Wrathall (2017:13-14) – pluralidade de mundos

(…) Um mundo, na compreensão heideggeriana que informa o trabalho de Dreyfus, é

todo um contexto de equipamentos, papéis e práticas compartilhados com base nos quais se pode encontrar entidades e outras pessoas. Assim, por exemplo, um martelo é encontrado como um martelo no contexto de outros equipamentos, como pregos e madeira, e em termos de papéis sociais, como carpinteiro, faz-tudo e assim por diante. Além disso, cada conjunto local de ferramentas, as habilidades para usá-las e os papéis que as exigem constituem um submundo, como carpintaria ou trabalho doméstico, e cada um deles, com seus equipamentos e práticas apropriados, faz sentido no contexto mais geral de nosso mundo compartilhado, familiar e cotidiano.

Em outras palavras, um mundo não é apenas um agrupamento aleatório de práticas, equipamentos e papéis, mas um “sistema total”1 — uma maneira ordenada e coerente de coordenar, alinhar e orientar contextos práticos — que dá substância a uma compreensão do ser. Consequentemente, o mundo em que crescemos nos dá as possibilidades de ação e autodeterminação que acabam determinando nossas vidas: “práticas cotidianas incorporadas produzem, perpetuam e delimitam o que as pessoas podem pensar e fazer”. (…) Dreyfus argumenta que a coerência de todas as práticas de primeiro plano que compõem um mundo está fundamentada em um estilo que caracteriza as práticas de fundo deste mundo:

Estilo é a forma como as práticas cotidianas são coordenadas. Serve como base sobre a qual as práticas antigas são conservadas e novas práticas são desenvolvidas. Um estilo abre um espaço de desvelamento e o faz de três maneiras: ( a ) coordenando ações; ( b ) determinando como as coisas e as pessoas são importantes; e ( c ) sendo o que é transferido de uma situação para outra.

Mas como é possível que um novo estilo surja e se estabeleça, reconfigurando assim as práticas de fundo e dando início a um novo mundo? Uma maneira pela qual Heidegger explicou isso foi por meio de grandes obras de arte que manifestam, articulam e glamourizam o estilo de um mundo. “As práticas de uma cultura tendem a se reunir de modo a abrir e iluminar um mundo”, explica Dreyfus, “e elas usam a obra de arte para fazer isso”. (…) Dreyfus ilustra vários estilos de mundo distintos ao contrastar as práticas gregas, industriais e tecnológicas para o uso de equipamentos. E ele mostra como o próprio relato de Heidegger sobre equipamentos em Ser e Tempo ajudou a preparar o terreno para a tecnologia ao incentivar uma compreensão do ser que “deixa em aberto, na verdade incentiva, o tipo de ataque e reordenação da natureza que encontra objetos naturais como Bestand (recursos)”. (…) Dreyfus esclarece melhor o estilo das práticas de fundo de nosso mundo tecnológico atual ao comparar o relato de Heidegger sobre Gestell com o relato de Foucault sobre biopoder. A ênfase de Heidegger nos contextos de significação nos quais as pessoas e as coisas aparecem e se encontram é complementada pela ênfase de Foucault na maneira como as práticas corporificadas perpetuam, delimitam e produzem o que as pessoas são capazes de dizer e fazer. Os regimes de poder de Foucault, assim como as épocas do ser de Heidegger, são clareiras que abrem um campo finito de possibilidades que governam a ação. E tanto Heidegger quanto Foucault estão especialmente preocupados com a liberação atual, com sua pressão em direção a uma otimização e normalização cada vez maiores.

  1. Dreyfus, Being-in-the-World, 90.[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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