Consciência (Bewusstsein)

(RMAP:86-88)

Em alemão, “consciência” é traduzida como Bewusstsein. Esse termo, embora seja um substantivo, mantém a forma predicativa do particípio, como se disséssemos “o ser” — o predicado em questão sendo o do objeto que nos é presente, em vez do sujeito que dele tem consciência 1. Esse ser presente (bewusst) de uma coisa corresponde, no nosso caso, à visão da sala. Se o leitor, enquanto espera o café ficar pronto, quisesse passear pela sala (começando, por exemplo, por dar uma olhada na estante à sua direita), esse ser corresponderia à sucessão de suas visões. Esse ser é, de fato, um ser percebido, um percipi. Ele varia de acordo com o que o leitor faz: dependendo de para qual prateleira da estante ele dirige o olhar, se caminha para a direita ou para a esquerda, se presta ou não atenção aos Impromptus de Schubert transmitidos agora pelo rádio. Se o leitor quiser refletir um momento sobre o que está fazendo, notará exatamente o quanto esse ser percebido depende de seu perceber: ele desaparece, por exemplo, se ele fechar os olhos. É evidentemente a visão da sala que desaparece: não a sala em si, que ainda está lá quando ele abre os olhos, mas talvez em uma perspectiva diferente se ele se moveu nesse meio-tempo. Suponhamos que o quinto Impromptu chame sua atenção ao ponto de ele se tornar “todo ouvidos”: agora ele “vive” completamente nessa escuta, seu presente é esse e nenhum outro. Vida presente, experiência presente: Erleben. Esse viver é “imanente”, pois, por definição, dado “de dentro” para aquele que vive: ele é “vivido”. Assim como o mundo é “transcendente”, a vida é “imanente”. Esse viver é, de fato, ser, mas sua presença não é, obviamente, a de um objeto (ob-jectum); é antes a presença de um ato, a atualidade. A atualidade da vida não é uma coisa [87] percebida “de fora”, em pedaços e aspectos, relativamente a um ponto de vista. Em certo sentido, ela é dada “absolutamente”, sendo aquilo sem o qual nada mais é dado. Daí a famosa frase:

“O ser imanente é, portanto, indubitavelmente um ser absoluto, no sentido de que, em princípio, nulla re indiget ad existendum.” 2

“Ele não precisa de nenhuma coisa real para existir.” Aninhada no parágrafo mais famoso de Ideias, escrita ainda em latim, essa proposição parece estar lá simplesmente para chocar gerações de estudantes perplexos. O que é, então, esse ser escandalosamente semelhante ao Ser necessário dos teólogos? Quem mais não precisa de nenhuma outra realidade para existir, não dependendo de nenhuma outra existência? Deus, aparentemente. Nada mais é, nesse sentido, “necessário” e absoluto!

Mas do que estamos falando? Se prestarmos um pouco de atenção ao contexto, salta aos olhos que a referência do substantivo “o ser imanente” não pode ser aqui uma coisa, uma realidade, uma substância.

Esse ser não é, justamente, o de uma substância, mas o de um ato: esse ut actus. Se nos lembrássemos da terminologia precisa do latim escolástico, não nos surpreenderíamos que tenha sido natural para Husserl se expressar, por uma vez, em latim. Fenomenologicamente, é o modo de presença desse ser que importa. Ora, a presença de um “vivido”, de um Erlebnis, é sua atualidade: é o presente no qual se vive. Agora, por exemplo, estou “todo ouvidos”. Vivo no ato de escutar. E não se pode viver “em ato” sem viver em um ato (pelo menos um, mas geralmente mais de um), não se pode viver no presente sem ter um (ou algo de) presente. Geralmente, qualificamos de “intencionalidade” essa última propriedade dos atos. Não há consciência sem intencionalidade. Mas muitas vezes esquecemos de mencionar a outra propriedade: não há [88] consciência sem vida (por vida entendemos precisamente a sucessão dos atos nos quais se vive). A consciência pura, de fato, é “absoluta” como a vida presente — no fundo, a única que nos é indubitavelmente dada.

Mas, afinal, o que é a consciência “pura”? Em que sentido ela é algo dado independentemente de toda realidade?

Eu realizei, na atitude fenomenológica, uma redução fenomenológica a parte objecti, reduzindo ao “puro” fenômeno e à Ideia que nele transparece o campo de minha atenção. Da mesma forma, uma redução semelhante ocorre a parte subjecti. Por meio dessa abordagem, coloco entre parênteses tudo o que pertence à realidade desse evento singular, minha percepção da sala, e, mais geralmente, tudo o que pertence a esse momento da vida dessa pessoa particular que responde ao meu nome, para me concentrar exclusivamente na estrutura invariável que uma percepção visual como essa possui. Uma percepção pura.

Qualquer percepção visual terá, por exemplo, uma origem ou ponto de vista, um horizonte, um modo de presença plena ou intuitiva dos objetos vistos em primeiro plano (o que ainda não distingue uma percepção de uma lembrança ou da imagem de uma percepção). Seus objetos terão, além disso, uma maneira peremptória de se darem como existentes aqui e agora, o que distingue seu modo de presença daquele de uma lembrança ou de uma imagem. Uma percepção pode ser ilusória precisamente porque possui esse caráter, ao contrário de uma imagem. E assim por diante.

  1. Geiger (1921).[↩]
  2. Husserl (1913), § 49.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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