- João Duarte
- Original
João Duarte
Mas como pode este ente ser, quer dizer vir à presença e perdurar nessa presença, se não for a partir de um espaço de jogo prévio, que é o único a conceder-lhe o eclodir como presente? É esse espaço de jogo que Heidegger chama o Aberto (das Offene). E é precisamente porque tudo o que está presente, e que por isso chamamos «ente», só pode ser a partir desse espaço de jogo e dentro dele, que Heidegger chama a esse ente-presente ein Offenbares 1: algo que somente pode tornar-se «manifesto», e consequentemente ser «descoberto» , porque procede do Aberto.
O Aberto, que é a condição primeira para que o ente apareça como tal, não é pois, muito evidentemente, constituído pelo ente (uma vez que, pelo contrário, permite o seu surgimento). Mas também não é constituído pela representação, uma vez que é só no interior desse Aberto que é possível instaurar uma relação com o ente, referir-se a ele. Heidegger chama comportamento (Verhalten) a esta relação muito geral com o ente, de que a representação cognitiva é apenas um modo entre outros. Ora, mesmo se alargarmos a intencionalidade a todos os comportamentos, na acepção (68) heideggeriana deste termo, mostra-se claramente que ela supõe esta abertura prévia, que é a única a partir da qual o ente se dá como ente, a única em cujo interior posso instaurar uma relação com ele.
O Aberto é pois, com todo o rigor, duplamente prévio: se o ente só pode surgir e ser a partir dele, eu próprio só posso ser e relacionar-me com o ente estando também nele. Aqui é preciso estar particularmente atento à linguagem heideggeriana: do mesmo modo que o ente surgido do Aberto é chamado ein Offenbares, também ο comportamento que se refere ao ente assim manifestado é chamado offen. O estar-aberto ou a apritude do comportamento, como o estar-descoberto do ente, só recebem o seu nome e o seu ser da abertura prévia de um domínio onde cada um dos dois, coisa e representação, pode ser, e estar em relação.
Vemos assim mais claramente em que é que a verdade da enunciação é necessariamente segunda em relação à da aparição. O ente só pode ser enunciado tal como é (verdade predicativa) se já surgiu como tal, quer dizer como aberto-revelado, para um comportamento ele próprio aberto. Só o ente assim descoberto pode tornar-se modelo ou medida de uma representação adequada. Portanto, é efectivamente a ordem do ente que, mais originalmente que a ordem do juízo, deve ser tida por «lugar» da verdade: esta é o que Heidegger chama a verdade ôntica (ou antepredicativa), verdade que é de facto a da «coisa», mas que já nada tem de uma conformidade: é o estar-descoberto (Entdeckheit) do ente como tal. Compreende-se assim a formulação decisiva de Vom Wesen der Wahrheit·. «A verdade não tem a sua residência original na proposição».
[ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras da origem. Tr. João Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 68-69]Original
ZARADER, M. Heidegger et les paroles de l’origine. Paris: Vrin, 1990.
- GA9:80: «Aquilo que é assim, no sentido estrito da palavra, manifesto (das Offenbare), experimentou-o precocemente o pensamento ocidental como “o presente” (das Anwesende) e desde então chamou-o “o ente” (das Seiende).»[
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- GA9:80 (Qu. I, 170) : « Cela seul qui est ainsi, au sens strict du mot, manifeste (das Offenbare), la pensée occidentale l’a précocement éprouvé comme “ le présent ” (das Anwesende) et la depuis longtemps nommé “ l’étant ” (das Seiende) ».[
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- Ibid., p. 81 (172) : Wahrheit ist nicht ursprünglich im Satz beheimatet.[
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