Zahavi (2025:c8) – Max Scheler sobre “o problema do outro”

[…] Scheler, por sua vez, questiona duas pressuposições cruciais no argumento da analogia1. Primeiro, o argumento pressupõe que meu ponto de partida é minha própria consciência. Isso é o que me é dado de forma bastante direta e não mediada, e é essa auto-experiência puramente mental que precede e torna possível o reconhecimento dos outros. A pessoa está em casa, em si mesma, e então projeta no outro, que não conhece, o que já encontra em si mesma. A propósito, isso implica que a pessoa só é capaz de entender os estados psicológicos dos outros que já experimentou em si mesma. Em segundo lugar, o argumento pressupõe que nunca temos acesso direto à mente de outra pessoa. Nunca podemos experimentar seus pensamentos ou sentimentos; só podemos inferir que eles devem existir com base no que realmente nos é apresentado, ou seja, seu comportamento corporal. Embora essas duas suposições possam parecer perfeitamente óbvias, Scheler rejeita ambas. Como ele ressalta, devemos prestar atenção ao que é realmente dado, em vez de deixar que alguma teoria dite o que pode ser dado.2 Na opinião de Scheler, o argumento da analogia superestima as dificuldades envolvidas na experiência dos outros e subestima as dificuldades envolvidas na auto-experiência.3 Não devemos ignorar o que pode ser percebido diretamente sobre os outros, nem devemos deixar de reconhecer o caráter incorporado e insertado de nossa própria auto-experiência. Consequentemente, Scheler nega que nosso autoconhecimento inicial seja de natureza puramente mental, que preceda nossa experiência de nossos próprios movimentos e ações expressivos e que ocorra isoladamente dos outros. Ele também nega que nossa familiaridade básica com os outros seja de natureza inferencial. Como ele argumenta, há algo altamente problemático em afirmar que a compreensão intersubjetiva é um processo de dois estágios, sendo que o primeiro estágio é a percepção de um comportamento sem sentido e o segundo é uma atribuição de significado psicológico com base intelectual. Esse relato nos apresenta uma imagem distorcida, não apenas do comportamento, mas também da mente. Não é coincidência o fato de que usamos termos psicológicos para descrever o comportamento e que seria difícil descrever o comportamento em termos de movimentos simples. Na maioria dos casos, é muito difícil (e artificial) dividir um fenômeno em um aspecto psicológico e comportamental — pense apenas em um gemido de dor, um aperto de mão, um abraço. Pelo contrário, no encontro face a face, não nos deparamos com um mero corpo ou com uma psique oculta, mas com um todo unificado. Scheler ocasionalmente fala de uma “unidade expressiva”. É somente depois, por meio de um processo de abstração, que essa unidade pode ser dividida, e nosso interesse pode então prosseguir “para dentro” ou “para fora”.4

 

  1. NT: Segundo Zahavi: “Uma das tentativas clássicas de lidar com esse problema [do outro] é conhecida como o argumento da analogia. No meu próprio caso, posso observar que tenho experiências em que meu corpo é influenciado causalmente e que essas experiências frequentemente provocam determinadas ações. Observo que outros corpos são influenciados e agem de maneira semelhante e, portanto, deduzo por analogia que o comportamento de corpos estranhos provavelmente está associado a experiências semelhantes às que eu mesmo tenho. No meu caso, ser escaldado por água quente está associado à sensação de dor intensa, e essa experiência dá origem ao comportamento bastante distinto de gritar. Quando observo outros corpos sendo escaldados por água quente e gritando, presumo que é provável que eles também estejam sentindo dor. Assim, o argumento da analogia pode ser interpretado como uma inferência à melhor explicação, que nos leva do comportamento público observado a uma causa mental oculta. Embora essa inferência não me forneça conhecimento indubitável sobre os outros, e embora não me permita experimentar de fato outras mentes, pelo menos me dá mais motivos para acreditar em sua existência do que para negá-la.”[↩]
  2. Scheler, M. (2008). The Nature of Sympathy, trans. P. Heath. London: Transaction: 244.[↩]
  3. Scheler, M. (2008). The Nature of Sympathy, trans. P. Heath. London: Transaction: 250–252.[↩]
  4. Scheler, M. (2008). The Nature of Sympathy, trans. P. Heath. London: Transaction: 261.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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