Tradução
Vamos antes de tudo desconstruir o que pode ser denominado mito do “método científico” como este é atualmente entendido: um conjunto de procedimentos racionais garantidos para eliminar o mero dogma do “verdadeiro” conhecimento científico, distinguir o fato empírico da mera crença ou hipótese. Então, o que é exatamente o “método” científico moderno – aquela verdadeira barricada de procedimentos investigativos projetada para defender a ciência institucionalizada de suposições vazias ou pseudociência? O método científico moderno se entende como um processo de cinco estágios que envolve:
1. Observação e descrição de um fenômeno.
2. Formulação de uma hipótese que explica o fenômeno.
3. Uso da hipótese para prever outros fenômenos.
4. Experimentos controlados projetados para testar essas previsões.
5. Validação de seus resultados por pesquisadores independentes.
As primeiras e mais importantes questões levantadas por esta autodefinição são aquelas que ela notavelmente falha em abordar. As perguntas são:
1. O que conta como um fenômeno em primeiro lugar?
2. Que prestação de conta se faz do fenômeno ele mesmo?
3. De que maneiras pode se prestar conta do fenômeno?
Estas questões são de importância metodológica fundamental, pois, como Heidegger aponta: “Toda explanação alcança o tanto quanto a explicação daquilo que deve ser explicado.”
O próprio Heidegger dá vários exemplos de fenômenos aos quais as perguntas se aplicam, entre eles “dor e lágrimas”. Antes de podermos formular e confirmar uma hipótese “científica” para explicar o fenômeno das “lágrimas”, por exemplo, devemos primeiro nos perguntar o que o fenômeno ele mesmo é essencialmente. Porém, dentro do método científico moderno, o que conta como um fenômeno é acima de tudo o que é contável – mensurável. Ao que Heidegger rebate: “Na realidade, você nunca pode medir as lágrimas; ao contrário, quando você mede, é na melhor das hipóteses um fluido e suas gotas que você mede, mas não lágrimas ”.
As lágrimas são um fenômeno somático, um fenômeno psíquico ou um fenômeno “psicossomático” – o efeito somático de um fenômeno psíquico como “luto”? Em caso afirmativo, isso significa que as gotas de fluido somático produzidas por um olho irritado e lacrimejante são tantas lágrimas quanto as produzidas por uma pessoa chorando de tristeza, ou seja, essencialmente o mesmo fenômeno, exceto com uma “causa” diferente? O fato de que, “cientificamente” falando, nos referimos a “canais lacrimais” como dados fisiológicos, implica em tanto. A designação fisiológica põe de lado a questão metodológica fundamental do que constitui o fenômeno das lágrimas como tal – em distinção de outros fenômenos, olhos marejados. Antes que quaisquer hipóteses possíveis possam ser avalizadas ou experimentos aventurados, portanto, o método científico moderno já deu suas próprias respostas dogmáticas às três questões metodológicas fundamentais:
1. O que conta como fenômeno é apenas aquilo que podemos observar externamente – gotas fluidas mensuráveis produzidas pelos olhos.
2. Nosso relato sobre o que são as lágrimas como fenômeno não fará distinção entre chorar de tristeza e olhos marejados.
3. Podemos prestar conta das lágrimas apenas sugerindo mecanismos de causação fisiológica ou “psicossomática”.
No entanto, qual possível experimento poderia ser concebido para fornecer evidências quantitativas “confiáveis” de uma relação causal entre um estado psíquico, como luto, e sua expressão somática em lágrimas? Em primeiro lugar, teríamos que estar em posição de “medir” o luto. Heidegger novamente: “Como se mede o luto? Obviamente, não se pode medir nada. Por que não? Se alguém aplicasse um método de medição ao luto, ofenderíamos o significado do luto e já teríamos excluído de antemão o luto como luto. A própria tentativa de medir ofenderia o fenômeno como fenômeno ”.
Heidegger prossegue enfatizando que o fato de falarmos de alguém que sofre menos ou mais intensamente não significa que estamos falando de uma quantidade mensurável de luto, mas sim de sua qualidade. Estamos nos referindo à profundidade e intensidade qualitativas. Quanto às lágrimas que supostamente podem ser explicadas como algo “causado” pelo luto, estamos mais uma vez ofendendo o fenômeno como fenômeno. Lágrimas como lágrimas – como expressões de tristeza ou infelicidade, dor ou luto não são um fenômeno físico que primeiro observamos e depois explicamos, cientificamente ou não. Não vemos gotas de água nos olhos de uma pessoa primeiro, para então concluir, a partir da circunstância, que ela está de luto e, portanto, entendemos que ela está chorando de luto. O fenômeno imediatamente observado não são gotas de fluido nos olhos de uma pessoa, mas uma pessoa chorando – não uma percepção física isolada, mas um todo perceptivo ou gestalt. É somente através da abstração desta gestalt – do fenômeno como um fenômeno – que chegamos a um relato do que são as “lágrimas” que as reduzem a algo “psíquico” ou “somático”. Uma descrição do fenômeno que então exige uma prestação de conta explanatória em termos de algum “mecanismo” de “causação” psicossomática.
Heidegger passa a questionar como as coisas estão com o fenômeno da dor, comparando, por exemplo, a dor do luto com algum tipo de dor corporal.
“Como estão as coisas em relação a estas ‘dores’? Ambas são somáticas ou psíquicas, ou são apenas uma somática e a outra psíquica, ou as duas dores não são nem uma nem outra? ”
Qualquer explicação que possamos dar em termos de dor como um fenômeno, ou qualquer tipologia de fenômenos de dor que possamos construir – distinguindo dor somática e emocional, dor real e imaginária, etc. ambos imediatamente encerrariam a questão de que o fenômeno ele mesmo – dor como tal – essencialmente é. Mas a questão de o que a dor ela mesma é essencialmente e como prestar conta dela não é o objeto de nenhum experimento possível. Em primeiro lugar, é uma questão de saber o que significa para nós “estar em dor”, ou seja, as diferentes formas (mentais, emocionais e físicas) em que estamos cientes de estar em dor, e as diferentes maneiras em que interpretamos, emocionamos e incorporamos a dor como um estado de ser.
O método científico moderno descarta com antecedência como possíveis objetos de investigação científica todos os fenômenos que não podem ser reduzidos a “fenômenos” sensoriais observáveis e mensuráveis, como gotas de “lágrima” ou sinais elétricos de “dor”. Ao fazer isso, ele exclui qualquer abordagem genuinamente empírica dos fenômenos como tais – qualquer exploração da maneira como realmente experimentamos estes fenômenos. Mas esta é precisamente a tarefa de qualquer ciência genuinamente empírica, genuinamente fenomenológica.
Embora a ciência seja em si uma atividade humana que pressupõe a existência de seres humanos conscientes, capazes de criar hipóteses e testá-las por meio de observações e medições experimentais, o método científico moderno não pode sequer provar a existência de um único ser humano – em oposição a um falante corpo-objeto. Nem pode fornecer evidências por um único estado de ser, tais como amor ou medo, luto ou dor, alegria ou tristeza, ou pelo dado reconhecimento (awareness) de mundo do próprio cientista – condição para observação e medição de qualquer fenômeno qual seja. Afinal, do ponto de vista físico-científico, os instrumentos podem ser usados para medir e observar as coisas sem que tomemos qualquer reconhecimento de sua parte – então o mesmo se aplica aos cientistas que usam estes instrumentos. De um ponto de vista científico moderno, como Heidegger colocou de forma bastante simples: “Não se pode provar que se existe.”
O que nos resta então, é um “método” que busca explicações “científicas” para os fenômenos, mas ao mesmo tempo:
1) Esquece que o reconhecer (awareness) é a condição para a nossa observação e medição de quaisquer fenômenos que sejam
2) Toma nosso reconhecer dos fenômenos como certo ou busca reduzir este reconhecer a um fenômeno entre outros
3) É baseado em postulações não verificáveis de energias físicas e entidades inacessíveis ao reconhecer direto
4) É incapaz, em princípio, de explicar como o reconhecer pode surgir dentro de um universo fundamentalmente inconsciente de matéria e energia
5) Assume o reconhecer dos fenômenos do próprio cientista sem “provar” este reconhecer ou questionar a visão dos fenômenos que apresenta
Alguém pode perguntar como um conceito tão flagrantemente autocontraditório de “verdade” científica e “método” científico conseguiu se justificar. Fê-lo mantendo o mito de que reconhecimento ou subjetividade é essencialmente propriedade privada. Por causa disto, a experiência subjetiva e os fenômenos subjetivos são vistos como essencialmente inverificáveis, ao passo que a ciência lida com um mundo “externo” de fenômenos objetivos e publicamente verificáveis – um mundo supostamente independente de subjetividade e um mundo “interior” privado de experiência e fenômenos subjetivos.
Let us first of all deconstruct what might be termed the myth of ‘scientific method’ as this is currently understood: a set of rational procedures guaranteed to eliminate mere dogma from “true” scientific knowledge, distinguish empirical fact from mere belief or hypothesis. So what exactly is the modern scientific “method” – that veritable barricade of investigative procedures designed to defend institutionalized science from empty supposition or pseudo-science? Modern scientific method understands itself as a five-stage process involving:
1. Observation and description of a phenomenon.
2. Formulation of a hypothesis that explains the phenomenon.
3. Use of the hypothesis to predict other phenomena.
4. Controlled experiments designed to test these predictions.
5. Validation of their results by independent researchers.
The first and most important questions raised by this self-definition are those it notably fails to address. The questions are:
1. What counts as a phenomenon in the first place?
2. What account is given of the phenomenon itself?
3. In what ways can the phenomenon be accounted for?
These questions are of fundamental methodological significance, for as Heidegger points out: “All explanation reaches only so far as the explication of that which is to be explained.”
Heidegger himself gives several examples of phenomena to which the questions apply, amongst them “grief and tears”. Before we can formulate and confirm a ‘scientific’ hypothesis to explain the phenomenon of ‘tears’ for example, we must first ask ourselves what the phenomenon itself essentially is. Within the modern scientific method however, what counts as a phenomenon is above all that which is countable – measurable. To which Heidegger counters: “In reality you can never measure tears; rather when you measure, it is at best a fluid and its drops that you measure, but not tears.”
Are tears a somatic phenomenon, a psychical phenomenon or a ‘psychosomatic’ phenomenon – the somatic effect of a psychical phenomenon such as ‘grief’? If so, does that mean that the somatic fluid drops produced by an irritated and watering eye are just as much tears as those produced by a person weeping in grief, i.e. essentially the same phenomenon except with a different ‘cause’? The fact that, ‘scientifically’ speaking, we refer to ‘tear ducts’ as physiological givens, implies as much. The physiological designation sets aside the fundamental methodological question of what constitutes the phenomenon of tears as such – in distinction from other phenomena such as over-watering eyes. Before any possible hypotheses can be vouched or experiments ventured, therefore, the modern scientific method has already given its own dogmatic answers to the three fundamental methodological questions:
1. What counts as a phenomenon is only that which we can observe outwardly – measurable fluid drops produced by the eyes.
2. Our account of what tears are as a phenomenon will make no distinction between weeping in grief and watering eyes.
3. We can account for tears only by suggesting mechanisms of either physiological or ‘psychosomatic’ causation.
What possible experiment however, could be devised that would provide ‘reliable’ quantitative evidence of a causal relation between a psychic state such as grief and its somatic expression in tears? We would first of all have to be in a position to ‘measure’ grief. Heidegger again: “How does one measure grief? One obviously can’t measure it at all. Why not? Were one to apply a method of measurement to grief we would offend against the meaning of grief and would have already ruled out in advance the grief as grief. The very attempt to measure would offend against the phenomenon as phenomenon.”
Heidegger goes on to emphasise that the fact that we speak of someone grieving less or more intensely, does not mean we are speaking of a measurable quantity of grief, but rather of its quality. We are referring to qualitative depth and intensity. As for the tears that can supposedly be accounted for as something ‘caused’ by grief, we are once again offending against the phenomenon as phenomenon. Tears as tears – as expressions of sadness or unhappiness, pain or grief are not a physical phenomenon that we first observe and then account for, scientifically or otherwise. We do not first see drops of water in a person’s eyes, then conclude, from the circumstance, that they are grieving and therefore understand them to be weeping in grief. The immediately observed phenomenon is not fluid drops in a person’s eyes but a person weeping – not an isolated physical perception but a perceptual whole or gestalt. It is only through abstraction from this gestalt – from the phenomenon as a phenomenon – that we arrive at an account of what ‘tears’ are that reduce them to something ‘psychical’ or ‘somatic’. An account of the phenomenon that then demands explanatory accounting for in terms of some ‘mechanism’ of psychosomatic ‘causation’.
Heidegger goes on to question how things stand with the phenomenon of pain, comparing for example the pain of grief with bodily pain of some sort.
“How do things stand regarding both these ‘pains’? Are both somatic or both psychical, or is only the one somatic and the other psychical, or are both pains neither one nor the other?”
Any account we might give in such terms of pain as a phenomenon, or any typology of pain phenomena we might construct – distinguishing somatic and emotional pain, real and imaginary pain etc. would both immediately foreclose the question of what the phenomenon itself – pain as such – essentially is. But the question of what pain itself essentially is and how it can be accounted for is not the object of any possible experiment. It is first and foremost a question of what it means to us to ‘be in pain’ i.e. the different ways (mental, emotional and physical) in which we are aware of being in pain, and the different ways in which we interpret, emotionalise and embody pain as a state of being.
The modern scientific method rules out in advance as possible objects of scientific investigation all phenomena that cannot be reduced to observable and measurable sensory ‘phenomena’ such as ‘tear’ drops or electrical ‘pain’ signals. In doing so it rules out any genuinely empirical approach to phenomena as such – any exploration of the way we actually experience those phenomenon. But that is precisely the task of any genuinely empirical, genuinely phenomenological science.
Whilst science is itself a human activity which assumes the existence of aware human beings capable of creating hypotheses and testing them through experimental observations and measurements, the modern scientific method cannot so much as prove the existence of single human being – as opposed to a talking body-object. Nor can it provide evidence for a single state of being such as love or fear, grief or pain, joy or sadness, or for the scientist’s own taken-for-granted awareness of the world – the condition for their observation and measurement of any phenomenon whatsoever. After all, from a physical-scientific viewpoint, instruments can be used to measure and observe things without us assuming any awareness on their part – so the same applies to the scientists using those instruments. From a modern scientific point of view, as Heidegger put it quite simply: “One cannot prove that one exists.”
What we are left with then, is a ‘method’ which seeks ‘scientific’ explanations for phenomena but at the same time:
· forgets that awareness is the condition for our observation and measurement of any phenomena whatsoever
· either takes our awareness of phenomena for granted or seeks to reduce this awareness to one phenomenon amongst others
· is based on unverifiable postulations of physical energies and entities inaccessible to direct awareness
· is unable, in principle, to explain how awareness can arise within a fundamentally unaware universe of matter and energy
· assumes the scientist’s own awareness of phenomena without ‘proving’ this awareness or questioning the view of phenomena it presents
One might ask how such a blatantly self-contradictory concept of scientific ‘truth’ and scientific ‘method’ managed to ever justify itself. It has done so by maintaining the myth that awareness or subjectivity is essentially private property. Because of this, subjective experience and subjective phenomena are seen as essentially unverifiable, whereas what science deals with is an ‘outer’ world of objective, publicly verifiable phenomena – one supposedly independent of subjectivity and of a private ‘inner’ world of subjective experience and phenomena.