Vallin (GA:88-89) – fé

A fé, ao lado de seu conteúdo “positivo”, tem um aspecto de escuridão centrado na vontade, que a mentalidade apaixonada do homem religioso tenderá a privilegiar cada vez mais. Da gnose implícita, a Fé degrada-se pouco a pouco em crença, em pura adesão livre e injustificada da vontade, que vai até ao fim das exigências voluntaristas implícitas na noção de “mérito”. A crença é meritória, no sentido de que não é um assentimento da inteligência, mas um consentimento puro da vontade. O homem, por assim dizer, faz violência a si mesmo para crer. Sem dúvida, o mundo sem Deus parece “absurdo” para ele. Mas a crença em Deus lhe parece, em última análise, tão “absurda” quanto o mundo da imanência. Se a experiência da “miséria do homem sem Deus” lhe revelou a fraqueza e a vaidade da razão, resta o fato de que o homem religioso não concebe outro instrumento de conhecimento senão este. Sua negação da razão não é tanto uma superação ontológica quanto uma recusa apaixonada. E é por isso que o homem religioso muitas vezes volta a uma atitude racionalista por compensação tanto quanto por necessidade. Imerso em uma contradição existencial permanente, ele brande o princípio da não-contradição quando o metafísico põe em jogo sua sutil dialética da coincidência dos opostos. Assim Ramanuja ataca a teoria shankariana segundo a qual Maya não é idêntica ao Absoluto nem diferente dele. A lógica do homem religioso aplicada aos aspectos mais profundos da Transcendência faz uso “apaixonado” do princípio da não-contradição. De dois aspectos racionalmente contraditórios, nega por razões de conveniência aquele que lhe parece menos importante. Assim, o homem religioso negará que o mundo é Deus, porque não pode ir além do ponto de vista de uma Transcendência abstrata em direção à teoria metafísica dos graus de realidade. Nega os aspectos que lhe parecem contraditórios e permite que subsistam as contradições 1 de que necessita por razões apaixonadas e das quais não tem ciência ou que defende com sofismas. A razão é muitas vezes um auxiliar natural de seu voluntarismo apaixonado em sua polêmica contra o Intelecto do homem metafísico 2. Sua negação apaixonada da razão, portanto, muitas vezes dá lugar ao uso não menos apaixonado desta última. Ele usa a razão para negar o Intelecto e nega a razão na tentativa de ir por um movimento cego da vontade onde apenas o conhecimento ou a intuição intelectual poderia levá-lo. A razão desprezada se vinga, por assim dizer. O homem religioso, “subindo” em direção à Transcendência, como diz Jaspers, reprime a razão ao invés de transcendê-la. Mas é também a este preço que poderá sentir a sua “liberdade”. O Deus incognoscível preserva a liberdade da minha vontade. A negação voluntarista da razão exalta a consciência da liberdade e contribui para a individuação tipicamente religiosa do homem. Pois o homem identificado com uma razão que o encerra no círculo da imanência não é nem realmente “livre” nem realmente “eu”, do ponto de vista do homem religioso. Não é ele quem decide, mas a razão humana ou a humanidade nele.

  1. Daí a contradição entre a simplicidade divina e o aspecto exclusivamente “pessoal” que ele reconhece em “Deus”.[↩]
  2. Não é por acaso que o inventor da lógica foi Aristóteles, esse refúgio da intelectualidade apaixonada do homem religioso, e não Platão. A polêmica apaixonada do Estagirita contra as Ideias mostra como esse encontro não deve surpreender.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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