O tempo dos “sistemas” passou. O tempo da construção da figura essencial do ente a partir da verdade do seer ainda não chegou. Entrementes, a filosofia precisa ter empreendido algo essencial em meio à transição para o outro início: o projeto, isto é, a abertura fundante do campo de jogo tempo-espacial da verdade do seer. Como podemos realizar essa tarefa única? Permanecemos aqui sem precursores e sem uma base de sustentação. Meras variações do que se teve até aqui, por mais que aconteçam com a ajuda das maiores misturas possíveis de modos de pensar historicamente conhecidos, não nos fazem sair do lugar. E todo e qualquer tipo de escolástica de VISÕES DE MUNDO se encontra completamente fora da filosofia porque só podem persistir sobre a base da negação da dignidade de questão do seer. A filosofia tem a sua própria dignidade não dedutível e incalculável na dignificação do que é digno de questão. Todas as decisões sobre seu agir são tomadas a partir da preservação dessa dignidade e enquanto preservações dessa dignidade. No entanto, no reino do que há de mais digno de questão, o agir só pode ser um questionar único. Se em algum de seus tempos encobertos a filosofia tem de se decidir, com a clareza de seu saber, por sua essência, então isso tem de se dar na transição para o outro início. (tr. Casanova; GA65: 1)
Por mais diversa, porém, que sejam essas VISÕES DE MUNDO e por mais violentamente que elas se combatam velada ou abertamente – se é que o chafurdar no não decidido ainda tem o direito de ser chamado de luta –, todas elas concordam em um primeiro momento, sem que o saibam e sem refletir sobre isso, quanto ao fato de que o homem é estabelecido como aquilo que já se conhece em sua essência, como o ente, com vistas ao qual e a partir do qual toda e qualquer “transcendência” é determinada e, em verdade, como aquilo que o homem deve determinar. Mas isso se tornou fundamentalmente impossível, porque o homem já é fixado em sua determinabilidade, ao invés de determiná-lo para aquilo que precisa ser tres-loucado a partir da fixação até aqui, para assim ser afinado pela primeira vez com vistas à determinabilidade. Como, porém, o homem deve ser tresloucado e levado para fora de seu caminho fixo, ao qual pertence sobretudo o domínio daquelas “transcendências” e de suas misturas? Se ele precisa levar a termo algo desse gênero, então a pretensão da dotação de medida não é ainda maior do que lá onde ele permanece simplesmente estabelecido como o critério de medida? (tr. Casanova; GA65: 7)
No que o abandono do ser se anuncia: 1) A completa insensibilidade em relação ao múltiplo naquilo que é considerado essencial; plurissignificância provoca a perda de força e a má vontade em relação à decisão real e efetiva. Por exemplo, tudo o que significa a palavra “povo”: o elemento comunitário, o elemento racial, o baixo e o inferior, o nacional, o permanente; por exemplo, tudo aquilo que é chamado de “divino”. 2) O não saber mais o que é condição e o que é condicionado e incondicionado. Idolatria em relação às condições do seer histórico, do elemento populista, por exemplo, com toda a sua plurissignificância, transformando-o em algo incondicionado. 3) O permanecer preso no pensar e no estabelecimento de “valores” e “ideias”; sem qualquer questão séria, vê-se aí, como que em algo inalterável, a forma estrutural do ser-aí histórico; e a isso corresponde o pensar em termos de “VISÕES DE MUNDO”. 4) De acordo com isso, tudo é inserido em uma engrenagem “cultural”, as grandes decisões, o Cristianismo, não são expostos a partir da raiz, mas contornados. 5) A arte é submetida a uma utilidade cultural e desconhecida em sua essência; a cegueira em relação ao seu cerne essencial, o modo da fundação da verdade. 6) Em geral característico é o erro de avaliação em relação ao que é repulsivo e negador; ele é simplesmente alijado como o “mal”, equivocadamente interpretado e, com isso, apequenado e tanto mais propriamente ampliado em seu perigo. 7) Nisso se mostra – completamente à distância – o não saber em torno do pertencimento do não, da nulidade ao seer mesmo, a falta de qualquer ideia em face da finitude e da unicidade do seer. 8) Isso é acompanhado pelo não saber da essência da verdade; o fato de antes de tudo o que é verdadeiro a verdade e a sua fundação precisarem ser decididas; a busca cega pelo “verdadeiro” na aparência do querer maximamente sério. 9) Por isto, a recusa do saber autêntico e o medo diante da questão; o esquivar-se da meditação; a fuga em direção ao ceme dos dados e das maquinações. 10) Toda tranquilidade e toda retenção aparecem como inatividade, como um deixar passar e como renúncia e talvez sejam a mais ampla reconexão com o deixar ser do ser como acontecimento apropriador. 11) A segurança de si do que não se deixa mais conclamar; a calcificação contra todos os acenos; a impotência da expectativa; só ainda calcular. 12) Tudo isso são apenas irradiações de um encobrimento confuso e calcificado da essência do seer, sobretudo da abertura de seu fosso abissal: o fato de unicidade, raridade, instantaneidade, acaso e acometimento, retenção e liberdade, resguardo e necessidade pertencerem ao seer; o fato de esse seer não se mostrar como o que há de mais vazio e mais comum, mas como o que há de mais rico e mais elevado e só se essenciar no acontecimento da apropriação, acontecimento esse graças ao qual o ser-aí chega à fundação da verdade do ser no abrigo por meio do ente. 13) A elucidação particular do abandono do ser como decadência do Ocidente; a fuga dos deuses; a morte do Deus moral cristão; sua reinterpretação. O velamento desse desenraizamento por meio do encontrar a si mesmo que se inicia de maneira supostamente nova do homem (Modernidade); esse encobrimento banhado no brilho do e intensificado pelo progresso: descobertas, invenções, indústria, máquina; ao mesmo tempo a massificação, a negligência, a desertificação, tudo como desatrelamento do fundamento e das ordens; o desenraizamento, porém, como o mais profundo velamento da indigência, a falta de força para a meditação, a impotência da verdade; o pro-gresso em direção ao não ente como abandono crescente do seer. 14) O abandono do ser é o fundamento mais íntimo para a indigência da falta de indigência. Como é que essa indigência pode ser efetuada como indigência? Alguém não precisa deixar a verdade do seer brilhar – mas para quê? Quem dos desprovidos de indigência consegue ver? Haverá algum dia uma saída para tal indigência, que se nega constantemente como indigência? Falta o querer sair. Será que a lembrança das possibilidades do passado essencial (o sido) do ser-aí pode conduzir à meditação? Ou será que algo in-habitual, não ideável se choca com essa indigência? 15) O abandono do ser, aproximado por meio de uma meditação sobre a desertificação do mundo e sobre a destruição da terra no sentido da rapidez, do cálculo, da pretensão do massificado. 16) O “domínio” coetâneo da impotência da mera mentalidade e da violência da instituição. (tr. Casanova; GA65: 56)
Nietzsche continua preso na metafisica: do ente para o ser; e Nietzsche esgota todas as possibilidades dessa posição fundamental que, entrementes, tal como ele mesmo viu pela primeira vez de maneira maximamente clara e distinta, se transformou, em todas as formas possíveis, em posse comum e “bem de pensamento” das VISÕES DE MUNDO das massas. (tr. Casanova; GA65: 91)
O “tempo” como temporialidade, o que se tem em vista é a unidade originária do arrebatamento extasiante marcado por clareira e por encobrimento, oferece o fundamento mais próximo para a fundação do ser-aí. Com esse estabelecimento, a forma até aqui de resposta não deve ser, por exemplo, mantida, sim, nem mesmo substituída, ou seja, ao invés das “ideias” ou de sua desaprovação no século 19, ao invés dos “valores” não devem ser posicionados outros “valores” ou não deve ser posicionado valor nenhum. Ao contrário, o “tempo” aqui e, de maneira correspondente, tudo aquilo que é concebido sob o título “existência”, possui um significado completamente diverso, a saber, o significado da fundação dos sítios abertos da instantaneidade para um ser histórico do homem. Como todas as decisões até aqui não se mostram mais no âmbito das “ideias” ou do “ideal” (“VISÕES DE MUNDO”, ideias de cultura e coisas do gênero) como decisões, porque elas não colocam mais de maneira alguma em questão o seu espaço de decisão e ainda menos a verdade mesma enquanto verdade do seer, é preciso antes de tudo dirigir a meditação para a fundação de um espaço de decisão, isto é, a indigência da falta de indigência precisa ser primeiro experimentada, o abandono do ser. No entanto, onde quer que, no sentido até aqui, ainda que com tomadas de empréstimo externas junto à “filosofia da existência”, tudo permanece no âmbito da “cultura”, da “ideia”, do “valor” e do “sentido”, aí, visto em termos da história do ser e a partir do pensamento inicial, o abandono do ser é uma vez mais solidificado e a falta de indigência é por assim dizer elevada ao nível de princípio fundamental. (tr. Casanova; GA65: 119)
A morte não chega aqui ao âmbito da meditação que estabelece as bases, para que se possa ensinar “em termos de VISÕES DE MUNDO” uma “filosofia da morte”, mas para que se possa trazer pela primeira vez a questão do ser para o seu fundamento e abrir o ser-aí como o fundamento a-bissal, voltando-o para o projeto, isto é, para o com-preender no sentido de Ser e tempo (não, por exemplo, para tornar “compreensível” a morte para os jornalistas e os burgueses). (tr. Casanova; GA65: 163)
Aquele se encontrar exposto de modo arrebatado e extasiante no desconhecido, que era para Nietzsche certamente uma experiência fundamental, não tinha como se tornar para ele, se vejo corretamente, o centro fundado de seu questionamento; e não porque ele estava preso no enredamento triplo acima (p 353) citado por meio do que foi legado pela tradição. E, assim, chega-se ao fato de que Nietzsche não concebeu de saída e ainda por muito tempo a partir de sua mais velada vontade pensante, mas se viu articulado com os campos de visão correntes do pensamento dominante e das VISÕES DE MUNDO do século XIX, a fim de encontrar e tornar útil no destacar-se delas e, portanto, contudo, com o seu auxílio, o seu elemento próprio e “novo”. Todavia, como é que a confrontação com Nietzsche dominou ou não dominou a sua concepção da “verdade” é algo que precisa se transformar na pedra angular da decisão sobre se nós auxiliaremos a sua filosofia propriamente dita a alcançar o seu futuro (sem nos tornarmos “nietzschianos”), ou se nós o inseriremos em uma ordem “historiológica”. (tr. Casanova; GA65: 234)
A diferença na questão do ser, que é uma questão histórica e que cinde a história da metafísica em relação ao pensar por vir, designa em sua primeira realização a transição. Só que a diferença não liga sob o modo do destaque algo passado e algo vindouro, uma história decorrida e uma história iminente, mas cinde antes dois cursos profundos fundamentalmente diversos da história ocidental. O fato de a história da metafísica (com Nietzsche) ter chegado ao fim não diz de maneira alguma que, desde então, o pensar metafísico (o que significa ao mesmo tempo o pensar conforme à razão, o pensar lógico) teria se esgotado. Ao contrário: esse pensar transpõe agora a sua morada fixa para a região das VISÕES DE MUNDO e da cientificização crescente da atividade cotidiana, tal como essa atividade se firmou já na reconfiguração do Cristianismo e tal como ela segue com ele em direção às formas de sua “secularização”, nas quais ele se encontra uma vez mais consigo mesmo sob a figura que ele assumiu por intermédio de sua cristianização (começando já em Platão). A história da metafísica não cessa porque ela passa agora para o campo do a-histórico, sim, porque ela abre agora pela primeira vez esse campo. Inversamente, o pensar da história do ser próprio ao outro questionamento não entra agora, por exemplo, na claridade do dia. Ele permanece velado em sua própria profundeza, mas agora não mais como desde o primeiro início do pensar ocidental durante a história da metafísica, no encobrimento de seu fechamento na origem não desentranhada, mas sim na claridade de uma pesada obscuridade da profundidade que sabe a si mesma, que se vê ressurgida na meditação. (tr. Casanova; GA65: 259)