da linguagem (as «palavras»). O que aqui me interessa é esta última garantia6.

Consideremos agora a segunda formulação do Erörterung: é apresentado como passagem do dito ao não-dito, do formulado ao que não está formulado. Neste caso, a «situação» afasta-se não só daquilo que foi pensado ao longo da nossa história, mas também daquilo que a língua diz. Afasta-se, claro, mas a favor de uma dimensão de silêncio que conteria a própria língua. Mas esse não-dito abrigado na língua não é aquilo que «falta» num determinado dito, nem sequer aquilo que este «testemunharia»; é pura e simplesmente aquilo que está reservado em todo o dizer. Nesse sentido, Vattimo não deixa de ter razão quando compara a presença do não-dito no dito, a da terra na obra7. De facto, tal como a terra, o não-dito é a reserva inesgotável e permanente de onde surge qualquer abertura, a saber, tudo o que é explícito. Mas se aceitarmos esta definição do não-dito, convém ver as consequências. De facto, significa que no próprio acto em que a linguagem fala, reserva algo de si próprio; e é extraindo sempre e novamente, de forma diferente nesta reserva que podemos fazer ressoar, cada vez de uma forma diferente, o dito.

Existe então duas ordens de diferenças entre as formulações heideggerianas. Por um lado, o salto do pensável ao impensável encontrava uma marca depositada na língua. Cumprindo-o, o pensador pisava então um rego até então desapercebido, mas que já estava cavado. O salto do dito para o não-dito conduz aquém desta mesma marca, e adquire assim uma nova liberdade. Por outro — e sobretudo — a passagem do pensável ao impensável atinge o impensável do pensável, ou seja, aquilo que é chamado de próprio pensável e, que por isso lhe pertence; a passagem do dito para o não-dito atinge uma reserva inesgotável (como a terra), reserva onde é de facto possível extrair, para fazer sair novas formas, mas que não está (133) em ligação directa com esse tal dito fixado e, por isso, não pode parecer como «aquilo que lhe falta».

  1. GA10:SvG, p. 105-106 (PR, 145).[]
  2. Ibid. Sobre esta questão, cf., também, GA7:VuA, pp. 149 e segs. (EC, 183 e segs), tal como ZSfr; GA9:Wgm, p. 240 (Q I, 234).[]
  3. Pöggeler insiste fortemente neste aspecto. Apresenta o pensamento como «Sinal ou indício» do impensável, «referência» àquele (op. cit., p. 388). Há de facto um «salto» entre um e outro, mas esse «salto já não é simples gratuidade, quando aquilo que é para pensar, para aquilo onde salta o pensamento, é de facto o impensável do já pensado, e assim o concedido» (ibid., sublinho), o «proposto» (ibid., p. 405). O Erörterung, que pretende «explicitar os pressupostos desapercebidos» (ibid., p. 394), terá então como tarefa exclusiva a de «receber a reivindicação, e dar-lhe a palavra» (ibid., p. 397).[]
  4. Nem Pöggeler nem Vattimo provêm dela. Pöggeler não deixa pelo contrário de justapor os dois tipos de formulações heideggerianas (as que têm a ver com o não-pensável, e as que têm a ver com o não-dito) como se fossem estritamente equivalentes. Cf., por exemplo, ibid., p. 388: «explicitar aquilo que já é pensado na direcção daquilo que não é pensado, dar a palavra àquilo que restou por formular no formulado», ou ibid., p. 397: «levar à palavra o inescutado e o silencioso…».[]
  5. Nesta definição do impensável, cf. Heidegger et les Paroles de I’origine, op. cit., p. 22.[]
  6. Aliás mostrei que se a garantia da linguagem fosse conservada (ver amplificada) até o fim da obra, a da história atenuava-se, talvez até desaparecer nos escritos tardios. Cf. «Le miroir aux trois reflets», art. citado, p. 19 (especialmente n.° 14) e p. 25.[]
  7. G. Vattimo, Introduction à Heidegger, op. cit., p. 146.[]