Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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vontade

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

Wille, Wollen

[27] Se olharmos para trás a partir de Nietzsche  , encontraremos imediatamente Schopenhauer  . A obra central de Schopenhauer  , que funcionou de início para Nietzsche   como um impulso para a filosofia e que foi se tornando lentamente, por fim, um motivo de repulsa, traz o título: O mundo como VONTADE e representação. No entanto, o que Nietzsche   mesmo compreende por VONTADE é algo completamente diverso. Tampouco é suficiente apreender o conceito nietzschiano de VONTADE como a inversão do conceito schopenhaueriano. GA6MAC I

Dois exemplos podem explicitar o que está aqui em questão. De acordo com a representação usual, a VONTADE é tomada como uma faculdade da alma. O que a VONTADE é determina-se a partir da essência da alma; da alma trata a psicologia. A alma designa um ente particular em contraposição ao corpo e ao espírito. Se para Nietzsche   a VONTADE determina o ser de todo e qualquer ente, então não é a VONTADE que é algo psíquico, mas a alma (a psique) que é algo volitivo. Mas também o corpo e o espírito são VONTADE, uma vez que algo desse gênero “é”. Além disso: a VONTADE é considerada uma faculdade; isto é: poder, estar em condições de…, ter-poder e exercer o poder. O que em si é poder, tal como o é segundo Nietzsche   a VONTADE, não pode ser, com isso, caracterizado pelo fato de o determinarmos como uma faculdade; e isso porque a essência de uma faculdade está fundada na essência da VONTADE como poder. GA6MAC I

Um segundo exemplo: a VONTADE é considerada como um tipo de causa. Costumamos dizer: esse homem não age tanto com a sua inteligência quanto com a sua VONTADE; a VONTADE produz algo, provoca o surgimento de um resultado. Mas ser-causa é um modo particular de ser, por meio do qual o ser como tal não pode ser por isso mesmo concebido. A VONTADE não é nenhuma efetivação. O que se toma comumente como o que produz efeito, aquela faculdade causante, se funda ele mesmo na VONTADE (cf. VIII, 80). GA6MAC I

Não obstante, Nietzsche   precisa dizer então reiteradamente o que é a VONTADE. Ele diz, por exemplo: a VONTADE é um “afeto”, a VONTADE é uma “paixão”, a VONTADE é um “sentimento”, a VONTADE é um “comando”. A caracterização da VONTADE como “afeto” e como coisas do gênero não fala, porém, a partir do âmbito da alma e dos estados anímicos? Afeto, paixão, sentimento e comando não são algo a cada vez diverso? Isso que é aqui aduzido para o esclarecimento da essência da VONTADE não precisa estar ele mesmo antes suficientemente claro? Ora, mas o que é mais obscuro do que a essência do afeto, da paixão e da diferença entre os dois? Como é que a VONTADE pode ser tudo isso ao mesmo tempo? É difícil suplantar essas questões e reservas ante a interpretação nietzschiana da essência da VONTADE. E, no entanto, elas talvez não toquem o que é efetivamente decisivo. Nietzsche   mesmo acentua: “O querer parece-me antes de tudo algo complicado, algo que só é unidade como palavra – e justamente em uma palavra se esconde o preconceito popular, que se assenhorou do cuidado sempre muito diminuto dos filósofos” (Para além do bem e do mal, VII, 28). Nietzsche   fala aqui antes de tudo contra Schopenhauer  . De acordo com a opinião schopenhaueriana, a VONTADE é a coisa mais simples e mais conhecida do mundo. GA6MAC I

Parece, então, que a essência da VONTADE seria tomada da maneira mais pura possível se esse direcionar-se para… fosse destacado de modo pertinente como puro querer em contraposição ao direcionar-se para algo no sentido do mero cobiçar, do desejar, do aspirar ou do simples representar. A VONTADE é estabelecida aí como a pura relação do simples em direção a…, do dirigir-se para algo. Mas essa apreensão é um erro. Segundo a convicção nietzschiana, o equívoco fundamental de Schopenhauer   é achar que há algo assim como um puro querer que é tanto mais puramente um querer quanto mais completamente aquilo que é querido é deixado indeterminado e quanto mais decididamente ele é excluído. Reside muito mais na essência da VONTADE o fato de que aqui aquilo que é querido e aquele que quer são coinseridos no querer, ainda que não no sentido extrínseco, de acordo com o qual também podemos dizer do aspirar que pertence ao aspirar algo que aspira e algo a que se aspira. GA6MAC I

A pergunta decisiva é justamente: como e em razão do que aquilo que é querido e aquele que quer pertencem no querer ao querer? Resposta: em razão do querer e por meio do querer. O querer quer o que quer como tal, e o querer estabelece o que é querido como tal. Querer é decisão para si, mas para si como para o que o estabelecido no querer como querido quer. A VONTADE traz a cada vez a partir de si mesma uma determinação corrente para o interior do seu querer. Alguém que não sabe o que quer não quer absolutamente, e não pode querer de maneira alguma; não há um querer em geral: “pois a VONTADE é, como afeto do [32] comando, o sinal decisivo do autoassenhoramento e da força” (A gaia ciência, Livro V, 1886; V, 282). Em contrapartida, o aspirar pode ser indeterminado, tanto em consideração ao que é propriamente aspirado quanto em relação àquele que aspira. Em meio ao aspirar e ao impelir somos coinseridos em um movimento em “direção a…”, sem que nós mesmos saibamos o que está em jogo. Em meio ao mero aspirar a algo não somos propriamente trazidos para diante de nós mesmos, e, por isso, tampouco há aqui uma possibilidade de aspirarmos a para além de nós mesmos. Aspiramos aqui meramente e imergimos em uma tal aspiração. Por outro lado, a VONTADE é decisão para si – é sempre: querer para além de si. Se Nietzsche   acentua em muitos aspectos o caráter de comando da VONTADE, então ele não designa uma prescrição e uma indicação para a realização de uma ação; ele também não visa ao ato de VONTADE no sentido de uma resolução, mas antes o pensa no sentido de uma decisão – aquilo por meio do que o querer pode se ligar ao que quer e ao que é querido, assim como essa ligação como decisividade fundada e permanente. Só é capaz de comandar verdadeiramente – o que não pode ser de modo algum equiparado com o mero dar ordens – quem não apenas está em condições de, mas quem está mesmo constantemente pronto a colocar a si mesmo sob o comando. Por meio dessa prontidão, ele coloca a si mesmo no âmbito do comando como o primeiro que normativamente obedece. Nesse caráter de decisão pelo qual o querer é lançado para além de si reside o ser-senhor sobre…, o exercer poder sobre o que é aberto no querer e é fixado nele, na decisão como algo apreendido. GA6MAC I

Nietzsche   está visivelmente pensando nesse momento essencial do afeto ao buscar caracterizar a VONTADE a partir daí. Esse ser alçado para além de si mesmo, o acometimento de toda a essência de modo que não somos senhores de nós mesmos em meio à ira, esse “não” não significa de maneira alguma que na ira não somos lançados para fora de nós mesmos; justamente o não ser-senhor no afeto, na ira, distingue muito mais o afeto do assenhoramento no sentido da VONTADE, pois no afeto o ser-senhor-sobressi é transformado em um modo do ser-para-fora-de-nós-mesmos no qual perdemos algo. Denominamos o que é adverso algo que pode não acabar bem. Também denominamos a ira algo contra-a-VONTADE que se lança para fora de nós mesmos. No entanto, isso se dá de tal modo que não nos mantemos juntos a nós mesmos na ira como nos mantemos em meio à VONTADE, mas como que nos perdemos aí; a VONTADE é, nesse caso, uma contra-VONTADE. Nietzsche   inverte esse estado de coisas: a essência formal do afeto é a VONTADE. Todavia, não se considera agora na VONTADE senão o ser-excitado, o ser lançado para além de si mesmo. GA6MAC I

Paixão não tem nada a ver com um mero desejo, não é coisa dos nervos, da exaltação e do excesso. Nietzsche   põe na conta de todos esses estados, por mais excitados que possam parecer, o fato de produzirem uma extenuação da VONTADE. A VONTADE só é VONTADE como querer-para-além-de-si-mesmo, como mais-querer. A grande VONTADE tem em comum com a grande paixão aquela calma do movimento que se perfaz lentamente. Essa calma faz com que dificilmente se responda, com que dificilmente se reaja; e isso não por insegurança e lentidão, [39] mas por uma segurança que expande amplamente o seu campo de vinculação e pela leveza interna daquilo que é superior. GA6MAC I

O próprio Nietzsche   não se envergonha de tomar o querer simplesmente como sentimento: “Querer: um sentimento que compele, muito agradável! Ele é o epifenômeno de todo efluxo de força” (XIII, 159). Querer – um sentimento de prazer? “Prazer é apenas um sintoma do sentimento do poder alcançado, uma consciência da diferença – (- ele [o vivente] aspira ao prazer: mas o prazer entra em cena quando ele alcança isso a que aspira: o prazer acompanha, o prazer não mobiliza)” (688). De acordo com isso, a VONTADE é, então, apenas um “epifenômeno” do efluxo de força, um sentimento de prazer que acompanha? Como isso se coaduna com o que foi dito no todo sobre a essência da VONTADE, e, em particular, a partir da comparação com o afeto e com a paixão? Lá a VONTADE veio à tona como o que suporta e domina propriamente, como equivalente ao próprio assenhorear-se; agora ela precisa ser rebaixada ao nível de um sentimento de prazer que simplesmente acompanha algo diverso? GA6MAC I

No entanto, se a VONTADE é um querer-para-além-de-si, então reside nesse para-além-de-si-mesmo o fato de a VONTADE não se estender simplesmente para fora de si, mas se inserir concomitantemente no querer. O fato de aquele que quer querer se inserir em sua VONTADE significa: no querer torna-se manifesto o querer e, juntamente com ele, aquele que quer e aquilo que é querido. Na essência da VONTADE, na de-cisão, reside o fato de a VONTADE descerrar a si mesma. Portanto, ela não possui esse caráter apenas por meio de um comportamento que se lhe acrescenta, por meio de uma observação do processo da VONTADE e de uma reflexão quanto a isso, mas a VONTADE mesma tem muito mais o caráter do manter aberto que abre. Por mais penetrantes que sejam, uma auto-observação e uma autoanálise instauradas arbitrariamente nunca trazem à tona nosso si próprio e o modo como as coisas se encontram em relação a ele. Em contrapartida, trazemos nós mesmos à luz em meio ao querer e, correspondentemente, também em meio ao não querer; e, em verdade, trazemos nós mesmos a uma luz que é acesa pela primeira vez por meio do próprio querer. Querer é sempre um trazer-se-a-si-mesmo, e, com isso, um encontrar-se em meio ao para-fora-de-si, um manter-se no ímpeto para fora de algo e em direção a algo. Dessa forma, a VONTADE tem aquele caráter do sentimento, do manter aberto o estado mesmo. Junto ao querer – junto a essa dinâmica para-fora-de-si esse estado é um compelir. Com isso, a VONTADE pode ser tomada como um “sentimento que compele”. Ela não é apenas o sentimento de algo que compele. Ao contrário, ela mesma é algo que compele, e mesmo algo “muito agradável”. O que se abre na VONTADE – o querer mesmo como de-cisão – é agradável àquele para o qual ele se abre, é agradável para aquele mesmo que quer. No querer vamos ao encontro de nós mesmos como aqueles que propriamente somos. Somente na própria VONTADE capturamos a nós mesmos em nossa essência mais própria. Aquele que quer é como tal aquele que-quer-para-além-de-si; no querer sabemos que nós mesmos estamos voltados para fora de nós; nós sentimos de algum modo um ser senhor sobre…; um prazer dá a saber o poder que foi alcançado e que se eleva. Por isso, Nietzsche   fala de uma “consciência da diferença”. GA6MAC I

Pode-se denominar genericamente “idealista” aquele modo de consideração que visa às ideias. “Ideia” significa aí o mesmo que representação. Representar: trazer a uma visualização em sentido mais amplo: idein. Em que medida uma iluminação da essência da VONTADE pode ver na VONTADE um traço de representação? GA6MAC I

Se traduzirmos a palavra grega psyche por “alma”, então não poderemos pensar com esse termo nem o anímico no sentido de vivências, nem tampouco aquilo que sabemos estar na “consciência” do ego cogito, nem ainda o “inconsciente”. psyche visa em Aristóteles   ao princípio das criaturas viventes como tais, aquilo que faz com que um vivente seja um vivente e que o transpassa de maneira dominante em sua essência. O tratado citado discute a essência da vida e os estágios do vivente. O tratado não contém nenhuma psicologia, nem tampouco uma biologia. Ele é uma metafísica do vivente, à qual o homem também pertence. O vivente é um ente que movimenta a si mesmo. Movimento não visa, aqui, apenas à alteração de lugar, mas também a todo modo de comportamento e de autotransformação. O estágio mais elevado do vivente é o homem; a espécie fundamental de seu automovimento é o agir: praxis. Assim, surge a pergunta: qual é o fundamento determinante, a arche, do agir, isto é, do procedimento e da implantação refletidos? O determinante, nesse caso, é a aspiração representacional como tal, ou o aspirado? A aspiração representacional é determinada por meio da representação, ou por meio do desejo? Dito de outra maneira: a VONTADE é uma representação, ou seja, algo determinado por ideias, ou não? Se se ensina que a VONTADE é, em essência, um representar, então essa doutrina da VONTADE é “idealista”. GA6MAC I

Essa concepção da VONTADE tornou-se normativa para todo o pensamento ocidental, e é ainda hoje a concepção corrente. Na Idade Média, a voluntas é o appetitus intellectualis, ou seja, a orexis dianoetike, o desejo ao qual pertence uma representação consonante com o entendimento. Para Leibniz  , o agere, o agir, é ao [45] mesmo tempo a perceptio e o appetitus; perceptio é’idea, representação. Para Kant  , a VONTADE é aquela faculdade de desejar que atua segundo conceitos, isto é, de um modo tal que aquilo mesmo que é querido é aí determinante para a ação como algo representado em geral. Ainda que a representação venha a distinguir a VONTADE como faculdade de desejar em relação à mera tendência impulsiva cega, a representação não é considerada como o que propriamente movimenta e quer na VONTADE. Somente uma concepção da VONTADE que atribua, nesse sentido, à representação, é idea uma proeminência injustificada poderia ser designada como idealista. De fato, encontramos tais concepções. Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino   tende para uma interpretação da VONTADE assim erigida, apesar de a questão não estar decidida nele de maneira tão inequívoca. Visto no todo, os grandes pensadores nunca atribuíram à representação a primazia na concepção da VONTADE. GA6MAC I

Se se compreende por uma interpretação idealista da VONTADE toda e qualquer concepção que acentua em geral a representação, o pensamento, o saber, o conceito como essencialmente pertinente à VONTADE, então certamente a interpretação aristotélica da VONTADE é idealista. Do mesmo modo, são idealistas as concepções de Leibniz   e de Kant  ; e, então, também a concepção de Nietzsche  . É fácil apresentar uma prova para essa afirmação; só precisamos prosseguir na leitura imediatamente subsequente da passagem em que Nietzsche   diz que a VONTADE consiste em uma multiplicidade de sentimentos: “Assim como o sentir, e, em verdade, o sentir multifacetado, precisa ser reconhecido como um ingrediente da VONTADE, o pensamento também precisa ser reconhecido em um segundo momento: em todo ato de VONTADE há um pensamento que comanda. E não se deve acreditar na possibilidade de cindir esse pensamento do ‘querer’, como se a VONTADE então restasse!” (VII, 29). GA6MAC I

Em face desses claros enunciados nietzschianos, não se consegue ver o que poderia trazer uma rejeição da interpretação idealista de sua doutrina da VONTADE. Todavia, talvez se pense que a concepção nietzschiana da VONTADE não é aquela do idealismo alemão. No idealismo também, contudo, assume-se o conceito kantiano e aristotélico de VONTADE. Para Hegel  , saber e querer são o mesmo. Isso significa: o saber verdadeiro já é também agir, e o agir só é no saber. Schelling   chega mesmo a dizer: o que quer propriamente na VONTADE é o entendimento. Não se está diante de um idealismo inequívoco quando se tende a compreender por isso [46] uma recondução da VONTADE à representação? No entanto, Schelling   não quer outra coisa em meio a essa construção linguística extravagante senão acentuar o que Nietzsche   traz à tona na VONTADE quando diz: a VONTADE é um comando; pois quando Schelling   diz “entendimento” e o idealismo alemão fala em saber, o que se tem em vista não é a faculdade da representação, como imagina a psicologia, ou seja, não é nenhum comportamento que apenas acompanharia contemplativamente os outros processos da vida psíquica. Saber significa: abertura para o ser que é um querer – na linguagem de Nietzsche  , um “afeto”. Nietzsche   mesmo diz: “Querer é comandar: porém, comandar é um determinado afeto (esse afeto é uma repentina explosão de força) – tenso, claro, visar exclusivamente a uma coisa, a convicção mais íntima possível de sua superioridade, certeza de que é obedecido.” Ter em vista claramente uma única coisa, estar tensamente ligado a ela, tê-la exclusivamente em vista: o que seria isso senão manter uma coisa – no sentido mais estrito da palavra – diante de si, re-presentá-la; entendimento, contudo, diz Kant  , é a faculdade da representação. GA6MAC I

Nenhuma caracterização da VONTADE é mais frequente em Nietzsche   do que a que acaba de ser citada: querer é comandar; na VONTADE reside o pensamento que comanda; nenhuma outra concepção da VONTADE, contudo, acentua mais decididamente do que essa também a essencialidade do saber e da representação na VONTADE. GA6MAC I

Podemos agora – parece mesmo que precisamos – reunir a série de determinações da essência da VONTADE trazidas paulatinamente à tona e agrupá-las em uma única definição: VONTADE como o assenhoreamento sobre… que se estende para além de si, VONTADE como afeto (o acometimento excitante), VONTADE como paixão (o arrebatamento expansivo em direção à amplitude do ente), VONTADE como sentimento (disposição para ater-se-a-si-mesmo) e VONTADE como comando. Com algum esforço poder-se-ia certamente conseguir produzir uma “definição” mais limpa segundo a forma, que juntasse tudo o que foi apresentado. Não obstante, abdicaremos de um tal empreendimento. Não como se não déssemos valor algum aos conceitos rigorosos e inequívocos. Nós os buscamos muito mais! GA6MAC I

O conhecer e o saber não se reduzem à mera familiaridade com conceitos, mas apontam muito mais para uma concepção do que no conceito mesmo é retido; conceber o ser, isto é, permanecer exposto ao acometimento do ser, isto é, à pre-sença. Se levarmos em conta o que a palavra “VONTADE” deve denominar – a essência do ente mesmo –, então se torna compreensível o quão impotente precisa permanecer uma palavra tão isolada, mesmo se lhe é dada simultaneamente uma definição. É por isso que Nietzsche   pode dizer: “VONTADE – eis aí uma suposição que não me explica mais nada. Para aquele que sabe, não há nenhuma VONTADE” (XII, 303). Não podemos concluir a partir de tais sentenças que todo empenho por apreender a essência da VONTADE é sem perspectivas e iníquo, nem que é também indiferente e mesmo uma questão de mero arbítrio que palavras e que conceitos usamos para falar da “VONTADE”. Ao contrário, precisamos perguntar antes de tudo e constantemente a partir da coisa mesma. Somente assim chegaremos ao conceito e ao uso correto da palavra. GA6MAC I

Abstraindo-se do fato de o termo “poder” significar para Nietzsche   o mesmo que VONTADE, a essência do poder é tão confusa quanto a essência da VONTADE. Para a elucidação desse estado de fato, poderiamos proceder de maneira similar à que empreendemos junto à introdução das determinações particulares da VONTADE dadas por Nietzsche  . Agora, porém, gostaríamos de enfatizar apenas dois momentos relativos à essência do poder. GA6MAC I

Nietzsche   equipara, frequentemente, poder e força, sem que essa noção de força seja determinada de maneira mais próxima. Força, a capacidade reunida em si e pronta para atuação, o estar em condições de…, é o que os gregos, antes [51] de tudo Aristóteles  , designam como dynamis. Contudo, o poder é igualmente o ser-poderoso no sentido da realização do domínio, o estar-em-obra da força, ou, em termos gregos: energeia. Poder é VONTADE como querer-para-além-de-si. Precisamente dessa forma, porém, ela se mostra como o chegar-a-si-mesmo, encontrar-se e afirmar-se na simplicidade fechada da essência, em termos gregos: entelecheia. Para Nietzsche  , poder significa tudo isso ao mesmo tempo: dynamis, energeia, entelecheia. GA6MAC I

Assim, este mundo e esta vida são negados, e se, aparentemente, se diz sim a ela, então isso só acontece para negá-la, por fim, de maneira tanto mais decidida. Nietzsche  , porém, diz: aquele “mundo verdadeiro” da moral é um mundo mendaz; aquele mundo verdadeiro, o suprassensível, é o erro. O mundo sensível, ou, falando em termos platônicos, o mundo aparente e errôneo, em uma palavra, o erro é o mundo verdadeiro. Todavia, o elemento da arte é o sensível: a aparência sensível. Dessa forma, a arte afirma precisamente o que a instauração do mundo supostamente verdadeiro nega. E é por isso que Nietzsche   afirma (n. 853, II): “A arte como o único antídoto superior contra toda e qualquer VONTADE de negação da vida, como o elemento anticristão, antibudista, antiniilista por excelência.” GA6MAC I

Na arte decide-se o que é a verdade; e isso sempre significa para Nietzsche   o seguinte: o que é o verdadeiro, ou seja, o que é o ente propriamente dito. Isso corresponde àquela conexão necessária entre a pergunta diretriz e a pergunta fundamental da filosofia, por um lado, e a pergunta sobre o que é a verdade, por outro. A arte é a VONTADE de aparência como VONTADE de sensível. No entanto, Nietzsche   diz dessa VONTADE (XIV, 369): “A VONTADE de aparência, de ilusão, de engano, de devir e de mudança é mais profunda, ‘mais metafísica do que a VONTADE de verdade, de realidade, de ser.” GA6MAC I

O que se tem em vista aqui é o verdadeiro no sentido de Platão  , o que é em si, as ideias, o suprassensível. Para Nietzsche  , em contrapartida, a VONTADE do mundo sensível e de sua riqueza é a VONTADE do que a “metafísica” busca. Portanto, a VONTADE de sensível é metafísica. Essa VONTADE metafísica é realmente efetiva na arte. Nietzsche   diz (XIV, 368): “Percebí realmente muito cedo a seriedade da relação entre arte e verdade; e ainda agora experimento um horror sagrado diante dessa dissensão. Meu primeiro livro foi dedicado a ela; O nascimento da tragédia acredita na arte sob o pano de fundo de uma outra crença: a de que não é possível viver com a verdade: a de que a própria ‘VONTADE de verdade’ já é um sintoma de degradação…” sentença soa monstruosa! Todavia, ainda que não perca o seu peso, ela perde a sua estranheza logo que é lida da forma correta. VONTADE de verdade significa aqui e sempre em Nietzsche   o seguinte: a VONTADE do “mundo verdadeiro” [60] no sentido de Platão   e do cristianismo, a VONTADE do suprassensível, do que é em si. A VONTADE de um tal “ser verdadeiro” é, com efeito, um dizer não ao nosso mundo aqui, ao mundo justamente no qual a arte está em sua terra natal. Já que esse mundo é o propriamente real e o único verdadeiro, Nietzsche   pode esclarecer quanto à relação entre arte e verdade: “que a arte tem mais valor do que a verdade” (n. 853; IV); isso significa: o sensível encontra-se em uma posição mais elevada e é mais próprio do que o suprassensível. Por isso, Nietzsche   diz: “Nós temos a arte para não irmos ao fundo (para não perecermos) com a verdade” (n. 822). Verdade visa uma vez mais ao “mundo verdadeiro” em sua ligação com o suprassensível; ela abriga em si um risco de perecimento da vida, o que sempre significa no sentido de Nietzsche  : de perecimento da vida ascendente. O suprassensível arranca a vida à sensibilidade poderosa, subtrai dela as suas forças e a enfraquece. Em vista do suprassensível, a autossubjugação, a capitulação e a compaixão, o ser humilde e o permanecer rebaixado transformam-se na própria “virtude”. “Os tolos desse mundo”, os homens abjetos e os desfavorecidos de toda sorte tornam-se “as crianças de Deus”; eles são aqueles que agora verdadeiramente são; os que se encontram na mais baixa posição social são aqueles que pertencem ao “alto” e devem dizer o que é a altura, isto é, o que é a sua altura. Toda elevação criadora e todo orgulho da vida que repousa sobre si mesma são, em contrapartida, insurreição, cegueira e pecado. Mas, para que nós não pereçamos dessa “verdade” do suprassensível, para que a vida não seja lançada ao encontro do enfraquecimento geral e, por fim, do declínio por meio do suprassensível, para tanto temos a arte. No que concerne à relação essencial entre arte e verdade, resulta daí uma outra proposição sobre a arte, uma proposição derradeira em nossa sequência: 5. A arte tem mais valor do que “a verdade”. GA6MAC I

“Para a psicologia da arte 1. A embriaguez como pressuposto: causas da embriaguez. 2. Sintomas típicos da embriaguez. 3. O sentimento de força e de plenitude na embriaguez: seu efeito idealizante. 4. O acréscimo factual de força: seu embelezamento factual. (O acréscimo de força, por exemplo, em meio à dança dos sexos.) O patológico na embriaguez; o perigo [76] fisiológico da arte. – Ponderação: em que medida nosso valor ‘belo’ é completamente antropocêntrico: em que medida ele se perfaz em vista de pressupostos biológicos quanto a crescimento e progresso. 5. O apolíneo, o dionisíaco: tipos fundamentais. Em termos mais abrangentes, comparados com nossas artes especializadas. 6. Pergunta: a que pertence a arquitetura? 7. O trabalho conjunto das capacidades artísticas na vida normal, seu exercício tônico: inversamente o feio. 8. A pergunta sobre epidemia e contagiosidade. 9. Problema da ‘saúde’ e da ‘histeria’: gênio = neurose. 10. A arte como sugestão, como meio de comunicação, como âmbito de invenção da induction psycho-motrice. 11. Os estados não artísticos: objetividade, furor do espelhamento, neutralidade. A VONTADE empobrecida; perda de capital. 12. Os estados não artísticos: abstratividade. Os sentidos empobrecidos. 13. Os estados não artísticos: consumação, empobrecimento, esvaziamento – VONTADE de nada (cristão, budista, niilista). O corpo empobrecido. 14. Os estados não artísticos: idiossincrasia moral. O temor dos fracos, dos medianos em relação aos sentidos, ao poder, à embriaguez (instinto daqueles a que a vida subjugou). 15. Como a arte trágica é possível? 16. O tipo romântico: ambíguo. Sua consequência é o ‘naturalismo’. 17. Problema do ator: A ‘insinceridade’, a típica força de transformação como falta de caráter… A falta de vergonha, o arlequim, o sátito, o bufão, o Gil Blas, o ator que desempenha o papel de artista…”. GA6MAC I

De maneira correspondente, a requisição por ser e a VONTADE de eternização podem advir da posse da plenitude, da gratidão em relação ao que é; ou, contudo, o que perdura e é obrigatório pode ser erigido como lei e como elemento de coerção a partir da tirania de uma VONTADE que gostaria de se livrar de seu mais próprio sofrimento. Por isso, essa VONTADE inflige esse sofrimento a todas as coisas e se vinga, assim, delas. Tal modo de ser é característico da arte de Richard Wagner, do “pessimismo romântico”. Em contrapartida, onde o elemento selvagem e exuberante é trazido para o interior da ordem da lei autocriadora, aí se faz presente a arte clássica. Desse modo, ela não se deixa tomar simplesmente como o ativo; pois o puramente dionisíaco também é ativo. O clássico tampouco é do mesmo modo apenas a requisição por ser e por subsistência; o mesmo desejo também anima o pessimismo romântico. O clássico é uma requisição por ser a partir da plenitude do que doa e diz sim. Com isso, dá-se novamente uma indicação para o grande estilo. GA6MAC I

Na medida em que a linguagem como significação ressonante nos enraiza, porém, fundamentalmente em nossa terra, e nos transpõe e articula com o nosso mundo, a meditação sobre a linguagem e sua força histórica é sempre a ação configuradora da existência mesma. A VONTADE de originalidade, de rigor e de medida da palavra não é, por isso, nenhuma jogatina estética, mas o trabalho no cerne essencial de nossa existência como uma existência histórica. GA6MAC I

[131] Em meio a essa inversão do platonismo, que é evocada e dirigida pela VONTADE de superação do niilismo, é mantida como autoevidente uma convicção comum ao platonismo: a convicção de que a verdade, isto é, o verdadeiramente ente, precisa ser assegurado sobre o caminho do conhecimento. Na medida em que, de acordo com a inversão, o sensível é agora o verdadeiro e deve fornecer como aquilo que é o âmbito fundamental para a refundação da existência, a pergunta sobre o sensível e, com isso, a fixação do verdadeiro e da verdade alcançam uma significação elevada. GA6MAC I

Sem perder de vista nossa questão, perseguiremos com toda a brevidade essa história para que possamos perceber como Nietzsche   conservou, apesar de sua VONTADE de subversão, um claro conhecimento do que tinha acontecido antes dele. GA6MAC I

“Não é possível viver com a verdade” se a vida é sempre elevação vital. A “VONTADE de verdade”, isto é, a VONTADE de uma aparição firmemente estabelecida “já é um sintoma de degeneração” (XIV, 368). Agora fica claro o que diz a proposição conclusiva das cinco proposições diretrizes sobre a arte: a arte é mais valorosa do que a verdade. GA6MAC I

Todavia, porquanto a aparência ainda retém, para Nietzsche  , como aparência perspectivística o caráter do irreal, da ilusão, do engano, ele precisa dizer: “A VONTADE de aparência, de ilusão, de engano, de devir e mudança é mais profunda, mais ‘metafísica’ (isto é, ela corresponde mais à essência do ser) do que a VONTADE de verdade, de realidade, de ser” (XIV, 369). GA6MAC I

Verdade e arte são igualmente necessárias para a realidade. Como coisas igualmente necessárias, elas se encontram em meio à divisão. No entanto, essa relação só provoca horror quando levamos em conta que a criação, isto é, a atividade metafísica como arte, ainda guarda uma outra necessidade no instante em que se reconhece o fato do maior acontecimento de todos: a morte do deus moral. Para Nietzsche  , a existência só consegue resistir agora em meio à criação. Somente a transposição da realidade para o interior do poder de sua lei e de suas supremas possibilidades concede ainda o ser. Como arte, contudo, o criar é VONTADE de aparência, ele se acha cindido em relação à verdade. GA6MAC I

A sentença quer dizer: a partir da essência do ser, a arte precisa ser concebida como o acontecimento fundamental do ente, como o que é propriamente criador. No entanto, a arte assim concebida oferece o campo de visão no interior do qual pode ser julgado como estão as coisas em relação à “verdade”, e em que relação se encontram arte e verdade. A sentença não fala nem de uma mistura do artístico com o “funcionamento da ciência” ou mesmo de uma reabilitação estética do conhecimento, nem tem em vista que a arte precisa transcorrer por trás da vida e ser útil a ela, uma vez mesmo que somente a arte, o grande estilo, deve se tornar a legislação propriamente dita para o ser do ente. A sentença exige o saber sobre o acontecimento do niilismo, um saber que, para Nietzsche  , inclui ao mesmo tempo a VONTADE de sua superação, e, com efeito, o fundar e o questionar originários. GA6MAC I

Foi na paisagem de Oberengadin, uma paisagem que Nietzsche   conheceu pela primeira vez nesse verão de 1881 e que ele experimentou ao mesmo tempo como uma dádiva de sua vida; foi nessa paisagem, que se tornou a partir de então um de seus postos principais de trabalho, que a ideia do eterno retorno veio até ele. (Quem não conhece essa paisagem, pode vê-la descrita em C. F. Meyer no começo de seu Jurg Jenatsch.) A ideia do eterno retorno não foi descoberta ou alcançada por meio do cálculo a partir de outras proposições: ela lhe adveio. No entanto, ela só adveio porque, como toda grande ideia – sem que se percebesse –, estava sendo preparada e suportada por meio de grandes trabalhos. O que Nietzsche   chama aqui uma “ideia” é – tomado provisoriamente – um projeto do ente na totalidade em vista do modo como o ente é o que ele é. Tal projeto abre o ente de tal modo que, por meio daí, todas as coisas alteram sua face e seu peso. Pensar verdadeiramente uma ideia essencial desse tipo significa: imiscuir-se na nova claridade que a ideia abre, ver todas as coisas em sua luz e se encontrar já com toda VONTADE de todas as decisões aí inseridas. Certamente estamos habituados a tomar essas ideias por “meras” ideias, por algo irreal e inefetivo. Em verdade, essa ideia do eterno retorno do mesmo significa um abalo do ser como um todo. O âmbito de visão no qual o pensador insere o seu olhar não é mais o horizonte de suas “vivências pessoais”; ele é qualquer outra coisa do que ele mesmo, algo que se passa como que por debaixo dele e para além dele, mas que, não obstante, está incessantemente aí, algo que não lhe pertence mais, que não pertence mais ao pensador, mas que ele não pode senão devotar a si mesmo. Não contradiz esse acontecimento o fato de o pensador preservar de início, e mesmo por muito tempo, o conhecimento como o seu conhecimento porque ele precisa se tornar os sítios de seu desdobramento. É daí que provém o fato de Nietzsche   quase não falar inicialmente, e mesmo para seus poucos amigos só falar por meio de alusões, de seu conhecimento do “eterno retorno do mesmo”. Assim, ele escreve, em 14 de agosto de 1881, de Sils-Maria, para seu amigo e assistente Peter Gast: “Pois bem, meu amado e bom amigo! O sol de agosto está sobre nós, o ano está se retraindo, ele está ficando aos poucos mais calmo e mais pacífico nas montanhas e nos bosques. Surgiram ideias em meu horizonte, ideias como ainda não tinha visto – não [184] quero tornar nada disso manifesto agora e almejo me manter em uma tranquilidade inabalável. Com certeza precisarei viver ainda alguns anos!” GA6MAC II

No entanto, cometeríamos um erro grosseiro se quiséssemos definir essa representação diretriz do pensamento nietzschiano, essa representação do mundo como caos, por meio de chavões baratos como “naturalismo” e “materialismo”, ou se pensássemos mesmo que essas denominações esclarecem essa representação de uma vez por todas. A “matéria” (isto é, a recondução de tudo à matéria-prima) é tanto um erro quanto “o deus dos eleatas” (isto é, a recondução de tudo ao que não possui o caráter da matéria-prima). Em termos principiais, é preciso dizer da representação nietzschiana do caos o seguinte: só um pensamento dotado de baixa capacidade respiratória deduzirá a partir da leitura dessa VONTADE de desdivinização do ente a VONTADE de ateização. Em contrapartida, o pensamento verdadeiramente metafísico, na desdivinização mais extrema, que não se permite mais esconderijo algum e não se deixa enlevar por uma atmosfera nebulosa, é capaz de descobrir um caminho sobre o qual unicamente os deuses vêm ao encontro – se é que eles ainda podem efetivamente vir ao encontro uma vez mais na história do homem. GA6MAC II

Junto à interpretação do mundo no sentido do pensamento do eterno retorno do mesmo mostra-se então o fato de que uma relação com o homem se anuncia no momento em que a essência da eternidade é apreendida como meio-dia e instante. [255] Aqui, aquele círculo desempenha o seu papel, na medida em que exige que pensemos o homem a partir do mundo e o mundo a partir do homem. Isso poderia significar que o pensamento do eterno retorno do mesmo, em verdade, porta em si a aparência mais elevada da extrema humanização, mas é e busca ser o contrário de tal humanização. Além disso, poder-se-ia esclarecer por meio daí o fato de, em função da VONTADE de desumanização, Nietzsche   ser impelido da interpretação do mundo para o cerne da VONTADE da mais elevada humanização. Assim, perceberiamos que essas duas coisas não se excluem, mas se requisitam mutuamente. Todavia, isso significaria dizer que a doutrina nietzschiana do eterno retorno não pode ser mensurada com padrões de medida quaisquer, mas apenas a partir de sua própria lei. Isso exigiria que meditássemos, antes de mais nada, sobre o tipo de requisição por prova e de força comprovatória na qual se enquadram as provas nietzschianas para a doutrina do eterno retorno. Tudo isso não seria apenas assim, mas é de fato assim. GA6MAC II

Ou bem se toma a eliminação de toda humanização por possível, e então é preciso que haja algo assim como o ponto de vista da liberdade de pontos de vista, ou bem o homem é reconhecido em sua essência como um ente que se acha preso a um canto, e então é preciso que rejeitemos uma concepção não humanizante da totalidade do mundo. Qual é a decisão de Nietzsche   ante essa disjunção? Antes de mais nada, é muito difícil imaginar que ela tenha passado desapercebida por ele, uma [266] vez que ele mesmo ajudou em parte a desenvolvê-la. Ele se decidiu em verdade pelas duas, tanto pela VONTADE de desumanização do ente na totalidade quanto pela VONTADE de levar a sério o fato de o homem estar preso a um canto. Nietzsche   se decide pela fusão das duas VONTADEs. Ele exige a mais extrema humanização do ente e a mais extrema naturalização do homem, as duas coisas ao mesmo tempo. Somente quem adentrar o cerne dessa VONTADE pensante de Nietzsche   terá alguma ideia de sua filosofia. Mas se essa é a questão, então é completamente decisivo saber que canto é esse a partir do qual o homem vê e desde onde o canto se determina em seu lugar. Torna-se simultaneamente decisivo saber o quão amplamente o horizonte da desumanização possível do ente na totalidade é colocado. Por fim, torna-se totalmente decisivo saber se e como aquela visão do ente na totalidade contribui normativamente para a determinação locativa do canto no qual o homem se encontra – e, em verdade, se encontra necessariamente. GA6MAC II

“O maior pensamento é o que atua da maneira mais lenta e demorada! Seu efeito mais imediato é um substitutivo para a crença na imortalidade: será que ele aumenta a boa VONTADE de viver? / Talvez ele não seja verdadeiro: – que outros venham combatê-lo!” (VII, 398; 1883). A partir da última observação, poder-se-ia concluir: o próprio Nietzsche   duvidou da verdade do pensamento. Ele mesmo não o levou a sério, mas apenas jogou com uma possibilidade. Essa conclusão não surge senão de uma reflexão muito extrínseca. Nietzsche   certamente duvidou desse pensamento tanto quanto de todo pensamento essencial, pois esse gesto era constitutivo do estilo de seu pensar. No entanto, não se deve deduzir daí o seguinte: portanto, ele não levou a sério o próprio pensamento. O que precisamos dizer aqui é muito mais o contrário: portanto, ele levou a sério o pensamento, conduzindo-o sempre uma vez mais por meio de seu questionamento, colocando-o à prova e assim se dispondo para o seu próprio pensar, alcançando, por fim, o conhecimento de que o essencial do que há aqui para ser pensado é a possibilidade. Aquele “talvez ele não seja verdadeiro” denomina de maneira suficientemente clara esse caráter de possibilidade. Nietzsche   só conhece pensamentos que precisam ser combatidos. Com isso, sempre permanece uma outra questão: saber se ele permaneceu o senhor e o vencedor do pensamento ou se precisou primeiro colocar outros em combate com ele. GA6MAC II

O que é dito com isso? Nada menos do que: a verdade mesma é uma “ilusão” – uma miragem. Pois somente nesse caso a veneração da verdade pode ser a consequência de uma “ilusão”. Se uma VONTADE de verdade é, contudo, vital para a nossa “vida”, e se, porém, vida significa elevação da vida, uma “realização” cada vez mais elevada da vida e, com isso, uma vitalização do real, então a verdade se transforma, se ela é apenas “ilusão”, “imaginação”, ou seja, algo irreal, em desrealização, em obstáculo, em suma, em aniquilação da vida. Dessa forma, a verdade não é nenhuma condição da vida, nenhum valor, mas um não valor. GA6MAC III

Mas o que acontece então quando todas as barreiras entre a verdade e a não verdade são derrubadas e tudo passa a vigorar na mesma medida, isto é, tudo se torna igualmente nulo? Nesse caso, o niilismo se torna realidade. Ora, Nietzsche   quer o niilismo ou quer conhecê-lo como tal e superá-lo? Ele quer a superação do niilismo. Por conseguinte, caso a VONTADE de verdade deva pertencer à vida, a verdade certamente não pode, uma vez que a sua essência permanece uma ilusão: ser o valor supremo. Precisa haver um valor, uma condição de elevação perspectivística da vida, que tenha mais valor do que a verdade. GA6MAC III

[386] Contra o verdadeiro, ou seja, contra o que está assegurado, já perfeito e fixado, e, nesse sentido, contra o ente, Nietzsche   estabelece o que vem a ser. Ante o “ser”, Nietzsche   estabelece como valor mais elevado o “devir” (cf. n. 708). Não deduzimos daí inicialmente senão o seguinte: a verdade não é o valor supremo. “Transformar a crença em que ‘as coisas são desta e daquela forma na VONTADE de que elas ‘devam vir a ser desta e daquela forma” (n. 593; 1885-1886). A verdade como um tomar-por-verdadeiro, o comprometer-se com um “as coisas são assim” definitivamente fixado e perfeito não pode ser o que há de mais elevado na vida porque isso nega a vitalidade da vida, o seu querer-para-além-de-si e o seu devir. Conceder à vida a sua vitalidade, o fato de que ela é algo que vem a ser, que vem a ser como devir e que não é meramente como ente, isto é, o fato de que ela não se acha firmemente presente como um ente por si subsistente fixo: é em direção a esse ponto que se remete evidentemente a instauração de valores que fornece o critério para que a verdade possa se mostrar como um valor degradado. GA6MAC III

Nietzsche   compreende aqui por “sentido” (cf. §§ 1 e 4) o mesmo que “meta”. E por meta temos em vista o “para-quê” e a “causa pela qual” se dão todo agir, todo comportamento e todo acontecimento. Nietzsche   enumera aquilo que o “sentido” buscado poderia ter sido, isto é, aquilo que, pensando historicamente, ele foi de maneira essencial, e, em modulações dignas de nota, ainda é: “a ordem ética do mundo”; “o acréscimo do amor e a harmonia no trânsito dos seres”, o pacifismo, a paz perpétua; “a aproximação de um estado de felicidade universal”, tal como a felicidade mais elevada possível do maior número possível; “ou mesmo a partida em direção a um estado de nada universal” – pois mesmo essa partida em direção a esse fito tem ainda um “sentido”: “um fito é sempre ainda um sentido”. Por quê? Porque ele possui uma meta, porque ele mesmo é a meta. O nada é um fito? Com certeza, pois querer o não querer ainda permite à VONTADE continuar querendo. A VONTADE de destruição é sempre ainda uma VONTADE. E na medida em que o querer é um querer-a-si-próprio, mesmo a VONTADE de nada permite ainda à VONTADE continuar sendo ela mesma – a VONTADE. GA6MAC V

O que acontece aqui? O niilismo não é manifestamente nenhuma mera decadência furtiva dos valores em algum lugar subsistentes em si. Ele é uma destituição dos valores por meio de nós que dispomos de seu posicionamento. Todavia, Nietzsche   tem em vista com o “nós” o homem da história ocidental. Ele não quer dizer que os mesmos homens que inseriram os valores também são aqueles que os retiraram uma vez mais, mas que aqueles que inserem e retiram são os homens da mesma e única história do Ocidente. Nós mesmos, os homens atuais de seu tempo, estamos entre aqueles que retiraram uma vez mais aqueles valores outrora inseridos. A destituição dos valores supremos até aqui não emerge de uma mera busca de uma destruição cega e de uma vã renovação. Ela emerge de uma penúria e de uma necessidade de dar ao mundo o sentido que não o degrada a uma mera passagem para um além. É preciso surgir um mundo que torne possível aquele homem que desdobra a sua essência a partir de sua própria plenitude valorativa. Para tanto, contudo, carece-se de uma transição, da travessia de uma conjuntura na qual o mundo parece desprovido de valor, mas que exige ao mesmo tempo um novo valor. A travessia do estado intermediário precisa perceber esse estado como tal da maneira mais consciente possível: para isso é necessário reconhecer a proveniência desse estado intermediário e trazer à luz a causa primeira do niilismo. É somente a partir dessa consciência do estado intermediário que emerge a VONTADE decisiva de sua superação. GA6MAC V

Esse elemento possível não é nem o elemento desprovido de contradição que é próprio à lógica, nem aquilo que é realizável na prática, mas o reluzir daquilo que ainda não foi ousado, nem se encontra ainda presente. Aquilo que é posto na abertura transfiguradora possui o caráter da aparência. Essa palavra precisa ser retida em sua ambiguidade essencial: aparência no sentido do brilhar e do aparecer (o sol brilha e aparece) e aparência segundo o modo de ser do mero parecer-de-um-tal-modo (o arbusto no caminho noturno parece ser um homem e, contudo, é apenas um arbusto). No primeiro caso, temos a aparência como reluzência (Aufschein); no segundo, como semblância (Anschein). Todavia, como mesmo a aparência transfiguradora fixa e dota o ente na totalidade a cada vez de constância em seu devir com vistas a determinadas possibilidades, ele permanece ao mesmo tempo uma aparência que não é apropriada para aquilo que vem a ser. Assim, mesmo a essência da arte enquanto a VONTADE de aparência reluzente também revela a conexão com a essência da verdade, na medida em que a verdade é concebida como o erro necessário ao asseguramento da consistência, isto é, como mera aparência. GA6MAC VI

A objetivação de todo ente enquanto tal a partir do levante do homem em direção ao querer-se exclusivo de sua VONTADE é a essência histórico-ontológica do processo, por meio do qual o homem erige a sua essência na subjetividade. De acordo com essa subjetividade, o homem e aquilo que ele representa como o mundo se instituem no interior da relação sujeito-objeto sustentada pela subjetividade. Toda transcendência, seja ela a transcendência ontológica, seja ela a transcendência teológica, é representada relativamente com vistas à ligação sujeito-objeto. Por meio do levante em direção ao cerne da subjetividade, mesmo a transcendência teológica e, com isso, o maximamente ente do ente se voltam para uma espécie de objetividade, a saber, para aquele tipo de objetividade próprio à subjetividade da crença prático-moral. Quer o homem leve a sério essa transcendência como a “providência” para a sua subjetividade religiosa, quer ele a tome apenas como o subterfúgio para a VONTADE de sua subjetividade egoísta, nada se altera na essência dessa posição metafísica fundamental da essência humana. GA6MAC VIII

A VONTADE de superar o niilismo desconhece a si mesma porque exclui a si mesma da manifestabilidade da essência do niilismo como a história da permanência de fora do ser, sem que possa saber algo sobre essa exclusão. O desconhecimento da impossibilidade essencial de, no interior da metafísica, mesmo que seja por meio de sua inversão, superar o niilismo poderia chegar a um tal ponto que se tomaria imediatamente a negação dessa possibilidade como um dizer sim ao niilismo ou, de qualquer modo, como uma indiferença, que observa o transcurso da degradação niilista, sem interferir. GA6MAC VIII

Pois, com a metafísica da subjetividade que se consuma e que corresponde à mais extrema retração da verdade do ser, porquanto a encobre até a irreconhecibilidade, começa a época da objetivação incondicionada e completa de tudo o que é. Na objetivação, o próprio homem e tudo o que é humano se transformam em um mero fundo de reserva que, computado psicologicamente, é inserido no processo de trabalho da VONTADE de VONTADE, por mais que os indivíduos ainda possam se arrogar aí como livres e por mais que outros indivíduos possam interpretar esse processo como um processo puramente mecânico. Nos dois casos desconhece-se a essência histórico-ontológica velada, isto é, a essência niilista que, expressa incessantemente na linguagem da metafísica, permanece algo espiritual. O fato de, no processo de objetivação incondicionada do ente enquanto tal, a humanidade, transformada em material humano, se ver assimilada à matéria-prima bruta e ao material não repousa em uma preferência pela matéria-prima e pela força ante o espírito humano. Ao contrário, ele se funda no incondicionado da própria objetivação, que precisa se apossar de todos os fundos de reserva, sem levar em conta de que tipo eles são, e se assegurar dessa posse. GA6MAC VIII

[785] A princípio, o sistema, pensado como unidade ordenadora de um saber, só aparece como a imagem diretriz da apresentação de tudo aquilo que é passível de ser sabido em sua conjunção. No entanto, como o ser mesmo enquanto realidade efetiva é VONTADE e como a VONTADE é a unificação que aspira a si mesma da unidade do todo, o sistema não é um esquema ordenador que um pensador tem na cabeça e que ele só apresenta a cada vez de maneira imperfeita e sempre de um modo algo unilateral. O sistema, a systasis, é a composição essencial da realidade efetiva do efetivamente real – com certeza, somente quando a realidade efetiva se encontra em sua essência como VONTADE. Isso acontece quando a verdade se torna certeza, que evoca a partir da essência do ser o traço fundamental do asseguramento universal da conjunção em um fundamento que assegura a si mesmo. GA6MAC VIII

1. Em meio à transformação da essência da verdade como veritas para certitudo está previamente delineado o ser como re-presentidade do que se re-pre-senta. A essência da subiectidade desdobra-se aí. O nome mais simples para a determinação que vai aqui se preparando da entidade do ente é VONTADE, VONTADE enquanto querer-se. GA6MAC IX

2. Na consistência assim concebida da essência da VONTADE reside a necessidade do sistema como a necessidade da constituição da subiectidade, do ser enquanto a entidade do ente. GA6MAC IX

VONTADE – como um obter-se que aspira a si mesmo segundo (de acordo com) uma re-presentação de si mesmo (a VONTADE de VONTADE). GA6MAC IX

A VONTADE se arranca e se projeta para o cerne da verdade enquanto certeza, ela é levada à origem por essa essência da verdade. VONTADE é a atuação que se leva adiante segundo aquilo que é re-presentado. Arrancar-se e projetar-se para o cerne da certeza a partir do desconhecimento da essência da verdade; esse desconhecimento é o não saber mais profundo. A VONTADE (como traço essencial e fundamental da entidade) possui a sua origem essencial na ignorância essencial em relação à essência da verdade enquanto a verdade do ser. Por isso, a metafísica permanece a verdade do ser do ente no sentido da realidade efetiva enquanto VONTADE. Essa ignorância torna-se dominante, contudo, sob a figura do cálculo de tudo, um cálculo que é próprio à certeza. GA6MAC IX

O essencial nisso é o re-flexivo e nisso o “eu”, “nós”, “si mesmo” a auto-a-presentação e a autoprodução a VONTADE de asseguramento no apoderamento de tudo o essencial é o “eu me quero”. GA6MAC IX

[797] No que concerne à verdade do ente (enquanto entidade), a “consciência” (enquanto VONTADE de VONTADE) precisa ser experimentada como acontecimento apropriativo do ser. Abandono. GA6MAC IX

O fato de a realidade efetiva adentrar a essência da VONTADE pela última vez na consumação da metafísica, apesar de a “VONTADE” não poder ser pensada aí “psicologicamente”, mas de ser inversamente a psicologia que precisa ser determinada pela essência da conquista de si, anuncia a decisão do desdobramento essencial da entidade a partir do curso contínuo do ser rumo a essa entidade. O prosseguimento inicial deixa certamente para trás o início como algo infundado e, por isso, só pode colocar todo o peso em erigir-se como o progresso e como um ir além. GA6MAC IX

[804] Schelling  : “Querer é o ser originário”. Todo ser é existir: existência. Mas existência é existência do fundamento. Ao ser pertence existência e fundamento de existência. Ao ser pertence essa subdivisão enquanto “real”. O ser mesmo é de tal modo que o ente enquanto tal se distingue. Essa distinção reside na essência do querer. A distinção: VONTADE do fundamento e VONTADE do entendimento. Em que medida? A VONTADE na VONTADE é entendimento. A “distinção” schellingiana visa a uma contraposição (luta) que atravessa, articula e vige em todos os seres (entes em suas entidades); e isso tudo sempre sobre a base da subjetividade. Ser originário – é VONTADE. O ser (ainda não um-ser-ente) é fechamento. O ente (substantivamente, verbal-transitivamente): o mesmo. Ser-em-si. GA6MAC IX