Wrathall (2017:10-12) – o impessoal [das Man] e autenticidade

Uma vez que reconheçamos como as práticas de fundo desempenham um papel constitutivo na fundamentação de uma compreensão do ser, abrem-se várias questões importantes. Por exemplo, já vimos como as práticas de fundo são totalmente sociais. Nossa compreensão do mundo é articulada por essas práticas e, portanto, crescemos, em primeiro lugar, em uma forma compartilhada de compreender tudo. “Não dizemos o que vemos”, explica Heidegger sobre nossa experiência cotidiana imediata da palavra, “mas sim o contrário, vemos o que se diz sobre o assunto”.1 Mas podemos perguntar: essa articulação social é essencial, de modo que todas as nossas atividades sejam inescapavelmente determinadas por uma forma compartilhada de inteligibilidade? Ou é possível ser autêntico, romper com o conformismo servil às normas e aos padrões compartilhados e, em vez disso, agir de forma que faça sentido sem ser geralmente inteligível? (…) Dreyfus oferece uma interpretação do relato de Heidegger sobre “a-gente” ou “o impessoal” (das Man). Nas atividades da existência cotidiana, argumentou Heidegger, eu não sou o meu próprio si, mas um “si-impessoal” (Man-selbst). Como um “si-impessoal”, “eu faço o que qualquer um deveria fazer nessa situação” ou “eu penso o que todo mundo pensa”. O “impessoal” na leitura de Dreyfus nomeia a maneira como nossas práticas incentivam uma “tendência essencial de minimizar a distância entre nós e os outros por meio de coerção ou cooptação sutil, especialmente quando não estamos cientes de que estamos fazendo isso. Nós constantemente e inconscientemente moldamos a pronúncia dos outros, a distância que eles ficam de nós e como eles usam suas facas e garfos, e coisas do gênero; eles nos moldam da mesma forma”. Assim, conclui Dreyfus, estamos estruturalmente dispostos, por meio de nossas práticas, a “reduzir… a diferença e, assim, desempenhar… a função ontológica de estabelecer normas e, portanto, abrir um mundo humano compartilhado”. (…) Dreyfus descreve duas formas diferentes de autenticidade que são possíveis, apesar da dependência inevitável de nossa compreensão do ser em práticas sociais compartilhadas. A primeira forma de autenticidade — autenticidade como phronesis — é uma rejeição dos esforços para codificar e regular as práticas por meio de regras e padrões explícitos. O phronimos reconhece que há um sentido nas práticas que nunca pode ser capturado por meio de regras. Por meio do “refinamento gradual das respostas que surgem da longa experiência de agir dentro das práticas culturais compartilhadas”, o phronimos aprende a preservar o que está mais essencialmente em jogo nas práticas compartilhadas, mesmo quando isso exige que ele aja de forma contrária às regras convencionais de ação. “A compreensão que essa pessoa tem de sua sociedade é mais rica e profunda do que a compreensão média”, argumenta Dreyfus, e, portanto, tem um tipo de autenticidade, mesmo que essa compreensão da situação seja fundamentalmente constituída pelas práticas de fundo compartilhadas. Mas Dreyfus também vê que há uma forma mais elevada de autenticidade — uma que responde não ao que é essencial nas práticas sociais compartilhadas, mas sim ao que é essencial para ser um ser humano. O que é essencial para a existência humana é a nossa “falta de moradia”. Não pertencemos exclusivamente a nenhum conjunto de práticas e, portanto, experimentamos (em algum nível — geralmente muito distante da consciência reflexiva) todas as formas possíveis de vida como contingentes. Essa é uma caracterização negativa da existência humana; vista de forma positiva, o que há de mais definitivo em nós é nossa capacidade de revelar novas formas de ser no mundo:

De acordo com Heidegger, nossa natureza é sermos desveladores do mundo. Ou seja, por meio de nossos equipamentos e práticas coordenadas, nós, seres humanos, abrimos contextos ou mundos coerentes e distintos nos quais percebemos, agimos e pensamos. Cada um desses mundos possibilita uma forma distinta e abrangente em que as coisas, as pessoas e os si podem aparecer e em que certas formas de agir fazem sentido.

Isso aponta para uma forma mais elevada de autenticidade. Somos autênticos quando vivemos de forma a assumir nossa natureza de desveladores do mundo. Nesse quadro, a pessoa mais autêntica é o “mestre cultural”, que reconfigura o mundo, saindo das práticas de fundo existentes para um conjunto de práticas modificadas. (…) Dreyfus aprofunda ainda mais nossa compreensão do ideal de autenticidade ao catalogar uma variedade de maneiras pelas quais os intérpretes tentaram dar sentido à afirmação de Heidegger de que a autenticidade envolve “resolução antecipatória” diante da morte. Mas a morte, ressalta Dreyfus, “tem uma instanciação tanto individual quanto cultural”: “As culturas, assim como as pessoas e as coisas que concentram seu estilo, devem morrer para que novos mundos sejam revelados”. (…) Dreyfus desenvolve um modelo de transformação cultural que é consistente com a ideia de que toda inteligibilidade é, em última análise, fundamentada em práticas sociais. “Em uma mudança histórica”, explica Dreyfus, “uma figura histórica faz história ao recuperar algumas práticas do passado e dar a elas um novo papel central no presente”. Com essa mudança nas práticas de fundo, “os seres humanos e as coisas aparecem de forma diferente”.

  1. Martin Heidegger, The History of the Concept of Time (GA20) (Bloomington, IN: Indiana University Press, 1985), 56.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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