Vattimo (1996:101-105) – superação da metafísica

Gama

A tendência, intrínseca à metafísica (desde a sua origem), para esquecer o ser e para fazer aparecer em primeiro plano apenas o ente como tal é tendência fundada na conexão essencial de verdade e não-verdade e, realiza-se pois, de maneira perfeita no mundo da técnica. Mas, ao realizar verdadeiramente a sua própria essência de esquecimento, a metafísica alcança também o seu fim, na medida em que já não há nenhum meta, nenhum «mais além»; o ser do ente não é já, nem sequer remotamente, algo que se busque mais além do próprio ente, mas é o seu funcionar efectivo dentro de um sistema instrumental imposto pela vontade do sujeito. Nesta situação, o pensamento é apenas excogitação técnica, também ele instrumento para solucionar problemas «internos» à totalidade instrumental do ente e inerentes à sua organização cada vez mais «racional».

E precisamente nesta situação de extrema pobreza do pensamento” que também se torna possível ir além da metafísica (101) e, talvez, sair do esquecimento do ser que a caracteriza. Em primeiro lugar, como já dissemos, a metafísica pode subsistir apenas enquanto a sua essência de esquecimento está mascarada e oculta, isto é, apenas enquanto esquece o seu próprio esquecer. Alas a redução da totalidade do ente a sistema totalmente organizado e relativo fim do pensamento como ultrapassagem que, sem a efectuar verdadeiramente, a metafísica do passado tentou continuamente, encontrando aí a sua própria razão de ser, é que fazem que o esquecimento da metafísica não possa já ser esquecido, mas venha para o primeiro plano com toda a sua dimensão determinante. Cair na conta do esquecimento leva a outra interrogação decisiva que, substancialmente, é a formulada (ainda que em termos um pouco diferentes) no parágrafo final do Ser e Tempo, onde se perguntava como o ser do ente pode chegar a conceber-se como simples presença. Aqui a pergunta tornou-se mais radicalmente histórica: como foi possível chegar ao ponto de esquecimento total do ser em que agora nos encontramos? Daqui parte a reflexão sobre a metafísica como história; nesta reflexão, está implícito um «projecto» do sentido do ser que já não é metafísico. Com efeito, fica claro que cair na conta do esquecimento implica já assumir uma posição que não se encontra nesse esquecimento. Ver a metafísica como história e sair da metafísica compreendendo o ser de maneira diferente de como ela o compreende são a mesma coisa. Daí o significado não só negativo da destruição da ontologia, mas também o significado positivo da elaboração de um novo «projecto» do sentido do ser, que a reflexão heideggeriana tem sobre a história da metafísica.

Neste ponto, é natural interrogar-nos em que medida a elaboração de uma compreensão do ser, que se leva a cabo mediante uma reflexão negativa e positiva sobre toda a história do pensamento ocidental, se distingue de outra grande (102) tarefa do pensamento que, à primeira vista, parece análoga, isto é, o sistema de Hegel. Para Heidegger, a reflexão histórica não tem o sentido de apreender na história do pensamento o progressivo desvelamento de uma verdade que, sob o ponto de vista (que Hegel declara ter alcançado) do saber absoluto, se possa reconhecer como tal e integrada numa perspectiva definitiva. Ao método hegeliano da Aufhebung, que conserva e ao mesmo tempo supera na filosofia absoluta o que de verdadeiro disse o pensamento do passado, Heidegger opõe o método do Schritt zurück, do «passo atrás»1. Este método não se deve entender como uma simples inversão do método hegeliano; não se trata de dar um passo atrás no sentido de remontar às origens históricas do pensamento, como se o primeiro histórico-temporal estivesse mais próximo do ser, pelo qual a história, para Heidegger, se configuraria apenas com o progressivo afastamento do ser. O Schritt zurück não é um voltar atrás no sentido temporal, mas um retroceder no sentido de se distanciar, situando-se num ponto de vista que permita ver a metafísica como história, como um processo de devir; enquanto a vemos como história, «pomo-la em movimento»2, isto é, por um lado, furtamo-nos à sua presumível evidência, vemo-la em relação com o seu «donde», em relação com o obscuro de que provém e que constantemente esquece. Precisamente por isto, a visão da metafísica como história não é consecução da autotransparência do espírito absoluto hegeliano. Ver a metafísica como história não significa apoderar-se da totalidade da verdade, mas significa ver a história do pensamento como um proceder de uma (103) «origem», que permanece constitutivamente obscura e que nunca se «resolve» na história cio próprio pensamento. A insistência cie Heidegger na obscuridade como fundo que o pensamento esquece pode realmente entender-se como radical oposição a Hegel, para quem o espirito é o que consome, resolve e dissolve na autoconsciência todos os seus próprios supostos. Esta recusa de Hegel impede também interpretar o discurso heideggeriano como pura inversão do discurso hegeliano, que veja a história como progressivo alheamento do ser. Também neste caso o fim da metafísica não se poderia entender a não ser como uma tomada de consciência absoluta de tipo hegeliano; seria necessário, pois, poder dizer, em forma de definição, que o ser está essencialmente constituído por um progressivo ocultamento e que semelhante «definição» seria também a afirmação de que, mesmo através da história do ocultamento, o ser tende por fim a desvelar-se no que é: ocultamento precisamente daquilo de que, todavia, o pensamento pode adquirir pela consciência.

A contraposição do método do «passo atrás» à Aufhebung hegeliana tende precisamente a evitar todos estes equívocos. O fim da metafísica não pode significar de nenhuma maneira o fim do esquecimento do ser, no sentido de que o ser acabe por se transformar como tal em objecto de pensamento explícito. Nesse caso, o erro da metafísica não faria senão repetir-se, já que reduziu o ser a ente justamente enquanto se esforçou por convertê-lo em objecto de teorizações e de definições, por inseri-lo organicamente na concatenação do raciocínio de fundação. Ver a metafísica como história não significa à maneira hegeliana, descobrir por fim a direção e o sentido gerai do seu desenvolvimento; significa, de preferência, vê-la antes de mais como «movimento», como um «proceder de»; significa, pois, ver o sistema do raciocínio de fundação como algo situado dentre de um âmbito que (104) o transcende e que, por sua vez, não pode conceber-se como fundamento.

Apesar disso, o problema de distinguir o método heideggeriano do hegeliano não se resolve a não ser levantando em gerai o problema da possibilidade e do caracter de um pensamento que já não é metafísico. Com efeito, se o pensamento liberto da metafísica fosse o pensamento que recorda o ser no sentido de assumi-lo como conteúdo temático próprio, então verdadeiramente Heidegger não se distinguirá substancialmente de Hegel e o Schritt zurück seria apenas um novo disfarce, mais ou menos dissimulado, da autoconsciência hegeliana. De maneira que temos de perguntar-nos se é possível, e como se define, um pensamento que vá mais além da metafísica, isto se é possível uma autêntica superação da própria metafísica.

Original

  1. Ver Identität und Differenz, op. cit.., pp. 39 e segs.[↩]
  2. Ver Que é Metafísica?, tradução citada, p. 34: é este o sentido em que se interpreta aquela passagem em que se diz que a «filosofia é só colocar em movimento a metafísica, com a qual chega a si mesma e explicitamente aos seus conteúdos».[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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