Anwesen = vigente; Anwesenheit = vigência
Todo conhecedor da Idade Média percebe que Descartes “depende” da escolástica medieval. Essa descoberta, porém, não diz nada do ponto de vista filosófico, enquanto permanecer obscura a influência fundamental exercida pela ontologia medieval na determinação ou na não-determinação posterior da res cogitans. Só será possível avaliar essa influência depois de se ter mostrado o sentido e os limites da antiga ontologia, a partir de uma orientação feita pela questão do ser. Em outras palavras, a destruição se vê colocada diante da tarefa de interpretar o solo da antiga ontologia à luz da problemática da temporaneidade. Torna-se, assim, evidente que a interpretação antiga do ser dos entes se orienta pelo “mundo” e pela “natureza” em seu sentido mais amplo, retirando de fato a compreensão do ser a partir do “tempo”. A determinação do sentido do ser como parousia e ousia, que, do ponto de vista ontológico-temporâneo, significa “VIGÊNCIA”, representa um documento externo dessa situação, mas somente isso. O ente é entendido em seu ser como “VIGÊNCIA”, isto é, a partir de determinado modo do tempo, do “atualmente presente”. STMSC: §6
A problemática da ontologia grega, bem como de toda ontologia, deve ser orientada pela própria presença [Dasein]. Tanto em sua definição vulgar como em sua “definição” filosófica, a presença [Dasein], isto é, o ser do homem, caracteriza-se como zoon logon echon, o ser vivo cujo modo de ser é, essencialmente, determinado pela possibilidade de falar. O legein (cf §7 B) fornece a orientação para que se obtenham as estruturas ontológicas dos entes que nos vêm ao encontro nos dizeres e discussões. É por isso que a ontologia antiga, elaborada por Platão, torna-se uma “dialética”. Com o progresso da elaboração dessa orientação ontológica, isto é, da “hermenêutica” do logos, aumenta a possibilidade de uma apreensão mais radical do problema do ser. A “dialética”, que constituía uma verdadeira perplexidade filosófica, torna-se então supérflua. É também por isso que Aristóteles já não possui “nenhuma compreensão” para ela. É que Aristóteles a elevou para um plano muito mais radical e, assim, a superou. O próprio legein ou noein, a simples percepção de algo simplesmente dado, que já Parmênides havia tomado como guia na interpretação de ser, possui a estrutura temporânea da pura “atualização” (Gegenwärtigens) de uma coisa. O ente que se manifesta nessa atualização e que é entendido como o ente próprio é, portanto, interpretado com referência ao atualmente presente, ou seja, concebido como VIGÊNCIA (ousia). STMSC: §6
A primeira parte divide-se em três seções: 1. Análise preparatória dos fundamentos da presença [Dasein]. 2. Presença e temporalidade. 3. Tempo e ser {CH: a diferença dotada de transcendência, a superação do horizonte como tal, a virada para a origem, a VIGÊNCIA a partir dessa origem}. STMSC: §8
No âmbito do presente campo de investigação, as diferenças repetidas vezes marcadas entre as estruturas e dimensões da problemática ontológica devem-se manter fundamentalmente separadas: 1) o ser dos entes intramundanos, que primeiro vêm ao encontro (manualidade); 2) o ser dos entes (ser simplesmente dado) que se acham e se podem determinar num percurso autônomo de descoberta através dos entes que primeiro vêm ao encontro; 3) o ser da condição ôntica de possibilidade da descoberta de entes intramundanos em geral, a mundanidade {CH: melhor, a VIGÊNCIA do mundo} do mundo. Este último é uma determinação existencial do ser-no-mundo, ou seja, da presença [Dasein]. Os outros dois conceitos de ser são categorias e abrangem entes que não possuem o modo de ser da presença [Dasein]. Pode-se apreender formalmente o conceito referencial que constitui o mundo como significância no sentido de um sistema de relações. Deve-se, porém, observar que tais formalizações nivelam de tal modo os fenômenos que, em remissões tão “simples” como as que a significância abriga, perdem o conteúdo propriamente fenomenal. Essas “relações” e “relatas” do ser-para, do ser em virtude de, do estar com de uma conjuntura, em seu conteúdo fenomenal, resistem a toda funcionalização matemática; também não são algo pensado, posto pela primeira vez pelo pensamento, mas remissões em que a circunvisão da ocupação sempre se detém como tal. Esse “sistema de relações” constitutivo da mundanidade dissolve tão pouco o ser do manual intramundano que, na verdade, é só com base na mundanidade do mundo que ele pode descobrir-se em seu “em-si substancial”. E somente quando o ente intramundano em geral puder vir ao encontro é que subsiste a possibilidade de se tornar acessível o que, no âmbito deste ente, é simplesmente dado. Com base neste ser simplesmente dado é que se podem determinar matematicamente “propriedades” desses entes em “conceitos de funções”. Conceitos de função dessa espécie só se tornam ontologicamente possíveis remetendo-se a um ente cujo ser possui o caráter de pura substancialidade. Conceitos de função não são outra coisa do que conceitos formalizados de substância. STMSC: §18
Enquanto modo de ser da presença [Dasein] no tocante a seu ser-no-mundo, o distanciamento não é por nós entendido como distância (proximidade) ou mesmo como intervalo. Usamos a expressão distanciamento com significado ativo e transitivo. Indica uma constituição de ser da presença [Dasein] em virtude da qual o distanciar de alguma coisa, no sentido de afastar, é apenas um modo determinado e fático. Distanciar diz fazer desaparecer o distante {CH: de onde provém a distância que se distancia?}, isto é, a distância de alguma coisa diz proximidade. Em sua essência, a presença [Dasein] é em dis-tanciando. Como o ente que é, sempre faz com que os entes venham à proximidade {CH: proximidade e VIGÊNCIA, não é a grandeza do intervalo que é essencial}. O dis-tanciamento descobre a distância. Assim como o intervalo, a distância é uma determinação categorial dos entes destituídos do modo de ser da presença [Dasein]. Distanciamento, ao contrário, deve ser mantido como existencial. Somente ao se descobrir para a presença [Dasein] a distância dos entes é que no próprio ente intramundano tornam-se acessíveis “distanciamentos” e intervalos com referência a outros entes. Da mesma forma que duas coisas quaisquer, dois pontos não estão distantes um do outro porque nenhum deles é capaz de distanciar em seu modo próprio de ser. Apenas possuem um intervalo que pode ser constatado e medido num distanciar {CH: dis-tanciar é mais penetrante do que aproximação}. STMSC: §23
Dis-tanciar é, numa primeira aproximação e, sobretudo, um aproximar dentro da circunvisão, isto é, trazer para a proximidade no sentido de providenciar, aprontar, ter à mão. Determinados modos de descobrir os entes numa atitude puramente cognitiva também apresentam o caráter de aproximação. Na presença [Dasein] reside uma tendência essencial de proximidade {CH: em que medida e por quê? Ser como VIGÊNCIA constante tem primazia, atualização}. Todos os modos de aumentar a velocidade com que, hoje, de forma mais ou menos forçada lidamos, impõem a superação da distância. Assim, por exemplo, com a “radiodifusão”, a presença [Dasein] cumpre hoje o dis-tanciamento do “mundo” através de uma ampliação e destruição do mundo circundante cotidiano, cujo sentido para a presença [Dasein] ainda não se pode totalmente avaliar. STMSC: §23
O “círculo” do compreender pertence a estrutura do sentido, cujo fenômeno tem suas raízes na constituição existencial da presença [Dasein], enquanto um compreender que interpreta. O ente em que está em jogo seu próprio {CH: esse “seu próprio ser”, porém, é determinado em si pela compreensão de ser, isto é, por in-sistir na claridade da VIGÊNCIA em que nem a claridade como tal e nem a VIGÊNCIA como tal são temas de representação} ser como ser-no-mundo possui uma estrutura de círculo ontológico. Deve-se, no entanto, observar que, se do ponto de vista ontológico, o “círculo” pertence a um modo de ser do que e simplesmente dado, deve-se evitar caracterizar ontologicamente a presença [Dasein] mediante esse fenômeno. STMSC: §32
O esclarecimento da origem do “tempo”, “no qual” entes intramundanos vêm ao encontro, do tempo como intratemporalidade, revela uma possibilidade essencial de temporalização da temporalidade. Com isso, prepara-se a compreensão de uma temporalização ainda mais originária da temporalidade. Nela funda-se a compreensão de ser constitutiva do ser da presença [Dasein]. O projeto de um sentido do ser em geral pode cumprir-se {CH: VIGÊNCIA (advento e acontecimento)} no horizonte do tempo. STMSC: §45
Duas coisas são positivas na análise kantiana: de um lado, ele vê a impossibilidade de se reconduzir, onticamente, o eu a uma substância e, de outro, ele mantém o eu como “eu penso”. No entanto, Kant apreende mais uma vez esse eu como sujeito e, portanto, num sentido ontológico inadequado. Pois o conceito ontológico de sujeito não caracteriza a mesmidade do eu como si-mesmo e sim a mesmidade e a constância de algo já sempre simplesmente dado. Determinar ontologicamente o eu como sujeito significa já sempre supor o eu como algo simplesmente dado. O ser do eu é compreendido como realidade {CH: “VIGÊNCIA”; o contínuo “acompanhamento”} da res cogitans. STMSC: §64
Comparando-se a presença [Dasein] “primitiva”, à base da análise da contagem “natural” do tempo, com a presença [Dasein] “evoluída”, mostra-se que, para esta última, o dia e a VIGÊNCIA da luz solar já não possuem uma função privilegiada. Isto porque ela tem o “privilégio” de também poder tornar dia a noite. Da mesma forma, para se constatar o tempo não é mais necessária uma visão imediata e explícita do sol e de sua posição. A fabricação e o uso de certos instrumentos de medição permitem uma leitura direta do tempo no relógio que para isso se produz. Que horas são é “quanto tempo é”. Mesmo que determinada leitura do tempo possa ficar encoberta, o uso do instrumento relógio também se funda na temporalidade da presença [Dasein] a qual, juntamente com a abertura do pre [das Da], possibilita uma datação do tempo ocupado. E isso porque, enquanto aquilo que possibilita uma contagem pública do tempo, o relógio deve ser regulado pelo relógio “natural”. A compreensão do relógio natural, construída através da evolução da descoberta da natureza, acena para novas possibilidades de medição do tempo que são relativamente independentes do dia e de toda observação explícita do céu. STMSC: §80
Mas, de certo modo, a presença [Dasein] “primitiva” também se faz independentemente de uma leitura direta do tempo no céu. Pois, em lugar de constatar no céu a posição do sol, ela mede as sombras projetadas por um ente, cada vez disponível. Isto pode dar-se, inicialmente, na forma mais simples dos antigos “relógios camponeses”. Em sua VIGÊNCIA cambiante nos diferentes lugares, o sol se dá ao encontro nas sombras que acompanham todo mundo. Os comprimentos das sombras, que diferem ao longo do dia, podem ser, a “todo tempo”, percorridos. Embora o tamanho do corpo e dos pés dos indivíduos também sejam diferentes, dentro de certos limites da precisão, a proporção entre ambos permanece constante. A determinação pública do tempo dos encontros marcados numa ocupação recebe, por exemplo, a seguinte forma: “quando as sombras alcançarem tantos pés, nós nos encontraremos lá”. Com isso, na convivência que se dá nas fronteiras estreitas de um mundo circundante mais próximo, pressupõe-se implicitamente a igualdade do nível do polo do “lugar” em que se percorrem as sombras. A presença [Dasein] não precisa carregar consigo esse relógio. Pois esse relógio é, de certo modo, a própria presença [Dasein]. STMSC: §80
Dizer-agora é, no entanto, a articulação discursiva de uma atualização que se temporaliza na unidade de um aguardar que retém. A datação realizada no uso do relógio comprova-se como a atualização privilegiada de algo simplesmente dado. A datação não registra meramente uma remissão simplesmente dada. Mas o próprio tomar como remissão tem o caráter de medida. Sem dúvida, pode-se ler imediatamente o número da medida. Mas isso implica que se compreenda um ser e estar contido do parâmetro num segmento a ser medido, isto é, que nele se determine a frequência de sua VIGÊNCIA. Temporalmente, o medir consiste na atualização do parâmetro vigente no segmento. A não alteração subsistente na ideia de parâmetro significa que, em sua constância, ele deve ser o tempo todo simplesmente dado para todo mundo. A datação medidora do tempo ocupado o interpreta na perspectiva atualizante do que é simplesmente dado, o qual só se faz acessível como parâmetro e como o que é medido numa atualização privilegiada. Porque, na datação medidora, a atualização do que é vigente possui um primado especial, a leitura medidora do tempo no relógio se pronuncia, acentuando o agora. Na medição do tempo cumpre-se, portanto, um fazer-se público do tempo, segundo o qual este sempre vem ao encontro de todo mundo a todo tempo, como “agora e agora e agora”. Sem que a medição do tempo se oriente, de forma temática, para o tempo como tal, esse tempo “universalmente” acessível nos relógios também é, por assim dizer, preliminarmente encontrado como uma multiplicidade simplesmente dada de agora. STMSC: §80
A datação oriunda das relações espaciais mensuráveis não transforma, de modo algum, em espaço o tempo publicado na medição do tempo. Do ponto de vista ontológico-existencial, também não se deve buscar o essencial da medição do tempo no fato de o “tempo” datado ser determinado, em seu número, por segmentos do espaço e por mudanças de lugar de uma coisa espacial. Ontologicamente, o decisivo se acha na atualização específica que torna possível a medição. A datação feita a partir do que é simplesmente dado no espaço é tão pouco espacialização do tempo que essa espacialização presumida nada mais significa do que a atualização da VIGÊNCIA de um ente simplesmente dado para todos, em cada agora. Na medição do tempo, que necessária e essencialmente diz-agora, o que se mede é, como tal, esquecido com a obtenção da medida, a ponto de nada se poder encontrar além de segmentos e números. STMSC: §80
A sequência dos agora é apreendida como algo simplesmente dado, pois ela escorrega “no tempo”. Dizemos: em cada agora é agora, em cada agora o agora já desaparece. Em cada agora, o agora é agora e, com isso, constantemente vigente como mesmo, mesmo que, em cada agora, um outro que advém também desapareça. Mas como o que varia é este que varia, o agora também mostra a VIGÊNCIA contínua de si mesmo. Foi por isso que, dirigindo a visão para o tempo (519) como sequência de agora, que emergem e desaparecem, já Platão teve de chamar o tempo de imagem derivada da eternidade: [citação em grego de Timeu 37 d 5-7: “Então pensou em compor uma imagem móbil da eternidade e, no mesmo tempo em que organizou o céu, fez da eternidade que perdura na unidade essa imagem eterna que se movimenta de acordo com o número e a que chamamos tempo”]. STMSC: §81
“Operar”, wirken, significa “fazer”, tun. O que significa tun? A palavra provém da raiz indo-europeia dhe, de onde vem igualmente o grego thesis, posição, posicionamento, localização. Mas não se entende este fazer apenas, como atividade humana, e, tampouco, no sentido de ação e agir. Também o crescimento, vigência da natureza (physis), é um fazer, no sentido acima mencionado de thesis. Somente depois, é que physis e thesis vieram a opor-se uma à outra. Uma oposição que só tornou-se possível porque alguma coisa de idêntico as unia e determinava. Physis é thesis, a saber, a pro-posição de algo por si mesmo, no sentido de pôr em frente, de trazer à luz, de a-duzir e pro-duzir, de levá-lo à vigência. É, neste sentido, fazer que equivale a operar, que diz viger numa vigência. Assim o real é o vigente. Entendido assim como trazer e levar à vigência, o verbo “operar”, “wirken”, invoca um modo de o real se realizar, de o vigente viger e estar em vigor. Operar é, pois, trazer e levar à vigência, seja que, por si mesmo, algo traga e leve a si mesmo para a sua própria vigência, seja que o homem exerça este trazer e levar. Na linguagem medieval, o verbo “wirken”, “operar” significava ainda a produção de casas, de utensílios, de imagens e quadros; posteriormente, este significado se restringiu à pro-dução, no sentido de costurar, tricotar, fiar. [GA7CFS:42]
Em seu começo, o pensamento, posteriormente chamado filosofia, encontra-se referido a perceber, pela primeira vez, o espantoso de ser e dizer que ente é e como ente é. Aquilo que, de maneira multivariada e equivocadamente, chamamos de ente, os filósofos gregos chamaram de vigência (Anwesenheit). Em termos de vigência (Anwesenheit) pensou-se também a passagem do vigente para o ausente, do surgimento e desaparecimento, do nascer e perecer, ou seja, o movimento.
A experiência e interpretação da vigência do vigente transforma-se no decorrer da história da filosofia. Alcança-se o fim da filosofia quando essa transformação vê-se plenificada em suas possibilidades extremas e derradeiras. A história dessa transformação e de sua plenificação (acabamento) não foi até agora reconhecida porque, à base do pensamento grego, acrescentam-se representações modernas. O exemplo clássico e em grande estilo desse procedimento permanece sendo a interpretação hegeliana da história da filosofia.
O pensamento grego desconhece inteiramente a vigência entendida no sentido de objetividade dos objetos. Para a filosofia grega, o vigente nunca é objeto. Vigência no sentido de objetividade só começa a poder ser pensada na filosofia quando o subsistente [hypokeimenon], o que repousa sobre si mesmo, o subjectum para os romanos – foi encontrado por Descartes no Ego Sum do Ego Cogito. Com isso, o eu do homem, o próprio homem aparece como sujeito privilegiado, algo que o nome posterior (sujeito) vai considerar exclusivamente. A partir de então, a subjetividade vai constituir o âmbito no qual e para o qual uma objetividade se impõe.
Só que agora a vigência do vigente também perdeu o sentido de objetividade e contraposição. Para o homem de hoje, o vigente vale como o que sempre de novo pode ser encomendado e por-se à dis-posição. Mesmo que raramente pensada e pronunciada como tal, a vigência mostra agora o caráter de encomenda (recurso) e estar à dis-posição (Bestellbarkeit) de tudo e de cada um. [Coisa do Pensamento]