As Filosofias da Existência
Jean Wahl
Trd. I. Lobato e A. Torres
Europa-América
1962
EVOLUÇÃO GERAL DAS FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA
Dissemos já que as filosofias da existência partem da meditação essencialmente religiosa de Kierkegaard. Kierkegaard é o indivíduo que se sente pelo seu pecado perante Deus. Como veremos, ter consciência do pecado é já sentir-se perante Deus, e a ideia do «perante Deus» é para Kierkegaard como para Lutero uma categoria fundamental.
O indivíduo é a existência. Deus é a transcendência. Eis os dois termos que vão dominar estes pensadores. O que eles terão em vista é a existência na sua relação com a transcendência.
Estamos no centro do pensamento de Kierkegaard, em presença de dificuldades perante as quais ele não recuará, visto que para ele o pensamento no seu mais alto grau toma consciência das suas dificuldades sem procurar afastá-las. O nosso pensamento perante o Outro absoluto é necessariamente contraditório e atormentado. O transcendente, o absolutamente Outro, Deus, é num sentido o que é sem relação com o que quer que seja, é o absoluto no sentido próprio, no sentido etimológico da palavra. Mas, por outro lado, tenho uma relação com este Absoluto, e mesmo é essa relação intensa com o Absoluto que faz que eu seja um existente. Em muitos dos escritos de Kierkegaard vemos até que o existente pensa que o Absoluto só é por esta relação do existente com ele. Se eu separo o pensamento de Deus da minha tensão para Deus, já não existe realmente pensamento de Deus. Aí reside o paradoxo fundamental: estou em relação, e numa relação tensa, intensa, com qualquer coisa que está sem relação, e este mesmo paradoxo define a existência, até ao ponto em que ela pode ser definida.
Esta teoria está ligada ao que Kierkegaard chama a teoria do como. O importante não é o que eu creio, não é o objeto da minha crença; o importante é a maneira pela qual estou ligado a esse objeto. Se creio de uma maneira absoluta, por essa mesma razão é no Absoluto que creio. Deus é dado pela relação na qual me inclino para ele. Kierkegaard dirá igualmente algumas vezes: pode suceder muito bem que eu pense crer em Deus, e que não seja em Deus que eu creia se o meu pensamento não for bastante intenso, e penso que um qualquer outro homem crê num ídolo, mas, pela intensidade da sua crença esse ídolo torna-se o deus real, dado que o deus real é definido pela minha tensão absoluta, pela minha tensão absolutamente intensa para ele. É portanto o como que define o objeto (ou, melhor, o que outros chamam objeto e que não é em realidade um objeto).
Eis aí o aspecto subjetivista extremo do pensamento de Kierkegaard, mas não passa talvez de um aspecto. Efetivamente, Kierkegaard pensa que não pode comunicar-se diretamente a outrem e que seria uma má forma de trazer os homens para a religião cristã dizer-lhes diretamente: a religião cristã é que é a verdadeira. Então — e certos comentadores de Kierkegaard insistiram neste ponto — talvez que por trás deste aspecto subjetivista do pensamento de Kierkegaard seja preciso procurar um outro aspecto. Além disso, o que é importante, diz-nos ele, é referir-se sempre à palavra de Deus e tornar-se contemporâneo de Jesus. Por consequência, qualquer coisa há que deve completar o aspecto puramente subjetivista que anteriormente notamos. Há a afirmação de uma realidade que é independente de mim. O que não impede que, na maior parte dos seus escritos, Kierkegaard insista, em primeiro lugar, no aspecto subjetivista, na ideia: a subjetividade é a verdade.
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Queríamos agora dizer uma palavra acerca da maneira como foi generalizado e completado o pensamento de Kierkegaard pelos seus sucessores, particularmente por Jaspers e Heidegger. Com este pensamento existencial e não sistemático pode dizer-se que se esforçaram por elaborar sistemas, e algumas perguntas aqui se poderiam fazer do gênero desta: não há nisso qualquer coisa que vai contra a essência, se aqui se pode falar de essência, das filosofias da existência? Kierkegaard dizia de Hegel que ele era um grande professor. Isto na sua boca era mais uma blasfêmia que um elogio. Não se pode dizer que Jaspers e Heidegger são grandes professores e traíram um pouco o pensamento de Kierkegaard, precisamente porque o expuseram sob forma de uma espécie de sistema, quer o tenham ou não querido ? Mas vamos deixar de lado, por agora, esta pergunta. O que nos importa principalmente é ver o que eles acrescentaram ao pensamento de Kierkegaard.
Dissemos que no pensamento de Kierkegaard o indivíduo fica absolutamente isolado perante Deus. Há, sem dúvida, passos da sua obra onde Kierkegaard fala da Igreja invisível, mas o importante para ele é a relação entre o indivíduo e Deus. Trata-se de nos colocarmos numa contemporaneidade com Deus, com o momento da encarnação em que ele veio à Terra. Jaspers acrescenta dois elementos a esta ideia e demonstra de uma dupla maneira que o indivíduo deixa de ser considerado como absolutamente isolado. Primeiro, há aquilo que Jaspers chama a Geschichtlichkeit, uma historicidade profunda. Estes filósofos, tanto Heidegger como Jaspers, distinguem a História, isto é, a história no sentido vulgar da palavra, a sequência dos acontecimentos, e a Geschichtlichkeit, que é a nossa profunda situação na história, o facto de nos inserirmos, nos encarnarmos, num momento da história. Assim, a ligação que tinha sido cortada por Kierkegaard entre o indivíduo e as gerações foi restabelecida por Jaspers. Tomamos lugar numa história; e insistimos no facto de que para Jaspers é um elemento essencial da sua própria filosofia tomar lugar após Kierkegaard e após Nietzsche. Não podemos abstrair deste «após Kierkegaard» e deste «após Nietzsche», se quisermos estudar a filosofia de Jaspers.
Além disso, há comunicação entre eu e o outro indivíduo, os outros indivíduos. A ideia de comunicação era um problema para Kierkegaard. A comunicação com os outros indivíduos deve passar pela linha Indireta da comunicação com Deus, e nós dissemos muitas vezes que ele só concebia comunicações indiretas. De resto, mesmo a comunicação com Deus é muitas vezes ela própria comunicação indireta e, em certo sentido, comunicação frustrada, porque a própria história de Deus na Terra, terminando pela crucificação, é o exemplo de um enorme mal-entendido. Poder-se-ia dizer que a ideia de mal-entendido governa o pensamento de Kierkegaard, mal-entendido com a sua noiva, mal-entendido de uma maneira mais generalizada entre o homem e Deus, mal-entendido necessário na expressão da crença em Deus perante os outros, uma vez que só se pode passar pela comunicação indireta.
Ora, para Jaspers, a comunicação é possível, e nisso reside um dos caracteres da existência. A existência é essencialmente historicidade profunda, acabamos de o dizer, e é essencialmente comunicação. O que não significa que esta comunicação, em Jaspers, se faça facilmente. A comunicação é sempre uma luta de amor ou um amor em luta, como ele diz, kampfende Liebe; cada um dos indivíduos deve conservar-se, cada um deve crescer com o outro. Não é menos verdadeiro que se nos depara uma categoria que se ajusta com as categorias kierkegaardianas. Ele admite uma comunicação direta, que, entretanto, de resto, só pode ser uma comunicação em luta.
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Se agora considerarmos Heidegger, é indubitável que a ideia de comunhão não ocupa o mesmo lugar nele que em Jaspers. Contudo, nós não estamos isolados dos outros. Fizeram a Heidegger o reparo de ele considerar o indivíduo como isolado, o que não é exato. Há o ser com os outros, Miteinander sein, que é o essencial na definição do Dasein. Além disso, longe de nos encerrar em nós próprios, uma tal filosofia diz-nos que não há sujeito em face de um objeto, que se deve destruir o conceito clássico do sujeito, fazê-lo estalar para nos mostrar como está constantemente fora de nós, deixando, aliás, esta própria expressão de ter um verdadeiro sentido, visto que não existe sequer «nós» fora do qual nós fôssemos.
Resta saber em que medida este «ser com os outros» não implica uma tarefa executada em conjunto, em que medida ê uma real comunicação direta.
Poder-se-iam encontrar passos em que Heidegger admite o papel da comunicação direta e do amor.
Ele insiste como Jaspers na historicidade, mas o elemento essencial que Heidegger traz é a ideia do ser no mundo. Assim, o indivíduo que estava completamente isolado do mundo para Kierkegaard retoma o seu lugar no mundo. O Dasein está no mundo, diz Heidegger, pela sua própria essência.
Poder-se-ia, aqui, regressar a uma outra influência que se exerce sobre Heidegger, a de Husserl. Também ele, pelo menos em certas fases da sua filosofia, tinha tentado, de uma maneira naturalmente muito diferente da de Kierkegaard, ver o que é a consciência independentemente do mundo. Mas Husserl insistiu fortemente, no fim da sua vida, no facto de que estamos no mundo, e a este respeito a meditação de Heidegger não se opõe, portanto, como se podia julgar de início, à de Husserl, mas continua-a.
O que acabamos de dizer não é entretanto suficiente para caracterizar as filosofias de Jaspers e de Heidegger nas suas relações e na sua oposição com a de Kierkegaard. Se é verdade que generalizam e completam o pensamento de Kierkegaard, também é verdade que Heidegger parece limitá-lo, pelo menos em Sein und Zeit, isto é, suprimir tudo o que em Kierkegaard era o aspecto religioso e o aspecto transcendente da doutrina. Ele limita pelo pensamento da morte, da nossa finidade essencial, todos os pensamentos que emergiam do espírito de Kierkegaard. A respeito de Heidegger, o problema que se é levado, contudo, a pôr em destaque, é o da relação desta filosofia com o pensamento de Deus. Ela está presente, já o vimos, no centro do pensamento de Kierkegaard; afigurava-se ausente do de Heidegger, mas parece que nos seus últimos trabalhos, nos seus Comentários a Hoderlin, mesmo em Holzwege, a ideia do sagrado reocupa um lugar e nesse ponto deixa de existir uma oposição absoluta entre Heidegger e Kierkegaard.
O que Heidegger tenta fazer-nos sentir é que o ser está para nós, simultaneamente, presente e ausente, que se revela, mas simultaneamente se esconde. Uma vez que se está na posse desta ideia, torna-se necessário ver o que é o conjunto dos sendo. Por isso mesmo, poder-se-ia, diz ele, chegar à ideia de sagrado. E uma vez que se chegue à ideia de sagrado, poder-se-á pôr o problema de Deus, que até aqui não fora posto directamente.
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O que distingue essencialmente a filosofia de Jaspers e a de Kierkegaard é que Kierkegaard faz uma escolha, escolheu ser cristão, escolha que deve ser completada pelo facto de haver que reconhecer um outro fator, a graça de Deus, enquanto Jaspers antes nos mostra as diversas possibilidades de visões que têm os diferentes homens, que têm os diferentes existentes, e define a existência pela escolha, de preferência a não ter vivido ele próprio uma escolha particular. Assim, enquanto há uma visão determinada em Kierkegaard, o que acontece, aliás, por outro lado, em Nietzsche, Jaspers, ao mesmo tempo que é influenciado por estas visões determinadas de Kierkegaard e de Nietzsche, esforça-se por demonstrar as diversas possibilidades de visão. Por exemplo, existirá o que ele chama «lei do dia», e existirá, por outro lado, a «paixão pela noite». A lei do dia é o que se exprime no classicismo; a paixão pela noite é o que se exprime no romantismo, particularmente no romantismo alemão. Jaspers preocupa-se em mostrar-nos sempre as diversas possibilidades que há no existente: desafio e confiança, esperança e desespero, etc. Mas, por outro lado, ele próprio sabe que todo o pensamento profundo deve ser limitado, só é profundo porque é limitado. Há um paradoxo no empreendimento de Jaspers. Oferece-nos uma espécie de catálogo de todas as visões possíveis do mundo, mas diz-nos também que uma visão do mundo deve ser forçosamente limitada, e resta-nos então perguntar se não haverá uma contradição da qual dificilmente ele poderá sair, a não ser que cheguemos a descobrir, em Jaspers, o homem por trás do filósofo.
Para resolver a contradição seria necessário pois distinguir o «Jaspers existente» do «Jaspers filósofo». Mas nesse caso não se teria levado a pôr em dúvida o próprio conceito de filosofia da existência?
A filosofia de Héidegger pode-se ligar, em muitos pontos, a filosofia de Sartre, ainda que Sartre dirija críticas a Héidegger em L’Être et le Néant e, por outro lado, na sua Carta sobre o Humanismo, Héidegger tenha precisado algumas diferenças fundamentais que, segundo ele, o separam de Sartre.
Podemos dizer, pensando na filosofia de Sartre, que o curso da filosofia da existência vai de um pensamento puramente religioso com Kierkegaard a um pensamento não religioso ou até por vezes anti-religioso.
Mas chegados a este ponto é preciso ter em conta uma outra variedade da filosofia da existência, a que se desenvolve com Gabriel Marcel. Nesta altura, a filosofia da existência apresenta-se pois, pelo menos em França, sob as duas formas opostas do existencialismo não religioso ou irreligioso de Sartre e do existencialismo religioso de Gabriel Marcel, a que este chamou ou consentiu que chamassem existencialismo cristão.
Gabriel Marcel não é influenciado profundamente por Kierkegaard, ainda que se encontre em certos pontos em posições kierkegaardianas. O que ele pretende essencialmente é ultrapassar as oposições conceptuais, como sejam as do sujeito e do objeto, de pensamento e de ser, de alma e de corpo, e atingir por aí um domínio a que ele chama o domínio do mistério, por oposição ao domínio dos problemas; chegando a este domínio, tomamos consciência, na medida em que se pode tomar consciência, do inexaurível, do não-objectivável, que nos envolve e nos ultrapassa, que nós não inventamos, que não reconhecemos, e graças ao qual podemos colocar-nos na presença de Deus.
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É demasiado cedo para seguir o desenvolvimento ulterior das filosofias da existência, mas, se tomarmos em linha de conta o esforço de Maurice Merleau-Ponty, chegaremos a uma posição oposta à do começo desta história das filosofias da existência, porque o que está agora colocado no centro é, como acontece no último Husserl, a percepção. De uma teoria que isola os homens do mundo, com Kierkegaard, nós vamos até uma teoria que concebe o homem como essencialmente no mundo, com Heidegger, primeiro, e de uma maneira talvez mais decidida, mais estreita se se quiser, com Sartre e Merleau-Ponty.
Do sujeito isolado perante Deus, tal qual o concebia Kierkegaard, chegamos, com Jaspers, a uma existência essencialmente ligada à sequência profundamente histórica das gerações e à comunicação com os outros, e, com Heidegger, a uma existência que é essencialmente ser no mundo. Jaspers generalizou e completou a experiência de Kierkegaard, esforçou-se por ver o que nela há de válido num sentido universal (se estes termos podem ser aceites por Jaspers) e Sartre cortou a existência da transcendência, tal como Kierkegaard a concebia, mas, por outro lado, Gabriel Marcel, partindo de um ponto completamente diferente, retoma certas posições kierkegaardianas.