Zarader (1990:154-157) – Lógica

João Duarte

Desde sempre, a «lógica»1 apresenta-se como a «doutrina do pensamento correcto»2 que, enunciando as regras do comportamento pensante, determina o que deve ser o pensamento. Mas verificar, (204) sem mais, este parentesco de facto entre o pensamento e a lógica apenas pode conduzir a descrever a nossa história (admitida como evidente) e não a esclarecê-la (considerando-a como questão). Trata–se pois, para além da pura e simples verificação, de interrogar o parentesco sempre crescente do pensamento e da lógica, com o fito de pesar as suas consequências. E por isso que a primeira de todas as questões que Heidegger põe sobre a lógica é a seguinte: «O que isso significa, para o destino e curso do próprio pensamento, que desde há muito tempo, senão desde a origem, é justamente algo como a lógica que se apresenta, no pensamento ocidental, como a doutrina do pensamento correcto?»3. Para o compreender, é preciso interrogar a lógica sobre a sua origem.

O termo «lógica» deriva da expressão grega επιστήμη λογική, ciência ou saber do λόγος. Esta tradução habitual não é inexacta. A επιστήμη λογική é de facto a «ciência» do λόγος — mas é precisamente por esta razão que não constitui mais do que uma captação particular deste, que não o deixa vir ao olhar senão numa perspectiva determinada. Este caráter particular do λόγος tal como é captado pela lógica provém de três motivos que podem todos ser extraídos de uma escuta mais atenta da expressão de base επιστήμη λογική.

O primeiro ressalta da única palavra επιστήμη. A acepção grega do termo mostra, com efeito, que este se encontrava já marcado pela mesma limitação que Heidegger encontra (porque se tinha aí depositado) na ciência moderna. Se a ciência moderna é, como vimos, «de essência técnica»4, é porque a έπιστήμη, de onde deriva, é estreitamente aparentada com a τέχνη e não pode ser pensada fora desta conexão. Ora sendo a τέχνη um certo modo de desvelamento, mostra-se que έπιστήμη não é de maneira nenhuma independente de uma concepção determinada da verdade e do ser do ente, concepção em relação à qual se pode já pressentir que não é «a mais original»5.

Para apreender o segundo motivo, importa tomar em consideração o momento histórico em que se constituiu algo como a «lógica»: ela nasceu, ao mesmo tempo que a física (έπιστήμη φυσική) (205) e a ética (επιστήμη ήθική), da tripartição da filosofia, que foi proposta na escola platônica, nomeadamente por Xenocrates 6. Mas o que nos importa aqui, é menos estas considerações históricas do que as consequências historiais que delas resultam para a lógica e para o seu saber do λόγος. A primeira destas consequências, e a mais geral, é que a lógica nasceu «no momento em que a filosofia grega chega ao seu termo, e se torna um assunto de escola, de organização e de técnica»7. Pode, pois, apostar-se fortemente que, constituída numa época de relativa decadência, ela seja, como Heidegger diz gracejando, «uma invenção dos mestres-escola e não dos filósofos»8.

A terceira razão do caráter particular do λόγος tal como é concebido na e pela επιστήμη λογική, é que a tripartição assim efetuada fez nascer disciplinas. Ora, uma disciplina não é nada de neutro. Existe uma conexão de essência entre a disciplina enquanto tal e a maneira como considera (e portanto atinge, conhece, etc.) o seu «objecto» (objecto que merece bem este nome uma vez que, imediatamente tomado nesse campo determinado do saber, já não é a própria coisa, mas está transformado em «objecto da disciplina»). Em que consiste essa relação? Em que a determinação se efetua da disciplina para a coisa, e não da coisa para a disciplina: por outras palavras, a disciplina, assim que é constituída, torna-se critério do que é a coisa e medida da sua verdade — em lugar de ser a coisa que funciona como instância do saber. Esta inversão da relação de determinação — que se poderia chamar perversão, se não fosse indissociável de todo o saber, na medida em que este deriva da έπιστήμη — é claramente apresentada por Heidegger: «As coisas de que trata a disciplina não podem vir à linguagem senão na medida em que a disciplina e o seu equipamento metodológico o permitem. A disciplina e a sua validade permanecem a instância determinante (que decide) se uma coisa pode tornar-se objecto possível de uma ciência e objecto de investigação apropriado — e a maneira como o pode. As disciplinas dominantes são como peneiras, que só deixam passar aspectos completamente determinados (206) das coisas. O que decide do que pertence “à coisa”, não é tanto a coisa, o seu fundamento e a sua verdade, como a disciplina, para a qual a coisa, na medida em que é o seu objecto, permanece orientada»9.

A pretensão da lógica em dar integralmente conta do λόγος é portanto ilegítima, porque assenta na confusão dos dois registros do facto e do direito. De facto, a lógica constitui realmente a compreensão do λόγος que foi e continua a ser normativa para o destino do pensamento; de direito, ela é apenas uma abordagem possível deste. O problema levantado por Heidegger pode pois ser formulado nos termos seguintes: se a lógica é realmente a determinação que decide o que é ο λόγος para toda a história do pensamento ocidental, embora não sendo mais do que uma das suas determinações possíveis, não a única e certamente não a mais original, é porque a determinação do pensamento que, pretendendo-se fiel à origem, adquiriu a predominância no Ocidente, é de facto uma determinação derivada.

Compreende-se assim a afirmação de Heidegger segundo a qual o que se encontra fixado na constituição da lógica, não é, como se acreditou por muito tempo, o começo grego, mas — o matiz é decisivo — o fim desse começo. E apenas na condição de saber operar essa distinção entre a aurora e o declínio de um processo apesar disso inicial que é possível procurar — e talvez atingir — a região do começo autêntico 10: «Não compreendemos a filosofia grega enquanto início da filosofia ocidental se não captarmos ao mesmo tempo esse início no seu fim inicial; porque foi primeiro e unicamente este que se tornou, na (207) sequência dos tempos, o “início”, e de tal maneira que, por isso mesmo, encobria o início inicial»11.

O fim deste texto mostra que o que tem pesadas consequências nesta substituição do começo pelo fim, não é tanto o desprezo que revela do encobrimento que a acompanha: o do começo autêntico e, por isso mesmo, o da origem. Com efeito, como chegar à proximidade da origem, senão meditando o impensado do começo (começo que não é a origem, mas que é o único que pode conduzir a ela)? E como, inversamente, pode o declínio, que só é declínio pelo afastamento da origem, permitir um acesso a esta? Se, como acreditamos, o que permite operar a separação, no próprio seio do começo, entre o seu início e o seu fim, é justamente a sua proximidade mais ou menos grande da origem, então confundir os dois, misturar aurora e crepúsculo, é simultaneamente fechar a única porta que leva até à origem, e condená-la ao esquecimento.

Assim se explica tanto o carácter derivado da lógica como o seu carácter ocultante. Derivado, porque a lógica, quando define o pensamento pelo λόγος, não reconhece que este λόγος de que faz o seu objecto, e que ela querería tão original como fundador, só é determinante na medida em que é ele mesmo determinado — por outras palavras, só funciona como fundamento na medida em que é desde logo resultado. A lógica, portanto, pode bem afirmar que, como ciência do λόγος, é a doutrina determinante do pensamento; o que lhe escapa, é que o que assim determina o pensamento vem de mais longe do que ela acredita. «A lógica é, pela sua parte, incapaz de explicar e fundar o que respeita à sua própria origem e,a legitimidade da sua pretensão a ser a interpretação determinante do pensamento»12.

Ocultante, por outro lado, porque essa concepção derivada do λόγος obnubila de certa maneira a lógica, ocupa para ela todo o espaço semântico circunscrito pela palavra λόγος, e interdita-lhe assim o aperceber-se do que, na verdade e mau grado seu, a funda. (208) Sendo-lhe furtada a sua própria provenienda — que é a única que podería funcionar como autêntica legitimação —, nada mais resta à lógica senão esse último recurso dos amnésicos: apresentar-se como evidente, e preencher com «evidências» o vazio traçado pelo esquecimento do que inaugurou a sua história.

Mas, para medir a extensão desta perda de memória, precisamos considerar, de maneira mais precisa, como é que a lógica concebe ο λόγος. O que é ο λόγος para a lógica e por ela?

Original

  1. Sobre o uso das aspas, justificado pelo carácter problemático da «lógica», cf. EiM, p. 92 (129).[↩]
  2. GA55:186. O presente capítulo referir-se-á sobretudo ao segundo curso deste volume, o do semestre de Verão de 1944 (ver supra, nota 1, p. 41). Na ausência de indicação contrária, é pois este que será visado. Quando, por excepção, fizermos referência ao curso de 1943, indicá-lo-emos.[↩]
  3. Ibid., p. 207.[↩]
  4. Cf. supra, cap. 2, pp. 143-152.[↩]
  5. Cf. GA, tomo 55, p. 227.[↩]
  6. Para estas precisões históricas, cf. ibid., pp. 224-227.[↩]
  7. EiM, p. 92(129).[↩]
  8. Ibid. Cf. também BüH, Wgm, p. 184 (Qu. III, 137-138).[↩]
  9. GA55, p. 228-229.[↩]
  10. Nota sobre a tradução do termo Anfang·. traduzimo-lo, segundo os casos, por «início», «começo» ou «origem». E que, como indicámos desde a introdução (cf. supra, pp. 29-33), o termo tem um estatuto ambíguo na terminologia heideggeriana. É por vezes explicitamente assimilado à origem (Ursprung), em nítida oposição ao começo, ao qual é reservado o único termo Beginn. Mas designa frequentemente, de maneira mais lata e mais conforme ao seu sentido habitual, o ponto de partida (início ou começo). A ambiguidade provem de que, se Beginn e Ursprung designam, sem equívoco possível, um o começo, outro a origem, Anfang ocupa um campo semântico menos claro, que cobre a região, muito extensa, da inicialidade — onde se pode fazer prevalecer, segundo os casos (e Heidegger não se priva disso), o registro de origem ou o do começo.[↩]
  11. EiM, p. 137 (184). Cf. também, e mais claramente ainda, ibid., p. 144 (192): Die “Wandlung von φύσις und λόγος (…) ist ein Abfall vom anfänglichen Anfang. Die Philosophie der Griechen gelangt zur abendländischen Herrschaft nicht aus ihrem ursprünglichen Anfang, sondern aus dem anfänglichen Ende.[↩]
  12. Ibid., p. 93 (129).[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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